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Possível diálogo entre Celso Furtado e Florestan Fernandes

Um pensou o Brasil pelo Estado – o outro, pelas relações sociais. Mas ambos buscaram compreender os obstáculos à modernização nacional – pela “nova dependência” ou “imperialismo” – e o papel do intelectual em um projeto de país

Por: Leonardo Belinelli

Na segunda dezena do mês de julho de 1920, com apenas 4 dias de distância, nasceram Florestan Fernandes e Celso Furtado, dois dos intelectuais brasileiros mais importantes do século XX. Um rápido exame das trajetórias de vida de ambos nos faria sublinhar as diferenças entre ambos. Nascido no seio da classe média paraibana e formado em Direito, como mandava o figurino de seu estrato social de origem, Celso Furtado, por diversas circunstâncias, destacou-se por uma circulação internacional precoce combinada com atuação em organismos estatais e multilaterais na disciplina na qual viria se consagrar, a Economia (e, em especial, a chamada Economia do Desenvolvimento).

O caso de Florestan é distinto, para não dizer oposto. Filho de uma portuguesa que aliava a condição de mãe solo ao trabalho doméstico em residências abastadas da cidade de São Paulo, Florestan ultrapassou dificuldades salientes para se estabelecer no ensino universitário paulistano, no qual, inclusive, desejava manter seus discípulos, desencorajando imersões internacionais que julgava precoces.

Tais observações, muito sumárias e certamente insuficientes, servem de ponto de partida para esboçar, em traços largos – limitados pela curta extensão de um texto como esse –, as perspectivas das quais os dois pensadores pensaram a sociedade em que viveram e os paralelismos, nunca exatamente coincidentes portanto, de suas posições teóricas e práticas a respeito de temáticas idênticas e assemelhadas. O interesse dessa tentativa de ensaio não reside na procura de avaliar criticamente as opções teóricas e políticas tomadas, o que requereria um aprofundamento reflexivo indisponível. Trata-se, antes, de indicar as formas de inserção distintas[ii] e as maneiras pelas quais problemas estruturais da sociedade brasileira foram tematizados.

Com efeito, é notável como Celso Furtado, desde seu doutorado defendido na Sorbonne, se preocupou em entender a formação brasileira em conexão com o desenvolvimento global do sistema capitalista. O Brasil foi, desde sempre, concebido por Furtado como um participante da ordem internacional – traço que o aproxima de outro intelectual, o paulista Caio Prado Júnior. Em boa medida, a originalidade metodológica do trabalho de Furtado surgiu da insatisfação das teorias clássicas a respeito dessa inserção. Isso fica especialmente claro quando conceitualiza a noção de subdesenvolvimento como “um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento.”[iii] Explicar a sua formação ao longo do processo histórico brasileiro foi uma das principais contribuições de Formação econômica do Brasil (1958), escrito, como outros clássicos do país, enquanto o autor se encontrava fora do país.

Já o ponto de partida de Florestan foi diverso. Foi, por assim dizer, mais “interno”. Suas reflexões sobre o país se iniciaram com os estudos sobre os Tupinambás e se desenvolveram em estreito diálogo com a pesquisa sobre as relações raciais no país, cujos resultados foram primeiramente expostos em Brancos  e negros em São Paulo (1955), escrito em parceria com Roger Bastide, e consolidados em A integração do negro na sociedade de classes (1964). O diagnóstico sobre a dinâmica da sociedade de classes desenvolvido nesse livro está fortemente presente em A revolução burguesa no Brasil (1975), ensaio que condensa a interpretação de Florestan Fernandes sobre o país.

Em boa medida, o desenvolvimento da interpretação de Florestan Fernandes sobre o “Brasil moderno” guarda relações significativas com o enfoque furtadiano. Isso fica claro pela adoção crítica que faz do diagnóstico a respeito do “subdesenvolvimento”. Em um momento de aprofundamento da polarização política do país – final dos anos 1950 e início da década seguinte – Florestan lidera, em parceria com seu então assistente Fernando Henrique Cardoso, a criação do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), um centro de pesquisa voltado para examinar os obstáculos sociais à modernização do país. Bastante sintomático do diálogo empreendido com Furtado, ainda que não diretamente anunciado no seu corpo, é o título do projeto que dava sustentação à criação do centro: “Economia e sociedade: análise sociológica do subdesenvolvimento”[iv]. O que está em jogo é a identificação dos fatores sociais que favoreciam a reprodução da sociedade subdesenvolvida – ou, em outros termos, obstaculizavam a “mudança social”. A esse respeito, o próprio Furtado afirmou: “O fenômeno da dependência todos conheciam […]. Ligar isso à estrutura interna da sociedade foi uma contribuição dos sociólogos.”[v]

Essa “aproximação distanciada” entre ambos se fazia perceptível também na prática. Na transição dos anos 1950 para a década seguinte, Celso Furtado destacou-se como criador da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e do Ministério do Planejamento, no qual levou adiante uma tentativa de implantar suas propostas econômicas, políticas e sociais por meio do Plano Trienal. No mesmo período, Florestan fazia uma rotação de perspectivas por outras vias. Engajado na Campanha em Defesa da Escola Púbica, escreveu em jornais de grande circulação, proferiu seminários em entidades civis e, como vimos, reorientava o conjunto de pesquisas sob sua responsabilidade para temas “quentes” da sociedade brasileira de então. Não à toa, portanto, passa a intensificar suas reflexões públicas sobre os papéis do intelectual em uma sociedade subdesenvolvida – tema sobre o qual refletirá até o final de seus dias. De ângulos distintos – do Estado e da sociedade, respectivamente – Furtado e Fernandes teorizavam e atuavam.

Perseguidos pelo regime de exceção inaugurado em 1964, Celso Furtado e Florestan Fernandes passaram pelo exílio antes de retornarem suas atividades no país durante os anos 1970. Quase que naturalmente, impunha-se o debate sobre as formas pelas quais a redemocratização deveria ocorrer e, no seu bojo, a questão referente à ação dos intelectuais.

Depois de anos lecionando e pesquisando no exterior, Furtado filiou-se, em agosto de 1981, ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Três anos depois, encamparia a campanha pela eleição indireta de Tancredo Neves (PDS). Com a morte do presidente eleito, tornou-se embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Europeia em Bruxelas em outubro de 1985. Quatro meses depois, tornou-se ministro da Cultura, cargo em que permaneceu até o início do segundo semestre de 1988. Um trecho ilustrativo do seu programa é encontrado em Criatividade e dependência na civilização industrial (1978)em que lemos: “O avanço pelo caminho da social-democracia, a exemplo do praticado na Suécia e na Inglaterra, resultou ser mais frutífero em termos de redução das desigualdades sociais, do que a sistemática confrontação ideológica na linha leninista, a exemplo do ocorrido na França. Controlar o Estado […] é condição necessária para levar a luta a outros planos e poder enfrentar as novas forças concentradoras de riqueza que se manifestam na fase mais avançada da acumulação.”[vi]

Crítico ao papel político desempenhado pelo PMDB[vii], Florestan Fernandes ingressa, em 1986, nas fileiras do Partido dos Trabalhadores (PT), a convite das lideranças do partido pressionadas pelas suas bases[viii]. O objetivo da adesão era competir ao posto de deputado federal constituinte. Conquistada a vaga, seu programa passa a ser abertamente socialista com cunho revolucionário.

Como nos anos 1960, encontramos novo paralelismo entre Furtado e Fernandes, que voltam a repetir, por assim dizer, suas inserções políticas “por cima” e “por baixo”, respectivamente. E, como antes, mobilizados por questões similares. O economista se destacará por refletir sobre a “nova dependência”, tema igualmente enfatizado por Fernandes, embora de outro do ângulo, o de certa vertente da teoria do imperialismo. Cada um à sua maneira, Furtado e Fernandes procuram reatualizar suas próprias perspectivas anteriores e derivaram dessa medida programas de ação que, embora não convergentes no plano da prática política, diziam respeito ao processo de modernização dos dilemas nacionais[ix]. Talvez se possa sugerir, como é rotineiro em reflexões sobre os intelectuais, que Furtado e Fernandes representam tipos distintos dessas figuras típicas da sociedade moderna. Se utilizarmos as categorias propostas pelo crítico literário italiano Alfonso Berardinelli, podemos imaginar que Furtado se aproxima dos “técnicos”, enquanto Fernandes, dos “críticos”[x]. Mas isso é insuficiente. Pois o que talvez mais impressione nessas trajetórias tão diferentes e nas maneiras de pensar e agir igualmente distintas, às vezes opostas, é a convergência relativa de ambos no que se refere aos impasses nacionais. Em outras palavras: de certo ângulo, as tantas determinações que tenderiam – ou tenderam – a afastar Furtado e Fernandes podem ser relativizadas pela aproximação que o mesmo objeto de preocupação, a formação social brasileira, impôs a ambos. Uma convergência no paralelismo – impossibilidade geométrica, mas não sociológica.

 

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