Centrais posicionam-se com vigor em defesa das instituições democráticas. Mas, muitas vezes, escanteiam a luta contra a erosão dos direitos, frustrando expectativas da classe trabalhadora. O que isso revela sobre a distância entre lideranças e bases?
Por: Erik Chiconelli Gomes | Crédito Foto: Lucio Bernardo Jr. Câmara dos Deputados
O cenário político-social brasileiro contemporâneo apresenta uma complexa teia de relações entre as instituições democráticas, o movimento sindical e os interesses da classe trabalhadora. Este artigo busca analisar as recentes manifestações das centrais sindicais em defesa do Supremo Tribunal Federal (STF) e as contradições inerentes a essa postura, considerando o histórico recente de decisões judiciais e políticas que têm afetado negativamente os direitos trabalhistas.
A abordagem de Thompson (1963) sobre a formação da classe operária inglesa nos oferece um valioso ponto de partida para compreender a dinâmica atual do movimento sindical brasileiro. Thompson enfatiza a importância da experiência e da agência dos trabalhadores na formação da consciência de classe, um processo que não é meramente econômico, mas profundamente cultural e político.
No contexto brasileiro recente, observamos um fenômeno que parece contradizer essa noção de formação de classe ativa e consciente. As centrais sindicais, teoricamente representantes dos interesses da classe trabalhadora, têm se posicionado em defesa de instituições que, paradoxalmente, têm sido instrumentais na erosão dos direitos trabalhistas. Este aparente desalinhamento entre as lideranças sindicais e os interesses imediatos da classe trabalhadora evoca questões cruciais sobre representação e legitimidade no movimento sindical contemporâneo.
A “reforma” trabalhista de 2017 representa um ponto de inflexão significativo nessa narrativa. Como observa Antunes (2018, p. 55), “a contrarreforma trabalhista imposta pelo governo Temer em 2017 constituiu-se em um dos maiores ataques já desferidos contra a classe trabalhadora desde o fim da escravidão”. Esta reforma, validada pelo STF, fragilizou significativamente a posição dos trabalhadores e dos sindicatos, contradizendo princípios fundamentais do Direito do Trabalho.
A pandemia de covid-19 exacerbou ainda mais essa situação precária. As medidas adotadas pelo governo, com o aval do STF, priorizaram interesses econômicos em detrimento da saúde e segurança dos trabalhadores. Este episódio ressoa com as observações de Souza (2018) sobre a “elite do atraso” brasileira, que sistematicamente prioriza interesses de classe sobre o bem-estar coletivo.
O posicionamento recente das centrais sindicais em defesa do STF e de suas decisões levanta questões cruciais sobre o papel do movimento sindical na democracia contemporânea. Como argumenta Braga (2012), o sindicalismo brasileiro pós-1990 passou por um processo de “transformismo”, no qual lideranças sindicais foram gradualmente incorporadas à burocracia estatal, distanciando-se das bases.
Este distanciamento é evidenciado pela aparente falta de crítica substantiva por parte das centrais sindicais às decisões do STF que têm sistematicamente enfraquecido os direitos trabalhistas. Hirata (2011) argumenta que esse fenômeno não é isolado, mas parte de uma tendência global de precarização do trabalho e enfraquecimento dos sindicatos em face da globalização neoliberal.
A resolução recente do CNJ, que facilita a homologação de acordos extrajudiciais na Justiça do Trabalho, é mais um exemplo dessa tendência. Sob o pretexto de eficiência e atração de investimentos, essa medida potencialmente enfraquece ainda mais a posição dos trabalhadores em disputas trabalhistas.
O apoio das centrais sindicais a instituições que têm sido instrumentais na erosão dos direitos trabalhistas levanta questões importantes sobre a natureza da representação sindical no Brasil contemporâneo. Como argumenta Cardoso (2015), o movimento sindical brasileiro enfrenta uma crise de legitimidade, em parte devido à sua proximidade com o aparato estatal e distanciamento das bases.
A ausência de uma crítica contundente por parte das centrais sindicais às decisões do STF que afetam negativamente os direitos trabalhistas podem ser interpretados como um sintoma desta crise. Como observa Oliveira (2003), o movimento sindical brasileiro, especialmente após a ascensão do PT ao poder, passou por um processo de “transformismo”, no qual as lideranças sindicais foram gradualmente incorporadas à lógica do Estado, muitas vezes em detrimento dos interesses imediatos da classe trabalhadora.
Este cenário evoca a noção thompsoniana de “economia moral” (Thompson, 1971). As ações das centrais sindicais parecem divergir das expectativas tradicionais da classe trabalhadora, potencialmente minando a legitimidade dessas organizações aos olhos de seus constituintes.
A aparente falta de mobilização efetiva contra as reformas trabalhistas e a ausência de demandas por sua revogação completa sugerem um distanciamento entre as lideranças sindicais e as necessidades imediatas da classe trabalhadora. Isto ressoa com as observações de Pochmann (2014) sobre a crescente fragmentação e heterogeneidade da classe trabalhadora brasileira, que dificulta a formação de uma consciência de classe unificada e a ação coletiva efetiva.
Um exemplo claro dessa dinâmica complexa pode ser observado nas recentes ações das centrais sindicais brasileiras. Souto Maior (2024) analisa duas notas emitidas por centrais sindicais em outubro de 2024. A primeira nota defende o Ministro Alexandre de Moraes do STF contra ataques de grupos extremistas (Centrais Sindicais, 2024a), enquanto a segunda se posiciona contra iniciativas legislativas que visam, entre outras coisas, anistiar os envolvidos nos eventos de 8 de janeiro de 2023 e limitar a atuação do STF (Centrais Sindicais, 2024b). Essas ações das centrais sindicais sugerem uma priorização da defesa das instituições democráticas sobre a luta direta pelos direitos trabalhistas. Embora a defesa da democracia seja indiscutivelmente crucial, essa abordagem levanta questões importantes sobre a eficácia do movimento sindical em representar e defender os interesses imediatos da classe trabalhadora, especialmente considerando o histórico recente de decisões judiciais e políticas que têm sistematicamente enfraquecido os direitos laborais.
A menção à retórica do empreendedorismo como uma forma de cooptação dos trabalhadores é particularmente relevante. Como argumenta Antunes (2018), o discurso do empreendedorismo muitas vezes mascara formas precárias de trabalho e transfere a responsabilidade pela proteção social do Estado e dos empregadores para os próprios trabalhadores.
A adoção desse discurso por figuras políticas tradicionalmente associadas à esquerda, como mencionado no caso do Presidente Lula, ilustra o que Oliveira (2003) chamou de “hegemonia às avessas”, onde a esquerda no poder acaba por implementar políticas que beneficiam primariamente o capital.
Este cenário complexo demanda uma reflexão profunda sobre o papel do movimento sindical na sociedade brasileira contemporânea. Como argumenta Braga (2012), é necessário um “sindicalismo de movimento social” que seja capaz de articular as demandas imediatas dos trabalhadores com uma crítica mais ampla ao sistema econômico e político vigente.
A ausência de um projeto político claro e radical por parte das organizações sindicais, como sugerido no documento analisado por Souto Maior (2024), cria um vácuo que pode ser preenchido por movimentos conservadores e até mesmo fascistas. Esta dinâmica evoca as análises de Adorno et al. (1950) sobre a psicologia do fascismo e sua capacidade de mobilizar ressentimentos sociais em contextos de crise econômica e política.
Para superar esse impasse, é crucial que o movimento sindical retome seu papel histórico de protagonista na luta pelos direitos dos trabalhadores. Isso implica não apenas em uma postura mais crítica em relação às instituições do Estado, incluindo o Judiciário, mas também em um esforço renovado para mobilizar e organizar a classe trabalhadora em torno de demandas concretas por melhores condições de vida e trabalho.
Como argumenta Santos (2016), é necessário um “novo internacionalismo operário” capaz de articular lutas locais com uma visão global de transformação social. Isto implica em superar as fragmentações de classe, raça e gênero que o capitalismo contemporâneo fomenta e exacerba.
Em conclusão, o movimento sindical brasileiro se encontra em uma encruzilhada histórica. Por um lado, busca defender as instituições democráticas contra ameaças autoritárias; por outro, parece ter dificuldades em articular uma crítica efetiva às políticas e decisões judiciais que têm sistematicamente enfraquecido os direitos trabalhistas. O desafio que se coloca é o de reconciliar essas duas dimensões, reafirmando o papel do movimento sindical como defensor intransigente dos interesses da classe trabalhadora, sem perder de vista a importância da preservação e aprofundamento da democracia.
Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/uma-encruzilhada-do-movimento-sindical-brasileiro/
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