Colapso do sistema está em curso: corpos exaustos, crise climática e democracia agonizante. Resignação não serve: e se o papel do revolucionário for escancarar a realidade para que se possa parir outro mundo, no limiar deste que se esgota?
Por: Gil-Manuel Hernàndez i Martí, na Revista 15/15\15 | Tradução: Rôney Rodrigues | Crédito Foto: Ethan Swope, AP
Viver dentro de uma ficção
Em seu estudo sobre os últimos dias da União Soviética, Tudo era para sempre até deixar de existir, publicado originalmente em 2005, o antropólogo russo Alexei Yurchak (2024) cunhou um conceito fundamental para entender as formas de vida presas em sistemas agonizantes: a hipernormalização. Naquele contexto, o aparato estatal, os cidadãos e as estruturas sociais sabiam — em diferentes graus — que o sistema soviético não funcionava mais. A retórica oficial havia esvaziado de sentido. Tornara-se uma ficção absurda. Mesmo assim, todos continuavam agindo como se a ordem vigente ainda estivesse de pé. Não porque acreditassem nela, mas porque não conseguiam imaginar outra coisa senão aquele regime que afundava por todos os lados, ainda que todos fingissem e simulassem que não era assim. A falsidade era hipernormal. O absurdo virou rotina. O colapso do sistema, embora visível em múltiplos sinais, era vivido como algo impensável, inconcebível, inimaginável.
Como destacou Iván de la Nuez (2024), o estudo de Yurchak rastreia aqueles ecos da vida cotidiana que acompanharam a hecatombe do socialismo tardio, marcados por um fenômeno curioso: no grande e no pequeno, as pessoas se aproximaram do abismo convencidas de que seu mundo era imortal. Que aquele mundo estava escorado “para sempre”, como as grandes estátuas do realismo, os discursos grandiloquentes, os desfiles infinitos, os planos monumentais, as conquistas na estratosfera, a imersão na corrida nuclear, os êxitos esportivos. Pura aparência. De modo que, quando o sistema soviético começou a agonizar, apesar dos sintomas cada vez mais eloqüentes, seu desaparecimento não cabia na cabeça da sociedade nem de suas elites: “Pelo contrário, esse desmoronamento aconteceu sob a sombra de um pacto implícito entre a Nomenklatura e as pessoas comuns para desviar o olhar e seguir na inércia”. Para De la Nuez, tamanha indolência, compartilhada diante do desastre, é descrita com um termo inequívoco: hipernormalização. O lema daquela hipernormalidade, daquela aparente imutabilidade sob a qual tudo estava se transformando, parecia ser este: “que nada mude para que tudo mude”. No entanto, e eis aí outro paradoxo destacado por Yurchak (2024:20), “embora a queda do sistema fosse inimaginável antes de começar, não surpreendeu ninguém quando aconteceu”.
Como prossegue De la Nuez, no mundo capitalista, a crise financeira de 2008 acionou todos os alarmes e colocou em dúvida a superstição difundida de que o capitalismo também seria “para sempre”. Foi então que o cineasta e escritor britânico Adam Curtis adaptou, em 2016, o conceito de hipernormalização em um documentário sobre a crise do capitalismo tardio, intitulado HiperNormalisation. No documentário, Curtis explica e argumenta como, desde os anos 1970, governos financeiros e tecnoutópicos construíram um autêntico “mundo-mentira”, dirigido por corporações e mantido estável pelos políticos. Mas, ao contrário de Yurchak, que busca no subsolo do visível, Curtis se move pelo evidente e epidérmico, pelas imagens que a mídia bombardeia sobre nós. Como aconteceu na União Soviética, o sistema não sabe ou não quer saber de seu desmoronamento, que é bem real e se manifesta em múltiplas evidências. Daí tanto negacionismo promovido pelo poder. O sistema em crise terminal não quer se reconhecer, pois se baseou na fé em sua eternidade, em ser feito para sempre: “Por isso, a hipernormalização — um conceito extremamente fértil — nos serve para entender as crises respectivas do comunismo, do capitalismo e do que hoje se convencionou chamar de mundo pós-democrático” (De la Nuez, 2024). O futuro do capitalismo era radiante e também nos anunciaram que era para sempre, mas a cada dia que passa seu naufrágio, sua finitude, ou seja, seu colapso, se torna mais visível.
Como sintetiza Miguel Cane (2025), o conceito de hipernormalização possui uma relevância na sociedade contemporânea tão marcante que parece ter sido inventado ontem. Para este autor, “o conceito descreve um fenômeno em que a realidade se torna tão complexa, caótica e absurda que as pessoas, incapazes de compreendê-la ou mudá-la, optam por aceitar uma versão fictícia e simplificada dela. É uma espécie de pacto coletivo: todos sabemos que o sistema está podre, mas fingimos que não está para poder seguir em frente. Yurchak o chamou de ‘hipernormalização’ porque, em vez de normalizar, levamos a ficção a um nível hiperbólico, onde a mentira se torna a norma (…) A hipernormalização não é apenas um conceito acadêmico; é uma realidade cotidiana, um mecanismo de sobrevivência em um mundo que parece decidido a implodir.”
Por isso, sustentamos que esse mesmo mecanismo psicossocial de hipernormalização se redefiniu em escala global no presente. Hoje, em meio a um colapso civilizatório multidimensional —climático, energético, econômico, institucional, cultural —, o mundo contemporâneo vive uma hipernormalização em escala planetária. Diariamente, multiplicam-se os sinais do fim de uma era, mas continua-se operando sob as coordenadas do crescimento infinito, do progresso, da inovação salvadora e da restauração impossível de uma normalidade que já operava por uma lógica de crises recorrentes antes do desmoronamento final. Vivemos em um mundo onde tudo parece continuar, mesmo que tudo esteja desmoronando.
A hipernormalização é um paradoxo: ao impor a ficção de que o sistema é estável, os poderes dominantes que vivem dele não o salvam, mas agravam seu colapso. Ignorar os sinais de crise —econômicos, ecológicos, psíquicos, sociais — não detém a deterioração: acelera-a de forma corrosiva e descontrolada. Assim, ao tentar preservar a normalidade, o que realmente se consegue é intensificar o colapso civilizatório. Quanto maior a hipernormalização, mais se reproduzem as rupturas nas estruturas do sistema. Dito de outro modo, a hipernormalização intensifica o colapso e aumenta as probabilidades de que ele seja caótico e catastrófico. Este é o paradoxo que urge explorar se quisermos recuperar alguma forma de lucidez coletiva.
Um colapso evidente, mas inaceitável
A esta altura, acumulam-se dados demolidores. O sistema climático ultrapassou pontos de não retorno. Os recursos fósseis de alta qualidade se esgotam ou tornam-se inacessíveis. A biodiversidade entra em colapso em um ritmo sem precedentes. A economia mundial, sustentada pela dívida e pela ilusão monetária, oscila sob o peso de suas próprias contradições. A desigualdade social e a dissolução do tecido comunitário avançam em paralelo. As guerras ressurgem como forma sistêmica de reorganização do mundo. O clima entra em uma fase caótica e de retroalimentações não lineares. E as instituições democráticas perdem legitimidade devido à sua incapacidade de responder à emergência estrutural. A isso soma-se uma multidão de sinais —particularmente evidentes no Sul Global e nas periferias do Norte Global — que desmentem a narrativa dominante de que tudo vai bem, e que revelam a farsa da normalidade junto a múltiplas anomalias e rupturas que parecem desafiar a ordem vigente.
No entanto, diante de tudo isso, a reação dominante não é o reconhecimento, nem a transformação, nem mesmo a proposta de um debate radical. A resposta consiste em uma negação organizada, no simulacro de gestão, na pantomima de continuidade, em uma fuga para frente. Exatamente isso é o que o projeto político do neoliberalismo — hoje transfigurado em necroliberalismo — procurou garantir de forma expedita desde que, em 1973, apareceram os dois primeiros sinais inquietantes do colapso civilizatório: a crise energética e as conclusões do estudo Os Limites do Crescimento. Muitos anos depois, apesar das evidências do fracasso e da destruição causados pela gestão neoliberal de um capitalismo encurralado por suas contradições, os governos apresentam planos de recuperação e transição, as corporações redobram suas promessas verdes, os meios de comunicação transformam catástrofes em eventos rotineiros ou oportunidades de investimento, e as populações, exaustas e precarizadas, agarram-se à ficção de que tudo continua mais ou menos normal.
Nessa lógica, o colapso não se apresenta como uma ruptura, mas como um fluxo interminável de crises sucessivas. A seca é uma anomalia climática. O aumento de preços, uma distorção conjuntural. O fascismo, um surto isolado. A crise energética, um problema técnico. Tudo se fragmenta para que nada seja entendido em sua totalidade. Mas não é assim: a anormalidade se expande.
Hipernormalização: a arte de fingir que tudo continua igual
A hipernormalização é uma forma de consenso forçado, uma espécie de teatro cotidiano onde ninguém acredita verdadeiramente no que diz, mas todos se comportam como se acreditassem. Não porque haja uma conspiração, mas porque as estruturas sociais, mentais e afetivas estão desenhadas para não permitir outra coisa, por pura inércia. Trata-se de um autoengano sistêmico que surge quando a ruptura da ordem é tão profunda que nenhuma instituição pode nomeá-la sem se desintegrar. Impõe-se o tabu.
Nessa dinâmica hipernormalizada, os diferentes atores sociais desempenham papéis perfeitamente sincronizados dentro da ficção coletiva. As elites estão plenamente conscientes do que vem e já optam abertamente pela secessão ecocida e genocida. Os políticos, presos em uma lógica de curto prazo de legitimação baseada na aparência de controle, continuam fazendo promessas vazias, não porque ignorem a gravidade da situação, mas porque sua sobrevivência institucional depende de manter a ilusão de que tudo pode ser consertado sem mudar o fundamental. Os tecnocratas, por sua vez, elaboram planos impossíveis, carregados de jargão técnico e objetivos estratégicos que, no fundo, ninguém acredita serem realizáveis. No entanto, esses planos funcionam como tranquilizantes sociais e como mecanismos para evitar que se questionem os modelos estruturais que os sustentam, permitindo assim que as grandes corporações continuem aumentando seus lucros. Os meios de comunicação cumprem seu papel como guardiões do simulacro, selecionando cuidadosamente o real por meio de recursos narrativos que evitam o pânico, a politização radical ou o despertar coletivo; o urgente substitui o importante, e o espetáculo toma o lugar da análise. Enquanto isso, as pessoas comuns reprimem sua intuição profunda de que algo não vai bem, porque lhes faltam espaços seguros e compartilhados para pensar em voz alta sobre o desmoronamento, para nomear sem medo aquilo que já se intui, mas cuja enunciação abriria um abismo emocional e prático para o qual ninguém preparou ferramentas de contenção.
Assim, a hipernormalização não é apenas um fenômeno das elites. É também uma forma de sobrevivência emocional para milhões de pessoas. Reconhecer o colapso, encará-lo de frente, não é simplesmente um ato intelectual: é um salto existencial. Implica reconhecer que não há volta, que o mundo que conhecíamos não existe mais, e que tudo está por ser reconfigurado em condições incertas.
Uma mancha estranha no céu, um filtro cinza no mundo
Segundo Albert Lloreta (2025): “Tudo é absurdo, sim, mas nossa vida ainda é aparentemente normal, então nos refugiamos nela. Vamos levando nesse ambiente estranho. É mais como se, não sabemos exatamente desde quando, houvesse uma mancha estranha no céu, que não deveria estar ali, e a olhássemos de soslaio enquanto vamos para o trabalho (…) A hipernormalidade de hoje se parece com a dos últimos dias soviéticos. Parece que o sistema de valores e certezas no qual crescemos está se rachando, mas seguimos em frente por inércia. Agarramo-nos à ficção de normalidade de nossa vida e fazemos como se não víssemos como cresce, dia após dia, a estranha mancha no céu.”
Como complemento à metáfora dessa mancha estranha no céu, que Lloreta identifica com o imenso poder alienador das tecnologias do Vale do Silício, talvez a hipernormalização que vivemos possa ser entendida também como a negação de uma espécie de filtro cinza, que se interpõe entre nós e a realidade do mundo, e que vai além do enorme poder das corporações tecnológicas contemporâneas. Trata-se de uma metáfora que alude a uma camada difusa, quase invisível, uma espécie de névoa, véu ou película atmosférica que evidencia o implacável deterioramento sistêmico do mundo conhecido. Esse filtro não é constante nem uniforme: às vezes se torna mais espesso, mais opaco, mais físico, especialmente quando ocorrem episódios cada vez mais catastróficos que fazem emergir com brutalidade os sinais do colapso; em outras ocasiões, parece dissipar-se levemente, permitindo que a ficção da normalidade se imponha novamente como regra aparente. Mas a imaginação, a sensibilidade e o onírico o captam como um silêncio assombroso, também como uma reverberação de fundo, às vezes até acessível aos sentidos. E as emoções, os sonhos e a arte o expressam, ainda que de modo inconsciente.
Esse filtro cinza se insinua com mais força quanto mais buscamos manter a ilusão de continuidade, fazer parecer que tudo continua igual, que nada está acontecendo, que tal filtro não existe. Trata-se de algo mais sutil que um meteorito, o que favorece a insensibilidade ou a indiferença geral. Afinal, como sustenta Lloreta (2025), “a hipernormalidade está cheia de gente acostumada”. Mas é precisamente esse esforço para negar a evidência que contribui para reforçar sua presença. Porque quanto mais se insiste em disfarçar, mais se acumulam os sinais de decomposição, mais se revelam as fissuras do sistema, mais se denuncia o cinza crepuscular, cada vez mais palpável, a insustentabilidade da situação. Pode ser o cinza de cinzas após um incêndio florestal de nova geração, o céu plúmbeo depois de uma tempestade destrutiva, a fumaça terrível que permanece quando cessa um bombardeio genocida, o ar viciado pela poluição, uma nuvem tóxica por um vazamento químico ou o cinza brilhante da calima durante um dia incomumente tórrido de primavera. Como mostram magistralmente as imagens arrepiantes do documentário Homo Sapiens (2016) do austríaco Nikolaus Geyrhalter, quando o colapso chega — desmoronamento do socialismo real, Fukushima, crise de 2008 — resta uma paisagem arrasada de ruínas contemporâneas onde um cinza decadente prevalece, visualmente até, enquanto Gaia recupera com um verde transbordante o território que lhe foi arrancado.
O mais perverso da hipernormalização contemporânea é que ela capturou até mesmo nossa capacidade de imaginar alternativas. Ou, neste caso, o fim do simulacro de normalidade. A hipernormalização se reforça a si mesma. Essa captura opera através de múltiplos dispositivos: a cultura do entretenimento permanente, o consumo como refúgio afetivo, a tecnofilia como promessa de salvação, o discurso do empreendedorismo como via de superação individual, as ofertas banais do supermercado espiritual, a rebelião convertida em marca comercial. Tudo conspira para bloquear a pergunta radical: como viver de outro modo, fora deste sistema?
Até mesmo os discursos aparentemente críticos podem ser pervertidos e absorvidos pelo buraco negro do simulacro capitalista: a sustentabilidade se transforma em um novo nicho de mercado, a resiliência na capacidade de suportar o insuportável, e a transição em um processo asséptico sem ruptura. Oferece-se a nós um horizonte de mudanças cosméticas para impedir qualquer transformação profunda. O colapso se torna a expressão mais acabada do capitalismo catabólico: uma nova oportunidade de negócio. E a esperança genérica, em um antídoto descafeinado — mas rentável — contra o medo.
Sair do encantamento: verdade, luto e comunidade
Diante do encantamento dessa hipernormalização global, não basta denunciar. É necessário interromper a lógica do simulacro, abrir novos espaços alternativos. Isso significa não se instalar no desespero, mas recuperar o sentido do limite e a possibilidade de reconfigurar a vida a partir de baixo, em comunidade, no pequeno, no concreto.
Sair da hipernormalização não é simplesmente um ato de crítica intelectual, mas um processo vital que exige atravessar várias camadas de verdade, dor e reconstrução. Em primeiro lugar, implica nomear o colapso, não como um cataclismo distante ou uma possibilidade remota, mas como um processo já em curso, tangível em nossas vidas cotidianas, nos corpos exaustos, nos territórios depredados, nas instituições que mal se sustentam. Mas nomeá-lo não basta: é necessário também reconhecer o luto, aceitar sem cinismo nem dramatismo que estamos vivendo o fim de uma era, e que isso implica perdas reais — de certezas, de paisagens, de seguranças, de modos de vida — que devem ser choradas antes de poderem ser transformadas. Só então pode-se cultivar uma lucidez profunda, um olhar claro que evite tanto o catastrofismo paralisante quanto o otimismo ingênuo, e que saiba habitar a complexidade sem necessidade de consolos pré-fabricados. Nesse contexto, torna-se urgente reconstruir vínculos comunitários, não como romantismo do passado nem como slogan ideológico, mas como necessidade concreta: porque apenas no tecido relacional, na cooperação cotidiana, na reconstrução de formas de apoio mútuo, podem germinar formas de vida viáveis e desejáveis em um mundo que já começou a tomar forma, mesmo que ainda não saibamos nomeá-lo por completo.
O colapso não é um apocalipse hollywoodiano. É uma longa transformação que já está em curso, embora aumentem os sinais de que pode se acelerar com acontecimentos catastróficos e eventos disruptivos. Mas enquanto continuarmos fingindo normalidade, enquanto continuarmos presos na hipernormalização, não estaremos nem mesmo em condições de começar a vivê-lo com dignidade.
Viver na fenda
A história não para, embora muitos finjam que sim. Pode desacelerar, torcer-se, encobrir-se sob camadas de burocracia, espetáculo ou medo, mas seu impulso não cessa. As estruturas que pareciam eternas acabam por desmoronar, às vezes com estrondo, outras com um silêncio quase imperceptível. As ficções coletivas que sustentavam o mundo — o progresso indefinido, a supremacia da razão técnica, o domínio sobre a natureza — mostram suas costuras, seus limites, suas fraturas irreparáveis. Os mais diversos regimes entram em colapso, não apenas quando seus exércitos caem, mas quando já não conseguem que seu relato seja acreditado nem mesmo por aqueles que o repetem. No entanto, e isso é essencial, em cada fenda ou interstício dessa ordem em ruínas, em cada fissura do simulacro, germinam também outras formas de estar no mundo: práticas modestas, comunidades rebeldes, linguagens novas, sensibilidades que se desvinculam do ruído dominante.
É possível que já não nos caiba a tarefa heroica — e profundamente arrogante — de salvar a civilização como a conhecemos. Talvez isso não seja apenas impossível, mas também indesejável. Talvez nossa responsabilidade seja outra: acompanhar seu fim com sabedoria, justiça e compaixão. Não como quem espera uma catástrofe mundial, mas como quem se prepara para um parto difícil; não como salvadores, mas como cuidadores da transição, guardiões da dignidade no limiar de um mundo que se esgota e outro que mal começa a nascer.
Como escreveu Yurchak a propósito do desmoronamento soviético: “tudo era para sempre, até deixar de existir”. Hoje, essa frase ressoa com mais força do que nunca. Nos lembra que mesmo os sistemas mais sólidos podem desaparecer de repente, quando já não resta ninguém para sustentá-los em sua ficção delirante. A questão, então, não é quando chegará esse momento, nem como será. A pergunta é muito mais íntima e urgente: quanto tempo mais continuaremos fingindo que isso ainda é normal? Quanto mais investiremos em preservar a máscara da continuidade? Talvez o verdadeiramente revolucionário, para romper com a hipernormalização que sustenta o insustentável, seja aprender a perceber — em toda sua crueza — esse filtro cinza que já impregna tudo e que nos empenhamos em não reconhecer.
Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/hipernormalizacao-barulho-inaudivel-da-ruina/