Clipping

A indústria da moda contra o planeta

O mercado de roupas de baixo custo pode ter democratizado o acesso, mas baseia-se em trabalho precário e grande pegada de carbono. 80% dos têxteis descartados não são reaproveitados. As grifes famosas não ficam atrás, inclusive em obsolescência programada…

Por: Alexandra Farah, na Piauí

A indústria da moda fabrica por ano cerca de 100 bilhões de itens de vestimenta. Só a Shein, gigante chinesa do e-commerce, produz 1,3 milhão de modelos de roupas. Isso representa mais de 4 mil novos modelos por dia, cada um deles fabricado às centenas ou aos milhares. Esse ritmo frenético de produção, conhecido como ultra-fast-fashion, foi implementado pela varejista chinesa em plena pandemia da Covid. Em comparação, a Zara, tida como a inventora do fast fashion nos anos 1990, desfila lenta como uma tartaruga usando salto agulha: estima-se que a marca lance 36 mil modelos de janeiro a janeiro.

Os números estão em A conspiração consumista, documentário da Netflix que alcançou 7 milhões de visualizações só em seus primeiros cinco dias na plataforma, em novembro. Com locações que vão dos Estados Unidos à Tailândia, o filme dirigido e roteirizado pelo inglês Nic Stacey mostra que a produção massiva da indústria conduz a um desperdício igualmente colossal: no mundo todo, 80% dos têxteis descartados pelos usuários ou pela própria indústria vão parar em aterros ou incineradores, segundo dados da Fundação Ellen MacArthur, que se dedica a promover a economia circular. O caso do plástico também é grave: das 460 milhões de toneladas produzidas em 2022, apenas 9% foram recicladas. O restante se acumula nos oceanos, no solo, no ar, nos pulmões e estômagos de animais – humanos, inclusive.

No Brasil, país que não aparece no documentário, o Mercado Livre, líder de vendas online, oferecia, em meados de 2024, 448 milhões de itens. A companhia, de origem argentina, não reina sozinha. A Shopee, empresa de Singapura que começou a atuar no país em 2019, cresceu 30% no ano passado e passou à frente da Amazon no número de acessos ao site. A plataforma se orgulha de ter aqui mais de 3 milhões de “vendedores”. Em nota, afirma que nada menos do que um em cada três brasileiros acessa o app da Shopee todo mês.

Ser mimado pela entrega em domicílio das compras online é o sonho da geral. Mas, como questiona o bom A conspiração consumista, a que preço? Para satisfazer a voracidade do consumo mundial, 2,5 milhões de pares de sapatos e 69 mil celulares são produzidos a cada hora. Enquanto a produção de bens continua a crescer, praias de Gana e de Bali se transformam em lixões a céu aberto. O volume do consumo global desenfreado ameaça o meio ambiente ao ponto de representar um perigo para a sobrevivência da humanidade. Estamos, diz o documentário, “comprando nossa própria extinção”.

Em 2013, desabou o Rana Plaza, prédio de oito andares que abrigava várias confecções em Daca, capital de Bangladesh. Morreram mais de mil pessoas. As imagens chocantes dos escombros do edifício, com os corpos de costureiras ao lado dos símbolos de grifes conhecidas, me despertaram para o lado sombrio da moda. A confecção de roupas de baixo custo, aparentemente democrática, é realizada em sweatshops (locais de trabalho precários e insalubres).

O horror do Rana Plaza levou a uma mudança drástica no enfoque de meu trabalho como jornalista de moda. De primeiras filas em semanas de desfile e do monitoramento das tendências da estação, do mês ou até da semana (fast fashion é assim), passei aos problemas nas cadeias de produção. Comecei a me interessar por novas matérias-primas sustentáveis, como o couro de abacaxi e a seda de laranja. Uma revolução, ainda tímida, está em curso.

Deixei São Paulo um mês antes da pandemia. Voltei para o Sul de Minas Gerais, minha terra natal. Buscava mais ar puro e mais banhos de cachoeira, menos agitação e menos ímpeto para “fazer a economia girar” ao estilo Faria Lima. Depois de décadas cobrindo moda, almejava uma pausa — e queria colocar em prática o que eu pregava.

Não renego minha história. Em São Paulo, trabalhei em vários lugares muito bacanas, como a Vogue, revista em que fui colunista e colaborei durante treze anos. Continuo atuando ativamente na área. Não virei hippie! Valorizo demais a internet: a volta para o interior só foi possível porque consigo me manter conectada com o mundo. Quando me mudei, acreditava que a tecnologia me possibilitaria ficar próxima da natureza e, assim, ser menos dependente do capitalismo. Quase cinco anos depois, está dando certo, embora eu não seja tão independente do mercado quanto esperava.

Agora, por exemplo, acabei de almoçar fava, grão rico em proteínas, com purê de batatas e uma colher de sea moss – um tipo de alga marinha que enriquece a dieta e é baixíssima em calorias. Essa alimentação natural só é possível porque ainda tenho conexões com uma economia global. A fava chegou à minha cozinha 48 horas após a compra ser efetuada no site da Casa Santa Luzia, supermercado paulistano, a 320 km da minha casa. Fui apresentada à poderosa sea moss por uma modelo em um post no TikTok. A alga orgânica que eu compro vem dos Estados Unidos, pelo Mercado Livre. Pelo que li, ela só dá nas costas norte-americana e irlandesa. O almoço saudável parece menos virtuoso quando se calcula a pegada de carbono desse ziguezague internacional.

Sou velha de guerra no mundo do consumo. Não me deslumbro fácil, não permito que marcas ou grifes me definam. Passei a ter vergonha de exibir logos de marcas internacionais de luxo.

Li a Vida para Consumo, livro em que o filósofo polonês Zygmunt Bauman afirma que comprar se tornou o propósito central da existência humana: “Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro se tornar mercadoria (…)”. De cidadãos ativos passamos, no que ele chama de “modernidade líquida”, a consumidores passivos. Bauman explica que na sociedade sólida do passado existiam trabalhadores e proprietários. Todos compravam por necessidade e para ter segurança. Os proprietários, claro, tinham condições de adquirir supérfluos. Os produtos não-alimentícios eram em geral pesadões, feitos para durar para sempre. Caso houvesse alguma intempérie – guerra, epidemias, crash da Bolsa – , a manutenção da vida estava razoavelmente assegurada.

Nas sociedades de consumo atuais, cada compra traz satisfação momentânea, seguida pelo vazio que só pode ser preenchido com outra compra. É um ciclo que não termina. Mesmo eu, que vivo sob as regras da sustentabilidade, vira e mexe me pego na tentação e preciso me policiar. Aprendi que a melhor maneira de fazer isso é não ceder ao primeiro impulso. Pesquiso e clico bastante nos sites de comércio. Deixo no carrinho os itens que me atraíram e, com calma, alguns dias depois, decido se vale a pena adquiri-los. Que fique claro, não vivo uma vida espartana. Acompanho os desfiles, amo cosméticos, amo a moda. Fico ligada no que o Pharrell Williams, músico que adoro, faz a cada estação como estilista da Louis Vuitton masculina (até agora, nada de especial: absorvido pelo maior conglomerado de luxo do mundo, o LVMH, o cantor de Happy não conseguiu mostrar sua originalidade).

Moral da história: dá para viver de forma diferente, mas até a mais regenerada das fashionistas não vive fora da bolha do consumo. Por isso, recomendo A conspiração consumista, documentário que nos ajuda a entender o mundo do consumo para que não nos tornemos uma vítima dele. O roteiro e a estética são modernos, e as imagens produzidas por inteligência artificial funcionam bem para ilustrar o volume do que compramos e do que desperdiçamos. A mais eletrizante delas mostra pilhas e pilhas de lixo colorido invadindo uma cidade que parece ser Nova York.

O documentário dá voz a críticos da irracionalidade das cadeias produtivas atuais, como a ativista e tiktoker Anna Sacks, de Nova York, que combate o desperdício corporativo, e o especialista em reciclagem Jim Puckett. Também entrevista profissionais que já trabalharam para empresas que ocupam a vanguarda do hiperconsumismo, como o ex-presidente da Adidas Eric Liedtke e o ex-engenheiro da Apple Nirav Patel. A grande estrela é Maren Costa, que já foi o braço direito de Jeff Bezos, fundador da Amazon, até ser demitida por tentar fazer mudanças internas. Ela conta como ajudou a inventar mecanismos para induzir a compra online por impulso. “Você está sendo 100% manipulado”, avisa Costa, hoje uma ativista. “Existe uma ciência para te fazer comprar sem pensar. É uma ciência refinada, complexa. (…) Fui uma especialista nela”.

A manipulação invisível nos captura enquanto nos dá a ilusão de que temos o poder de escolha. Um mecanismo comum dessa manipulação é a saturação de anúncios que se segue a uma pesquisa na internet – aquela praga de pesquisar por “tênis branco” e ser perseguido por anúncios de tênis branco por uma breve eternidade. No jargão do e-commerce, isso se chama “facilitar a experiência do usuário”.

A produção em massa alterou a natureza até do mercado de luxo. Algumas das maiores casas de luxo do mundo, como Hermès, Louis Vuitton, Burberry e Tiffany, nasceram no século XIX, junto com as ferrovias e a Segunda Revolução Industrial. O trabalho então tinha mais peso do que o consumo. Itens de grande valor eram feitos para durar. O armário da avó tornava-se herança da neta.

Ficou desse tempo a noção romântica de que luxo é sinônimo de exclusividade e manufatura cuidadosa. Mas se engana quem imagina que a bolsa Speedy da Louis Vuitton e os óculos da Balenciaga custam muito porque são feitos por um artesão experiente e muito bem pago em algum atelier idílico da França. Na verdade, hoje estamos na era de bens de consumo caros produzidos em massa por operários nem sempre livres da exploração. É o fast luxo.

Os altos executivos da moda não querem que saibamos como funciona o fast luxo. Porém, está difícil manter as aparências. No ano passado, uma fábrica que produzia bolsas Dior na Itália foi denunciada por exploração trabalhista. Os promotores do caso afirmam que os funcionários eram obrigados a dormir no local para que houvesse “mão-de-obra disponível 24 horas”. A oficina, informa o inquérito, produzia carteiras ao custo de 53 euros para serem vendidas nas lojas a 2.600 euros. A Dior alega que esse caso escapou das “auditorias regulares” que realiza em suas fornecedoras. A marca não é a única: Armani, Loro Piana e outras empresas também enfrentam processos.

No pós-pandemia, muitos itens de luxo estão sendo feitos com desleixo. Os canais de YouTube Blessy Roy e Romina Rose May, entre outros, mostram aquisições caras que se avariam com pouco tempo de uso. Juntou-se a esses youtubers, em dezembro, Katharine Zarrella, editora de moda. O jornal The New York Times publicou um desabafo dela com o título Preços obscenos, qualidade em declínio: o luxo está em uma espiral de morte. No artigo, Zarrella conta que sua bota da marca Marc Jacobs, que leva o nome do ex-estilista da Vuitton, ficou sem calcanhar após ser usada meia dúzia de vezes. Após o reparo, na primeira voltinha na rua, o salto quebrou. A jornalista chegou em casa mancando. A marca devolveu o dinheiro, que foi prontamente usado em sessões de fisioterapia. Meses antes da publicação desse texto, uma reportagem do New York Times já havia tratado do declínio do luxo.

No meio da lama consumista, mudanças estão brotando. No ano passado a trend #subconsumo foi uma das mais viralizadas das redes sociais (não no Brasil, porém). O chique, dizem os adeptos, é usar até acabar. Aí, sim, está liberado comprar outro item. A prática serve para tudo, da pasta de dente à calça jeans. O subconsumo é o movimento de quem furou a bolha e vive com a consciência de que estamos nos enfiando em um atoleiro.

Em pesquisas de opinião, quase todo mundo diz preferir o que é sustentável. Segundo a Confederação Nacional das Indústrias (CNI), 81% dos consumidores brasileiros afirmam ter hábitos sustentáveis e se preocupam com a sustentabilidade dos produtos que levam pra casa. Na prática, porém, esse cuidado não se concretiza. Os acadêmicos das disciplinas de sustentabilidade ambiental chamam esse fenômeno de Lacuna Intenção-Comportamento. A pessoa tem boas intenções, mas não as põe em prática. No momento, muitos estudos procuram desvendar e resolver esse obstáculo.

Ainda mais difícil é fazer com que as empresas assumam a responsabilidade de colocar no mercado produtos com menos impacto negativo para o meio ambiente. O greenwashing (embustes que só são ecológicos no discurso) bomba. Em 2024, uma pesquisa do Market Analysis, de Florianópolis, mostrou que 81% dos produtos avaliados que traziam em suas embalagens algum tipo de atributo ambiental mentiam. Produtos de limpeza são os campeões dessa forma de propaganda enganosa, aponta o relatório.

Como chegamos ao ponto de nossa existência ser uma ameaça a nós mesmos? Outro documentário oferece uma resposta psicanalítica a essa pergunta. Lançado pela BBC em 2002, The Century of the Self, de Adam Curtis, apresenta o vienense Edward Bernays (1891-1995), sobrinho de Sigmund Freud e pioneiro da profissão de relações públicas moderna. Ainda criança, ele imigrou com a família para os Estados Unidos. Depois de ler Conferências introdutórias à psicanálise, livro de 1917 – que ganhou de presente do autor, seu tio –, ficou fascinado por manipular o inconsciente das massas.

Bernays foi pioneiro a associar o desejo consumista à promessa de pertencimento, de status e de autoestima. Uma de suas ações publicitárias mais famosas foi patrocinada pela Corporação Americana de Tabaco, que se ressentia do fato de que então só se aceitava que os homens fumassem em público. Bernays decidiu quebrar o tabu. Em 1929, reuniu jovens lindas e de família e as enviou para uma passeata sufragista em Nova York. A um sinal de Bernays, todas acenderam cigarros. Fotógrafos da grande imprensa estavam a postos. No dia seguinte, os jornais divulgavam a novidade na capa: a moda entre mulheres modernas e independentes era fumar. Bernays chamou os cigarros de “tochas da liberdade”. E assim a indústria tabagista conquistou o público feminino.

Pela mesma época, surgia uma estratégia perversa que nos conduziu diretamente aos lixões de plástico e de eletrônicos: a obsolescência programada. Formado há exatos cem anos, em janeiro de 1925, o Cartel Phoebus reuniu fabricantes de lâmpadas que decidiram limitar a vida útil do produto – de 2.500 para 1.000 horas. Hoje, essa lógica está em quase tudo que encontramos nas lojas.

Bauman diz que a obsolescência não é apenas material: é existencial. Cada nova compra é uma tentativa de preencher o vazio emocional criado pelo próprio sistema. Ele alerta que o consumismo nos transformou em “máquinas ambulantes de felicidade”. De uma felicidade ilusória, que vem à custa de um planeta que não pode mais sustentar desejos infinitos. Não quero fazer a dramática, mas é verdade: cada clique, cada compra por impulso, nos aproxima de um ponto sem volta. E quanto tempo ainda temos antes que esse sistema nos consuma?

 

Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-industria-da-moda-contra-o-planeta/

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