Programa que promove merenda escolar com alimentos naturais e pouco processados é exitoso, mas tem limites. O maior deles é o avanço da indústria alimentícia, que busca expandir o consumo dos ultraprocessados. Sua proibição é apenas o primeiro passo
Por: Guilherme Arruda | Crédito Foto: Agência Brasil
Na disputa pelo que comem os brasileiros, travada com ardor pelos grandes grupos da indústria alimentícia, as escolas têm sido um dos principais campos de batalha devido a seu papel decisivo na formação da cultura alimentar das gerações mais jovens.
Criado há décadas, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é considerado exitoso e prevê a compra prioritária de alimentos naturais e minimamente processados, oriundos da agricultura familiar. Sua oferta aos estudantes cumpre um papel importante em sua boa nutrição e ajuda a pôr limites à entrada de alimentos industrializados e não-saudáveis na dieta de crianças e adolescentes. Contudo, especialistas destacam que há muitas variáveis que ainda põem entraves à implementação mais plena do PNAE, que vão dos artigos que se vendem nas cantinas escolares à insuficiência de alguns dispositivos legais que orientam sua aplicação.
Em artigo publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, o periódico científico da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), um grupo de pesquisadores buscou mapear e avaliar de forma ampla, por meio de uma série de visitas técnicas a escolas públicas do país, quais são esses principais fatores que estimulam ou desestimulam a alimentação saudável nesse ambiente educacional.
Há alguns fatores considerados “competidores” em relação à promoção da alimentação escolar saudável. A indústria alimentícia tem um papel importante nesse aspecto, em sua busca por expandir o consumo dos alimentos ultraprocessados. Por se tratar de formulações industriais de baixíssimo valor nutricional, esse tipo de comida é um dos principais entraves à boa alimentação da população brasileira de forma geral. No artigo, os pesquisadores sugerem caminhos para reduzir seu consumo nas escolas.
O importante papel de refeitórios e hortas escolares
Para realizar a pesquisa, o grupo de autores realizou visitas a diversas instituições públicas de ensino do Rio de Janeiro, incluindo escolas de Ensino Infantil, Ensino Fundamental I e Ensino Fundamental II. Nelas, buscou encontrar quais ações – apresentadas a seguir – estavam sendo implementadas para promover a alimentação saudável.
As escolas com melhores iniciativas são aquelas que promovem aquilo que os pesquisadores denominam “uma abordagem completa”. Isto é, uma estratégia que “inclui não apenas a oferta de alimentos saudáveis na escola, mas também a educação alimentar, a criação de uma cultura alimentar positiva e o envolvimento dos pais e da comunidade”, explicam. A educação alimentar se faz presente, por exemplo, através da organização de murais sobre o tema da alimentação, mas também de hortas mantidas pela própria comunidade escolar.
A existência de refeitórios escolares, apontam, é outra ferramenta central para estimular uma alimentação saudável. “A presença de refeitório em todas as escolas também é um fator promotor da alimentação escolar devido às suas características estruturais e sensoriais que auxiliam na concentração no momento da refeição, permitindo que as preparações culinárias sejam apreciadas, contribuindo para que o ato de comer se torne um momento prazeroso”, definem.
Além disso, foi observado que a presença dos professores durante as refeições também oferece um estímulo para que os jovens valorizem aquele momento e sigam o exemplo de alimentação saudável dos adultos.
O que compromete a boa alimentação
Apesar da existência do importante programa nacional e das medidas citadas, que promovem o consumo de comida saudável nas escolas, os pesquisadores frisam que elas sofrem concorrência cerrada dos ultraprocessados – o que pôde ser comprovado nas visitas a colégios públicos realizadas no contexto do estudo. Nas palavras dos autores, há “fatores que competem com a alimentação oferecida nas escolas pelo PNAE comprometendo a sua adesão, favorecendo o ganho de peso e a formação de hábitos alimentares inadequados” entre os jovens.
Como frisam os pesquisadores, “um ambiente alimentar que promova o acesso e a disponibilidade a alimentos saudáveis pode incentivar escolhas mais nutritivas, enquanto a presença predominante de alimentos menos saudáveis pode levar a uma dieta menos equilibrada”.
Um desses fatores que competem com a boa alimentação é a presença de cantinas nas quais a venda de ultraprocessados predominam. Complexo, o problema não se resolveria com a proibição do comércio no interior das instituições de ensino. Mesmo nos estabelecimentos de educação infantil, apesar de não haver cantinas que vendessem alimentos ultraprocessados, os estudiosos identificaram que eles estavam presentes nos lanches enviados pelas famílias às crianças – salgadinhos e refrigerantes, por exemplo.
Outros fatores indicados como “competidores” que enfraquecem a alimentação saudável são a venda informal de alimentos dentro das escolas e a presença de embalagens de alimentos ultraprocessados circulando em seu interior. Esses elementos, definem os estudiosos, criam um “ambiente obesogênico”, isto é, promovem uma alimentação não-saudável que estimula o ganho excessivo de peso e os problemas de saúde associados a essa condição.
Desafio dos ultraprocessados
Nas escolas cariocas analisadas pelo estudo, de forma geral, os fatores considerados “promotores da alimentação saudável” foram predominantes em relação aos “competidores”. Contudo, há nuances relevantes: nas escolas de Fundamental II, o cenário é inverso, e os elementos que desestimulam o consumo de comidas benéficas à saúde são mais proeminentes.
É possível conjecturar sobre o que está por trás desse fenômeno: a indústria alimentícia consideraria os jovens desta faixa etária “alvos prioritários” de seus produtos? Recentemente, uma pesquisa que analisou 2 mil escolas particulares em todo o país identificou que os alimentos ultraprocessados são 50% mais vendidos no interior e no entorno desses estabelecimentos do que alimentos naturais ou minimamente processados.
Seja qual for a razão, o fato é que “esse paradoxo, no mínimo, confunde os alunos a quererem experimentar ou rejeitar a alimentação escolar, tornando-se um desafio alcançar uma alta adesão e garantir a segurança alimentar pelos estudantes conforme os preceitos de universalidade do PNAE”, avaliam os pesquisadores.
Para os pesquisadores, as lacunas na legislação são um dos principais motivos para a presença ainda significativa desses obstáculos à alimentação saudável dos mais jovens. Apesar de o PNAE promover e orientar a aquisição de produtos da agricultura familiar como parte da alimentação escolar, “medidas regulatórias com peso de lei não avançaram, especialmente no que tange à comercialização de produtos alimentícios nos espaços escolares, demonstrando lacunas regulatórias e de políticas públicas efetivas que protejam os ambientes escolares da oferta de produtos ultraprocessados”, definem.
No caso das iniciativas do poder público que já existem e buscam restringir a presença de alimentos não saudáveis nas escolas, “ainda é um desafio o seu cumprimento na íntegra”.
Para enfrentar o problema, os autores indicam como ações de grande importância a criação de medidas obrigatórias de “proibição de entrada de alimentos ultraprocessados nas escolas”, além do “fortalecimento de estratégias de apoio e incentivo à alimentação saudável”.
Para além do embate nas salas de aula, Outra Saúde noticiou no ano passado a disputa em torno da taxação dos ultraprocessados na Reforma Tributária, que poderia ser uma importante medida para desestimular seu consumo no país. Contudo, uma série de brechas no texto aprovado pelo Congresso Nacional poderá levar vários desses alimentos – como a margarina, os pães industrializados e o macarrão instantâneo – a receberem incentivos fiscais, ficando ainda mais baratos. Um passo atrás, dizem especialistas, na luta por uma alimentação saudável para os brasileiros.
Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/outrasaude/as-batalhas-pela-comida-saudavel-nas-escolas/
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