Por: Kaine Pieri | Crédito Foto: Marie-José Loshi/Metis-Be. Marie-José Loshi (à esquerda) foi uma das milhares de crianças retiradas de suas famílias por serem mestiças. À direita, uma foto de um dos institutos católicos nomeados pelo governo belga que foi forçado a acolher as crianças, e criá-las em Save, em Ruanda
Aos quatro anos, Marie-José Loshi foi retirada da sua família no então Congo Belga da era colonial, levada para mais de 600 quilômetros de distância, e colocada em um orfanato católico para crescer entre estranhos.
“Fomos arrancados de tudo, e feridos para o resto da vida”, diz Loshi, hoje com 76 anos.
“Nossa juventude e infância foram roubadas.”
Marie-José Loshi é apenas uma das milhares de crianças que foram sistematicamente retiradas de suas famílias pelo Estado, e colocadas em institutos administrados principalmente pela Igreja Católica, por causa de suas origens mestiças.
“Me senti perdida, ficava chorando… Fui tirada da minha mãe, e deixada entre estranhos que nem sequer falavam meu idioma. A única coisa que tínhamos em comum era o fato de sermos todos mestiços”, lembra Loshi.
Décadas depois, ela e outras quatro mulheres que cresceram na mesma missão católica venceram uma histórica batalha judicial por indenização. Mas as cicatrizes do passado ainda são profundas.

Uma decisão judicial histórica
Monique Bitu Bingi, Léa Tavares Mujinga, Noëlle Verbeken, Simone Ngalula e Marie-José Loshi entraram com um pedido de indenização na Justiça contra o governo belga em 2021.
Foi o primeiro processo na Bélgica a destacar as milhares de crianças, filhas de colonos brancos e mulheres negras locais, que foram retiradas à força de suas famílias durante as décadas de 1940 e 1950.
Em dezembro de 2024, o Tribunal de Apelações de Bruxelas anulou uma decisão judicial anterior que concluiu que havia passado muito tempo para que elas tivessem direito a uma indenização.
O Tribunal de Apelações determinou que as ações do Estado foram um crime contra a humanidade — um “plano para procurar e sequestrar sistematicamente crianças nascidas de uma mãe negra e um pai branco” — eliminando, portanto, qualquer prazo de prescrição. Os juízes descreveram os sequestros como “um ato desumano de perseguição”.
“Esta decisão é histórica. É a primeira vez que um tribunal belga reconhece um crime contra a humanidade por algo que aconteceu durante a colonização. Isso abre um precedente — não apenas para a Bélgica, mas potencialmente para antigas potências coloniais em todo o mundo”, diz Michèle Hirsch, uma das advogadas das cinco mulheres.
“A decisão não reconhece apenas o sofrimento destas cinco mulheres; reconhece um crime cometido pelo próprio Estado belga”, ela acrescenta.
As mulheres pediram um pagamento inicial de 50 mil euros (R$ 303 mil) porque, se perdessem, seriam obrigadas a pagar uma indenização ao Estado com base na reivindicação original.
Mas para Loshi, não se trata de dinheiro. Assim como as outras vítimas, ela manteve o trauma de infância em segredo, inclusive dos próprios filhos e netos.
“Vivíamos com vergonha”, diz ela. “Não podíamos contar aos nossos filhos sobre uma vida como aquela. Mas graças aos nossos advogados, encontramos coragem para testemunhar.”

‘Abandonada por definição’
Em 2019, o governo belga emitiu um pedido formal de desculpas a cerca de 20 mil vítimas de separações familiares forçadas na atual República Democrática do Congo, assim como em Burundi e Ruanda.
É impossível saber o número real de crianças métis (mestiças) afetadas pela política da era colonial da Bélgica, assim como das inúmeras famílias impactadas, afirma a antropóloga Bambi Ceuppens, pesquisadora do Museu Real da África Central na Bélgica.
“Em Ruanda e Burundi, as crianças foram levadas para internatos de forma muito mais sistemática do que no Congo”, diz ela.
Ceuppens explica que isso se deve ao tamanho dos países, menores e menos densamente povoados do que o então Congo Belga.
Além de transferir as crianças internamente, o governo também levou crianças para a Bélgica, muitas vezes mudando seus nomes e separando irmãos, sem oferecer nacionalidade belga quando atingissem a idade adulta.
Ceuppens relembra o incrível caso de dois irmãos que foram tirados de casa e criados em diferentes regiões da Bélgica, o que significa que um cresceu falando holandês, e o outro francês. Somente quando estavam na casa dos 60 anos é que conseguiram encontrar um ao outro.
Segundo ela, as medidas das autoridades tinham como objetivo fortalecer e manter o domínio colonial.
“Do ponto de vista colonial, no momento em que uma mulher negra dava à luz uma criança mestiça, ela era considerada abandonada por definição. Toda criança mestiça era vista como evidência de que a segregação racial não poderia ser mantida. Os meninos eram vistos como rebeldes em potencial, e as meninas como destinadas a viver na prostituição”, ela explica.

‘Uma vitória para os povos colonizados em todos os lugares’
Para a advogada Michèle Hirsch, a decisão tem a possibilidade de abrir as portas para outras do tipo.
“Esta é uma vitória para os povos colonizados em todos os lugares”, diz ela.
“Outros sobreviventes desta política, milhares que passaram pelas mesmas coisas que as minhas clientes, podem agora buscar justiça.”
“Devemos lembrar que, infelizmente, muitas destas pessoas não estão mais entre nós, mas e seus descendentes? Pode haver espaço para os descendentes das vítimas pedirem justiça também.”
Hirsch quer que o Parlamento belga adote uma lei semelhante às políticas de reparação da Austrália ou do Canadá, que já pagaram milhões de dólares às vítimas de sequestro sistemático e separação de crianças indígenas de suas famílias.
A advogada, que diz ter se inspirado em debates sobre reparações na Austrália e no Canadá, acredita que este caso pode pressionar não apenas a Bélgica, mas também “outras antigas potências coloniais” a estabelecer tais políticas.
Mas ela afirma que o veredicto recente também poderia fazer muito mais em termos de lei.
O fato de este caso ter sido definido como um crime contra a humanidade, anulando o prazo de prescrição, significa que outros tipos de crimes cometidos por governos coloniais também poderiam resultar em indenização, não importa há quantos anos tenham ocorrido.

Estigma permanente
Para Antoinette Uwonkunda, o estigma e as consequências destas políticas coloniais ainda são muito reais.
Sua associação, Métis du Monde (“Mestiços do mundo”, em tradução livre), com sede na Bélgica, foi criada para ajudar pessoas de origem mestiça em sua terra natal, Ruanda. O grupo ajuda a colocar pessoas mestiças em contato com arquivos para encontrar membros da família, e arrecada fundos para que os jovens possam ir à escola, entre outras ações de base.
Uwonkunda conta que um dos motivos que a levou a criar a Métis du Monde foi o fato de ter testemunhado com seus próprios olhos a prática colonial de separar crianças mestiças.
“Eu cresci no sul de Ruanda, perto de uma dessas instituições católicas que acolhia crianças. Me lembro de ter ouvido histórias de mães que haviam ‘perdido’ seus filhos, cujos filhos foram mandados para a Bélgica, e lembro de ter crescido me perguntando ‘por quê?”, ela relata.
Assim como muitos ativistas, Uwonkunda ficou “eufórica” quando soube do recente veredicto.
“Isso tem que abrir portas, não quero saber, na minha opinião, a Bélgica não tem escolha, ela tem que começar a se fazer algumas perguntas”, diz ela.
“Há muitas pessoas que sofreram como essas mulheres, e não vamos ficar aqui de braços cruzados.”
Para Uwonkunda, que é mestiça, também há muito a ser feito pelos métis que vivem em zonas rurais, e que ainda sofrem com a discriminação.
“As pessoas ainda me perguntam como é que eu falo a língua local”, ela ri.
“Então, uma das coisas que dizemos aos métis em Ruanda é que este é o seu país, e você precisa encontrar o seu lugar nele.”

Em entrevista algumas semanas após a decisão do tribunal na Bélgica, Marie-José Loshi concorda.
“Tenho lágrimas nos olhos ao dizer isso, mas a segregação que sentimos por sermos mestiços nos acompanha até hoje. Não nos sentimos aceitos, não somos nem negros nem brancos o suficiente, não temos um espaço ao qual sentimos que pertencemos”, diz ela.
“Agora andamos de cabeça erguida. Os segredos que guardamos por tanto tempo foram revelados. Se as pessoas quiserem rir de nós ou nos aplaudir, não importa. Fizemos o que tínhamos de fazer, porque o fardo era pesado demais para carregar.”
Reportagem adicional de Efrem Gebreab.
Publicado originalmente em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0jj47w7dzo
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