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Sobre o conceito marxista de modo de produção

Marx criou um conceito fundamental para compreender as dinâmicas sociais e econômicas – e a História: o modo de produção. Mas será que as ideias de Adam Smith, um arauto do capital, poderiam contribuir em algo nas reflexões marxistas?

Por: Marcos Barbosa de Oliveira

Para entender como o problema de definir ‘modo de produção’, da maneira como figura nos textos do próprio Marx, convém primeiro registrar três observações terminológico-conceituais. A primeira diz respeito a ‘repartição’. Na literatura econômica não marxista predomina, no lugar do ‘repartir’ de Singer, o verbo ‘distribuir’, valendo o mesmo para os cognatos repartição/distribuição, etc. Marx, por sua vez, usa ‘circulação’, acompanhando Quesnay1. Vários historiadores da Economia, levando em conta a formação em Cirurgia e Medicina de Quesnay, sustentam que ele adotou o termo ‘circulação’ por analogia com a circulação do sangue, descoberta por William Harvey (1578-1617), com cujas ideias ele tinha familiaridade.2

A segunda observação refere-se ao conceito de “serviço”. Um serviço pode ser definido como um processo em que a produção e o consumo de um bem se dão simultaneamente. Exemplos típicos são um corte de cabelos, uma consulta médica, uma aula. Há porém duas maneiras de integrar os serviços no todo social. Uma delas consiste em conceber os serviços assim definidos como uma esfera da vida social, ao lado da esfera das mercadorias. É dessa maneira que o conceito figura no ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços). A outra maneira concebe os serviços como uma espécie de mercadoria, incluída no cálculo do PIB da mesma forma que as mercadorias no sentido estrito (em que o consumo vem depois da produção). (Cf. Oliveira, 2013b)

A terceira observação é a mais substancial, não é apenas terminológica mas também conceitual. Ela diz respeito ao conceito de trabalho (im)produtivo, considerando primeiro o de Adam Smith (1723-1790), depois o de Marx.

Smith trata do tema nos capítulos III do livro II e capítulo IX do Livro IV, de The Wealth of Nations. No primeiro parágrafo do capítulo III, lê-se:

Há um tipo de trabalho que agrega valor ao objeto a que é aplicado; há outro que não tem tal efeito. O primeiro, como produz valor, pode ser chamado produtivo, o segundo, trabalho improdutivo. O trabalho de um manufatureiro (manufacturer) em geral agrega ao valor dos materiais com que trabalha, o de sua própria manutenção, e o do lucro de seu patrão. O trabalho de um empregado doméstico (menial servant), ao contrário, agrega valor a nada. […] o trabalho do manufatureiro incorpora-se e realiza-se em algum objeto particular ou mercadoria vendável que dura pelo menos algum tempo depois de terminado o trabalho. […] No trabalho do empregado doméstico, pelo contrário, isso não acontece. Seus serviços em geral desaparecem no próprio instante de sua realização, e raramente deixam algum vestígio ou valor com o qual uma mesma quantidade de serviço poderia depois ser adquirida. (Smith, 1973 [1776], p. 330-1)

A categoria smithiana de trabalhador improdutivo é muito ampla. Inclui desde os empregados domésticos até o soberano, passando por todos os funcionários públicos, vistos como empregados do Estado, e mantidos por uma parte do produto da indústria de outras pessoas. São incluídos também os membros de profissões, tanto das mais sérias e importantes, quanto das mais frívolas (frivolous): de um lado religiosos, advogados, médicos, homens de letras de todos os tipos; de outro, atores, bufões, músicos, cantores e dançarinos de ópera, etc. “Assim como a fala do ator, a arenga do orador, o desempenho do músico, o trabalho de todos eles perece no próprio instante de sua produção.” (Smith 1973 [1776], p. 330-1)

O fato de Smith ter tratado em primeiro lugar dos empregados domésticos ‒ e assim, pode-se dizer, como um caso paradigmático de trabalho improdutivo ‒ não se deve a preconceito de classe, mas à tese de que o trabalho doméstico não gera riqueza, no sentido em que emprega o termo. Diz ele “Um homem fica rico empregando uma multidão de manufatureiros; fica pobre mantendo uma multidão de empregados domésticos.” (ibid, p. 330). A menção aos outros casos de trabalho improdutivo naturalmente reforça essa interpretação.3

No capítulo IX do Livro IV, no contexto de uma crítica dos fisiocratas, Smith leva adiante sua análise da dicotomia em pauta, agora com foco no trabalho produtivo. (Os fisiocratas, como se sabe, afirmavam ser a agricultura a única fonte de valor). O fulcro da crítica smithiana é a tríade mercadores, artesãos e manufatureiros (merchants, artificers, and manufacturers), mobilizada inúmeras vezes ao longo da discussão. Tratando em particular de Quesnay, Smith expressa admiração, referindo-se a ele como “o muito engenhoso e profundo autor desse sistema [dos fisiocratas]” (Smith, 1973 [1776], p. 673).4 Mas, por outro lado, Smith sustenta que “O erro capital desse sistema parece residir na representação da classe dos mercadores, artesãos e manufatureiros como completamente estéril e improdutiva.” (Smith 1973 [1776], p. 674). Smith empenha-se extensamente em demonstrar de que maneira os profissionais da tríade efetivamente produzem valor. O primeiro componente da tríade é o mais importante no presente contexto, como ficará claro a seguir.

Passando agora às ideias de Marx, pode-se começar expondo uma de suas discordâncias com Smith.5 Para Marx, o fato de que nos serviços, a produção e o consumo dos bens são simultâneos não impede que possam funcionar como mercadorias. Tal tese porém não o leva a uma simples inversão ‒ a de que os serviços são mercadorias. O que ele faz é introduzir um critério diferente, segundo o qual um serviço pode ou não ser mercadoria: é mercadoria quando contribui para a produção da mais-valia, caso contrário não. Para explicar o critério ele se vale de alguns exemplos.

Em suas palavras:

… a designação do trabalho enquanto trabalho produtivo não tem nada a ver com o conteúdo determinado do trabalho, sua utilidade específica, ou o valor de uso particular em que se manifesta. [E também, seria possível acrescentar, com o caráter, simultâneo ou não, da produção e consumo dos bens, próprio dos serviços.]
mesmo tipo de trabalho pode ser produtivo ou improdutivo. Por exemplo, Milton, que escreveu Paradise Lost por cinco libras, foi um trabalhador improdutivo. Por outro lado, o escritor que fornece texto para seu editor (publisher) em modo industrial, é um trabalhador produtivo. Milton produziu o Paradise Lost pela mesma razão que um bicho da seda produz seda. Era uma atividade de sua natureza. Mais tarde ele vendeu o resultado por 5 libras. Mas o proletário letrado de Leipzig, que fabrica livros (por exemplo, Compêndios de Economia), sob o controle de seu editor, é um trabalhador produtivo, porque seu produto é desde o início subsumido ao capital, e passa a existir apenas pelo propósito de incrementar aquele capital. Uma cantora que vende sua canção por conta própria é uma trabalhadora improdutiva. Porém a mesma cantora, contratada por um empresário com o objetivo de fazer dinheiro é uma trabalhadora produtiva, pois produz capital. (Marx, 1963 (Theories of surplus value), cap. 7 (D), p. 326-7)6

Vale a pena observar que o elementos finais dos títulos dos Livros I e II d’O Capital (os sub-subtítulos, por assim dizer) são respectivamente “A produção do capital” e “A circulação do capital” (o Livro I, entretanto, contém um capítulo sobre a circulação, intitulado “O dinheiro ou a circulação de mercadorias”).

O sistema capitalista é obviamente o tema central das obras tanto de Smith quanto de Marx. Ambos lhe atribuem enorme importância ‒ Smith enquanto arauto, Marx enquanto crítico ‒ e vão ao ponto de limitar o campo da Economia Política às atividades que se realizam por meio de trocas mercantis. Tal limitação, no mesmo sentido, está presente no conceito de PIB (Produto Interno Bruto). Em Oliveira (2023b) relaciono uma série de críticas referentes à exclusão ou à inclusão indevidas de uma série de fatores no cômputo do PIB. O primeiro da lista diz respeito ao trabalho doméstico, que pode ser executado por uma dona de casa, ou por um(a) empregado(a), no primeiro caso sem remuneração, no segundo caso com, ficando assim no primeiro caso dentro, no segundo fora da esfera do mercado. Na literatura crítica do PIB é comum o argumento (atribuído ora a um, ora a outro economista) a respeito de um patrão que se casa com sua empregada doméstica. A empregada torna-se dona de casa, continua a fazer o mesmo trabalho de antes, porém sem remuneração. O casamento, em consequência, e paradoxalmente, causa uma redução no PIB. É evidente a analogia entre esse argumento e o exemplo da cantora, utilizado por Marx.

No movimento feminista há uma vertente que coloca o trabalho doméstico no centro das reflexões, defendendo seu caráter produtivo, junto com a tese de que as donas de casa devem ser remuneradas por sua execução. A vertente foi lançada, há mais de meio século, em 1972, na cidade de Pádua, no contexto da criação do International Feminist Collective, com a palavra de ordem Salários pelo Trabalho Doméstico (Wages for Housework). (Federici, 2019). Uma possível implicação para o exemplo da empregada que se casa com o patrão é a de que ele deveria pagar à esposa no mínimo quanto pagava antes à empregada.

Entre as militantes da campanha desenvolveu-se uma crítica às concepções de Marx, que é bem sintetizada na seguinte passagem:

O eixo central dessa crítica reside na afirmação de que a análise do capitalismo feita por Marx foi prejudicada por sua incapacidade de conceber o trabalho produtor de valor de outra forma que não seja a de produção de mercadorias, e sua consequente cegueira quanto ao trabalho reprodutivo não remunerado realizado pelas mulheres […]. Ignorar esse trabalho limitou a compreensão de Marx acerca do verdadeiro alcance da exploração capitalista do trabalho e da função que o salário desempenha na criação de divisões dentro da classe trabalhadora, começando pela relação entre mulheres e homens. (Federici, 2019, p. 195)7

A segunda discordância de Marx em relação a Smith é muito mais relevante, pelo menos no presente contexto. Ela diz respeito não aos serviços, mas ao primeiro elemento da tríade smithiana, o “trabalho dos mercadores”. Vamos entender esse termo como referente às atividades distributivas (ou comerciais), contidas na esfera da circulação. A exposição divide-se em duas aproximações, ou momentos (lógicos, não cronológicos).

No primeiro momento, contrapondo-se não só a Smith, mas também a Condillac, e vários outros economistas, Marx sustenta que, por estar situado na esfera da circulação, o trabalho dos mercadores é improdutivo. A tese decorre de sua Teoria do Valor Trabalho (TVT), em que o “Princípio da Equivalência” desempenha um papel crucial8. A argumentação envolve críticas dirigidas aos partidários da tese oposta, baseadas na alegação de que não distinguem adequadamente o valor de uso e o valor de troca. De acordo com a TVT, numa troca mercantil os valores dos bens trocados não se alteram, uma vez que são determinados, grosso modo, pelo tempo de trabalho empregado em sua produção.

A linha de raciocínio desenvolvida n’O Capital, Livro I, considera duas hipóteses, a de que vale, e a de que não vale, o Princípio da Equivalência. A conclusão é seguinte:

Pode-se virar e revirar como se queira, e o resultado será o mesmo. Da troca de equivalentes não resulta mais-valor, e tampouco da troca de não equivalentes não resulta mais-valor. A circulação ou a troca de mercadorias não cria valor nenhum. (Marx, 2017 [1867], p. 238, itálico acrescentado).

Ora, se não criam valor algum, as trocas mercantis ‒ ou, em outras palavras, as atividades distributivas, ou ainda de circulação ‒ são externas à economia de mercado, constituindo uma esfera separada da vida social, ao lado da esfera das atividades produtivas. Para nossos propósitos, é desnecessário expor a argumentação marxiana que conduz a essa tese. Retomando o problema de como definir o conceito de “modo de produção”, o resultado é que a definição deve incluir apenas as atividades produtivas, ficando de fora as distributivas.

Passando agora ao segundo momento, o x do problema é o de que, com base na TVT, o raciocínio leva também à conclusão contrária: a de que as esferas da produção e da distribuição formam um todo, de maneira que: nenhuma pode existir sem a outra. Tal faceta das ideias de Marx é fortemente enfatizada no prefácio e na introdução de Heinrich para o Livro II d’O Capital. Uma das seções do prefácio tem por título “Unidade do processo de produção e de circulação”, e nele encontra-se a afirmação:

Porém, engana-se quem pensa que Marx explica a valorização do capital unicamente com base na produção. Sua importância [dos processos de circulação] está sobretudo em apresentar o capital como unidade dos processos de circulação e de produção: o processo de produção do capital como mediado pelo processo de circulação e o processo de circulação como mediado pelo processo de produção. (Heinrich, 2014, p. 18)

Na Introdução, Heinrich cita uma passagem do próprio Marx, cuja primeira frase é a seguinte: “Vimos que o processo de produção, considerado em conjunto, é a unidade do processo de produção e de circulação.” (Heinrich, p. 28-9)9.

Temos portanto uma contradição: de um lado, as esferas da produção e da circulação ficam separadas, de outro são intimamente interligadas, formando um todo. Marx tem plena consciência da contradição. Analisando o exemplo de um fabricante de botas, ele conclui:

Portanto, o capital não pode ter origem na circulação, tampouco pode não ter origem circulação. Ele tem de ter origem nela e, ao mesmo tempo, não ter origem nela.
Temos, assim, um duplo resultado.
A transformação do dinheiro em capital tem de ser explicada com base nas leis imanentes da troca de mercadorias, de modo que a troca de equivalentes seja o ponto de partida. Nosso possuidor de dinheiro, que ainda é apenas um capitalista em estado larval, tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, vendê-las pelo seu valor e, no entanto, no final do processo, retirar da circulação mais valor do que ele nela lançara inicialmente. Sua crisalidação [Schmetterlingsentfaltung] tem de se dar na esfera da circulação e não pode se dar na esfera da circulação. Essas são as condições do problema. Hic Rhodus, hic salta! (Marx, 2017 [1867], p. 240-1)

Para os dialéticos, amigos da contradição em geral, a contradição em pauta não constitui um problema, até pelo contrário. Para quem distingue adequadamente as contradições formais e as reais, a contradição é uma reductio ad absurdum da TVT. Para evitá-la é necessário ou introduzir alterações na teoria, ou então ‒ o que considero uma melhor alternativa ‒ admitir, concordando com Smith, que o trabalho na esfera da distribuição também gera valor.10 Neste caso, as esferas da produção e da circulação, embora distinguíveis no plano abstrato, são fundamentalmente interligadas, constituindo um todo. Como, de acordo com o segundo momento de nossa análise, o próprio Marx sustenta essa concepção, não se pode tachar de antimarxista quem a subscreve.

Concluindo a discussão sobre como definir o modo de produção, a proposta é a de que, no uso mais frequente, no lugar de ‘modo de produção’, adote-se ‘modo de organização’ (da vida econômica e social das sociedades), formado conjuntamente pelos modos de produção e de distribuição (ou circulação).

 

Veja em: https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/sobre-o-conceito-marxista-de-imodo-de-producao-i/


 

Tomo como ponto de partida o esquema conceitual de Paul Singer exposto na Parte IV de Uma utopia militante: repensando o socialismo (Singer, 1998).

Muito esquematicamente, diz Singer, “um modo de produção é uma forma específica de organizar a atividade produtiva e de repartir o resultado entre os participantes”. Numa formação social podem coexistir vários modos de produção, sendo um deles o hegemônico, que dá o nome à respectiva formação social. Por exemplo, a formação social capitalista é aquela em que o modo de produção hegemônico é o capitalismo. Singer menciona vários dos modos presentes nas atuais formações capitalistas, mas não hegemônicos: produção simples de mercadorias, produção pública, doméstica, cooperativa, etc. Uma implicação dessa perspectiva é a de que uma formação social socialista pode conter o modo de produção capitalista, desde que este não seja o hegemônico.

Há no esquema de Singer, e de maneira geral na tradição marxista, um problema lógico referente ao conceito de modo de produção. Tomando a frase de Singer citada acima como uma definição do termo, nota-se uma correspondência entre a ‘produção’ no termo definido e ‘organizar as atividades produtivas’, enquanto o primeiro elemento da definição. Já o segundo elemento, ‘repartir o resultado entre os participantes’ não tem o correspondente análogo, que seria ‘organizar as atividade distributivas’. Para corrigir essa assimetria, a definição deveria ser: um modo de produção e de repartição é uma forma específica de organizar a atividade produtiva e de repartir o resultado entre os participantes. Sem tal adendo, a definição teria a forma “modo de produção = modo de produção” + modo de repartição”, que incide na falha lógica que consiste no acréscimo da parte ao todo.

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