À medida que Washington reduz seu compromisso armamentício com a Europa, muitos dos líderes do continente falam em tornar a UE uma superpotência militar. É uma perspectiva irreal, mas corre o risco de se tornar o principal foco de gastos do bloco num momento grave de crise e ascensão da extrema direita.
Por: Nathan Akehurst | Tradução: Pedro Silva | Crédito Foto: Issouf Sanogo / AFP via Getty Images. Soldados franceses se preparam para deixar o campo militar General Thomas d’Aquin Ouattara em Port-Bouet, Abidjan, em 20 de fevereiro de 2025
Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem, diz um aforismo atribuído erroneamente a Vladimir Lênin.
A quinzena entre a crítica de JD Vance contra a Europa na Conferência de Segurança de Munique e a repreensão cruel de Vance e Donald Trump ao presidente ucraniano Volodymyr Zelensky no Salão Oval parece mais com a segunda parte da frase.
Washington ameaça implodir a aliança ocidental do pós-guerra, e raramente um império começou a dilapidar as estruturas que sustentam seu poder com tanta alegria.
Mas a teatralidade de Trump é mais um sintoma do que a causa do problema. Enquanto um cisma transatlântico se coloca, há mais continuidade entre ele e seus rivais do que parece à primeira vista. Muitos líderes europeus veem uma oportunidade de finalmente sair da sombra de Washington: mas, apesar de todos os planos de gastos, sua tentativa de alcançar o status de grande potência parece muito pouco convincente.
Declínio e queda do império estadunidense
Os liberais estão atualmente condenando a destruição da aliança ocidental que defendia a liberdade e a democracia levada a cabo por Trump.
É tentador zombar. A ordem pós-guerra liderada pelos EUA significou um reinado de terror; dos golpes latino-americanos ao genocídio indonésio, da Coreia e Vietnã ao Iraque e Afeganistão, e através da miséria econômica imposta a países não-conformes via ajuste estrutural.
Mas a estratégia dos Estados Unidos, baseada numa reivindicação moral de valores universais, numa reivindicação militar de poder apocalíptico e numa reivindicação econômica de capacidade e vontade de subscrever o capitalismo global, exigiu também persuasão, não apenas força.
Washington explorou sua capacidade de oferecer segurança aos aliados, atuar como credor de última instância, desembolsar ajuda, ajudar a manter instituições internacionais e vender uma visão que poderia competir com uma ordem mundial comunista ou um mundo hobbesiano de todos contra todos.
O trumpismo reflete o amadurecimento de uma mudança marcada pelo afastamento dessa visão de mundo. Uma década atrás, enquanto a direita insurgente se movia para cooptar o ressentimento frente a injustiça socioeconômica, ela também buscava explorar a traição de Barack Obama à sua promessa de acabar com as guerras eternas.
Um conjunto de preocupações politicamente díspares — falhas na política externa estadunidense, excesso de autoridade nos serviços de segurança, declínio industrial, imigração e legislação igualitária — foi reunido na crítica a uma agenda liberal “globalista” ou “consciente”.
Vance se tornou o testa de ferro para essa linha de ataque — uma voz insurgente que diz que o império estadunidense pode sustentar as fantasias dos pensadores de Beltway, mas faz pouco pelos caipiras dos Apalaches.
Os liberais também fizeram a sua parte, revestindo a máquina de guerra estadunidense com uma linguagem progressista, com as pesquisas de 2022 revelando uma reversão drástica nas atitudes partidárias em relação aos serviços de segurança.
Mas se a política mudou, isso ocorreu devido a uma mudança na realidade estratégica.
A China já cortou as asas dos Estados Unidos em múltiplas dimensões. Ameaças ao domínio do dólar são às vezes exageradas, mas reais. O Consenso de Washington de livre comércio está em frangalhos. Assim também está o projeto de Washington de enfraquecer e conter a Rússia pós-soviética.
E apesar de um orçamento militar absurdamente inflado, os Estados Unidos lutam para alcançar vitórias militares ou projetar poder como antes.
O governo de Joe Biden já havia se aproximado de uma abordagem menos expansiva — o que foi chamado de “política externa para a classe média (estadunidense)”.
Biden recuou no Afeganistão. Assim como Trump, ele propôs o acesso dos EUA aos minerais críticos da Ucrânia em troca de suporte de segurança. Ele desenvolveu uma política industrial que marginalizou os interesses europeus. E se afastou do livre comércio neoliberal em direção às cadeias de suprimentos de “friendshoring” para minar a China.
Essa abordagem relativamente cautelosa à reorientação, no entanto, foi rejeitada por Trump.
A nova administração representa tendências concorrentes. Há os críticos da política externa como Vance e Tulsi Gabbard. Há mais falcões neoconservadores clássicos remanescentes, embora menos do que no primeiro mandato de Trump.
E então temos Elon Musk, cuja oposição ao militarismo estadunidense parece estar enraizada no desejo de minar o relacionamento do Estado com grandes empresas de armas e substituí-las pelo Vale do Silício.
O compromisso emergente parece ser com uma retirada da projeção de poder global ao longo de múltiplos eixos, para focar em algumas áreas principais de interesse. Assim, o apoio implacável a Israel permanece, enquanto os outros interesses dos aliados da UE são sacrificados. Em uma reversão dos apelos nixonianos à China, Pequim está substituindo Moscou como o principal polo do antagonismo estadunidense, como Elbridge Colby — o pensador mais sério de política externa de Trump — há muito defende.
Para um novo mundo multipolar, a ordem neoliberal global está fora de moda e uma Weltpolitik mais restrita e transacional está na ordem do dia.
Resposta europeia
Washington se recusa a nos defender, então agora devemos fazê-lo por nós mesmos, é o argumento em Bruxelas. Líderes europeus, até mesmo os ex-pacifistas Verdes, agora falam de grandes planos para a remilitarização.
Há uma corrida armamentista para ser mais extremo — propostas para que 3% do PIB sejam dedicados a gastos de guerra são recebidas com contrapropostas de 5%. De uma versão da União Europeia da CIA a uma “Euronuke” girando entre capitais da UE, nenhuma ideia parece absurda demais.
A Comissão Europeia revelou agora um plano que, segundo ela, mobilizará € 800 bilhões em gastos militares em todo o bloco.
Isso já estava para acontecer há muito tempo. Quando o Reino Unido deixou a UE, os euromilitaristas viram a remoção de um dos bloqueios mais significativos à integração militar europeia e começaram a arriscar.
Os compromissos militares da UE aumentaram, do Sahel a Moçambique, onde as tropas chegaram para ajudar o exército a combater os insurgentes (leia-se: proteger os interesses energéticos europeus).
A força de fronteira da EU, Frontex — “tropas civis vestindo um uniforme europeu”, nas palavras de seu ex-diretor desonrado — forneceu um precedente valioso para a militarização posterior.
Mas desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, as propostas se tornaram estratosféricas.
Inicialmente, a Europa apostou tudo na vitória na Ucrânia. Agora, sua retórica está se afastando bruscamente de enquadrar a Rússia como um inimigo facilmente derrotável para o risco eminente de uma invasão da Europa.
Mas o que os bilhões em novos gastos de defesa da UE e dos países-membros realmente pretendem fazer é menos claro.
A capitulação parcial de Zelensky a Trump reflete os limites rígidos de continuar a guerra sem material dos EUA, da defesa aérea aos ataques de longo alcance. Os Estados Unidos contribuíram, por exemplo, com três milhões de projéteis de artilharia de 155 mm, enquanto a União Europeia forneceu um milhão, com a Rússia disparando projéteis em uma proporção de 5:1 desde o ano passado.
E isso é só a Ucrânia. Os belicistas da Europa possuem uma grande ambição em se tornarem uma potência da magnitude de Rússia, China ou Estados Unidos. Mas, de certa forma, eles não são ambiciosos o suficiente; tais objetivos exigiriam centralização e mobilização em uma escala que não está sendo discutida, porque poucos achariam isso palatável.
Um influente think tank de Bruxelas argumentou que 300.000 novas tropas seriam necessárias. Onde a mão de obra poderia ser encontrada não fica claro.
Ver Bruxelas falando de guerra é um pouco parecido com assistir a um guarda de trânsito com uma prancheta tentando empunhar uma metralhadora. O entusiasmo é alto, mas o nível de racionalidade da discussão é baixo.
E apesar de toda a conversa sobre um complexo militar-industrial da UE, a indústria dos EUA continuará criando e atendendo às demandas militares da Europa.
A insistência de Trump de que a Europa deve “pagar sua parte justa” pela OTAN e a insistência dos líderes anti-Trump da UE em uma defesa independente acabam no mesmo lugar — os cofres dos industriais estadunidenses do setor armamentista.
O problema mais profundo é revelado na pergunta feita por Vance em Munique: Vocês podem falar sobre defesa, mas o que estão defendendo?
A história da UE é a de um bloco construído a partir do reconhecimento de que os horrores da Segunda Guerra Mundial nunca mais poderiam acontecer. Sua resposta foi a expansão gradual de mercados e movimentos regulados por regras comuns e sustentados por valores comuns — regras e valores que supostamente diferenciavam a Europa tanto dos autoritários a leste quanto dos bucaneiros a oeste.
No seu auge, em áreas como política climática e direitos do consumidor, representou alguns avanços genuinamente progressistas.
Mas, à medida que as crises dos anos pós-quebra começaram a apertar, tornou-se algo diferente. O lado negro do europeísmo surgiu primeiro na disciplina brutal do sul da Europa durante a crise financeira, depois no abandono silencioso de muitos de seus padrões de direitos humanos para fechar a porta para os refugiados.
Sua política externa agora é principalmente transacional; busca alianças com governos autoritários em troca de segurança energética, cooperação militar e controle migratório.
Enquanto Trump construía um muro na fronteira com o México, veículos fornecidos pela UE patrulhavam um muro maior para impedir que os sírios cruzassem a fronteira rumo à Turquia.
Qualquer liderança moral que a UE possa ter mantido — principalmente em resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia — é destruída por sua contínua adesão a Israel, mais de um ano e meio após o início de sua campanha genocida em Gaza.
À medida que os processos de adesão de países candidatos estagnam, os cismas entre os países se aprofundam e a direita populista, contra a qual a UE deveria ser um baluarte, acumula mais poder do que nunca em Bruxelas, não está claro em que base política o projeto europeu pode se sustentar.
Os líderes europeus podem apresentar-se como uma “Coligação dos Dispostos”, mas os seus interesses estão longe de ser unificados.
À medida que a “ordem baseada em regras” se desintegra, a Europa poderia ter escolhido jogar bem a carta que tinha na mão, tornando-se um farol global para o Estado de direito, a cooperação econômica pacífica e os direitos humanos.
Em vez disso, está tentando jogar uma carta que não tem: a de uma potência militar de peso.
Sua abordagem ao poder se tornou mais antiliberal e mais limitada — muito parecida com a de sua bête noire, Donald Trump.
Austeridade ou militarismo?
Foram dois dias difíceis para Keir Starmer, do Reino Unido.
Os elogios por sua adesão a Trump rapidamente desapareceram após a discussão com Zelensky no Salão Oval, deixando-o para receber líderes europeus em Londres enquanto eles questionavam a lado do Atlântico ele era leal.
Junto com Giorgia Meloni, da Itália, ele falou sobre sua capacidade de fornecer uma ponte estratégica entre a UE e os Estados Unidos.
Esse é sempre o papel que a Grã-Bretanha tentou desempenhar na aliança ocidental, reconhecendo sua posição pós-imperial, mas ainda tentando manter uma influência descomunal.
Um governo trabalhista teve um papel fundamental no desenvolvimento da OTAN. E um oficial britânico de carreira e filho da Índia imperial, Lord Hastings Ismay, foi o primeiro secretário-geral da aliança.
Em 2020, a Grã-Bretanha desenvolveu sua mais nova estratégia para projeção de poder neoimperial sob Boris Johnson.
Durou pouco, mas agora a Grã-Bretanha também lidera uma mudança para longe da geopolítica liberal. No final de fevereiro, a ministra do desenvolvimento internacional Anneliese Dodds renunciou em protesto contra a decisão de Starmer de cortar o orçamento de ajuda externa para gasto com armas.
Da proposta de criação de um “DOGE” britânico (o novo Departamento de Eficiência Governamental dos Estados Unidos) à transmissão ao vivo de deportações em massa, o governo britânico parece interessado em seguir os caminhos que Washington conduzir.
Outros países — França, Finlândia, Suécia, Holanda e Alemanha — também estão reduzindo a ajuda externa para reforçar gastos militares.
A dificuldade de chegar a um acordo sobre uma meta, mesmo que parcial, para o financiamento climático em Baku, em novembro, dá outra indicação de onde estão as prioridades.
O foco simbólico no corte da ajuda provavelmente visa evitar muita discussão sobre de onde virá a maior parte do dinheiro para armamentos: dos já sobrecarregados orçamentos de assistência social.
O atual ministro da Defesa da Alemanha — em um governo que foi fiscalmente agressivo a ponto de se autossabotar — está exigindo o dobro da meta da OTAN para gastos militares.
Enquanto isso, a UE promete afrouxar as duras regras fiscais, mas apenas para defesa, apesar do colapso dos padrões de vida, economias em desaceleração e o enorme déficit financeiro necessário para enfrentar a crise climática. Aparentemente, as únicas escolhas são austeridade ou guerra.
Quase todos os líderes ocidentais atualmente no poder chegaram lá com base em promessas de enfrentamento à paralisante crise do custo de vida. Em vez disso, eles apregoam a falsa promessa de que alguma forma de keynesianismo militar pode reavivar economias em declínio.
É difícil prever se os Estados Unidos e a UE conseguirão reparar o cisma que Trump criou na aliança ocidental.
Mas em ambos os lados do Atlântico, o novo Ocidente já está aqui: despojado de seu liberalismo residual, obcecado por “armas em vez de manteiga”, construindo muros físicos e metafóricos, e mais estreito em sua abordagem geopolítica.
Os dias da hegemonia unipolar estadunidense ou do duopólio da Guerra Fria acabaram. Alguém provavelmente teria que olhar para o Concerto da Europa do século XIX e suas monarquias imperiais interligadas, mas rivais, para encontrar qualquer tipo de analogia para esse momento de competição intensa paralela a riqueza e poder ultraconcentrados.
O neoliberalismo global está com os dias contados, mas sua substituição militarizada não é menos voltada para o lucro e transacional, e não está mais alinhada com qualquer tentativa de resolver as verdadeiras emergências que enfrentamos.
Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/03/a-perigosa-esperanca-militar-da-europa/
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