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Literatura indígena ganha espaço após séculos ignorada

Livros de autores indígenas começaram a ser publicados no país somente a partir da década de 1980. Escritores rompem com preconceitos e estereótipos, mas ainda enfrentam desafios.

A introdução dos indígenas como autores das obras, que começou de maneira esporádica com a própria Eliane Potiguara ainda na década de 1970 e se fortaleceu duas décadas depois, é o que marca a diferença entre o passado e o presente. “Os indígenas trazem suas identidades, pertencimentos, povos e valores [para a literatura], que o Brasil mesmo tentava extinguir. A literatura indígena é demarcada por esse território da autoria, de ser reconhecido como indígena e receber os direitos patrimoniais e morais”, diz Dorrico.

Essa literatura nasceu também da organização política dos povos indígenas brasileiros para defender seus territórios. “Esse movimento impulsionou a produção cultural e intelectual como forma de resistência e de afirmação de identidade”, diz Enes Filho. A partir daí, muitos escritores indígenas começaram a se apropriar da educação formal e da escrita como instrumento de luta.

“A literatura indígena veio de mãos dadas com a educação indígena. Ela fez esse papel de conversar com a necessidade dos povos indígenas de ter materiais e a necessidade de a sociedade não-indígena entender o nosso território como plurinacional”, explica Jamille Anahata, ativista do povo indígena Mura, poeta e pesquisadora de relações étnico-raciais.

Lei estimula busca por obras

A primeira publicação de livro de autoria indígena no Brasil aconteceu em 1980, com a obra bilíngue Antes o mundo não existia: mitologia dos antigos Desana – Kêhíripõrã, de Umusi Pãrõkumu e Tõrãmu Kehíri, escrita em português e desana (uma língua indígena falada na Amazônia brasileira e colombiana).

Depois vieram outras obras importantes, como o livro Oré awé roiru’a ma: Todas as vezes que dissemos adeus, de Kaká Werá Jecupé, em 1994, considerado o primeiro livro literário de autoria individual publicado por um indígena no Brasil. Em seguida, veio Histórias de índio, de Daniel Munduruku, de 1996, o primeiro para o público infantil.

A partir dos anos 2000, com a publicação da Lei 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade ensino das culturas indígenas e afro-brasileiras no currículo escolar, as editoras passaram a buscar cada vez mais por obras produzidas por indígenas.

Isso foi reforçado pelo Programa Nacional do Biblioteca na Escola, que entre 1997 e 2015 distribuiu livros de autores indígenas nas redes públicas de ensino, e pelo interesse da academia no assunto, já que pesquisadores de diferentes áreas passaram a estudar essa produção. “Muitos autores começaram a ocupar espaço nas redes sociais, feiras literárias, em debates acadêmicos e na mídia em geral”, acrescenta Enes Filho.

Ailton Krenak
Ailton Krenak é o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Um dos projetos de divulgação existentes nas redes sociais é o Leia Mulheres Indígenas, mantido por Dorrico e Anahata. Criado pouco antes da pandemia de covid-19, ganhou força durante a crise sanitária mundial e tem hoje cerca de 20 mil seguidores.

“A literatura de autoria indígena é muito colocada como produção para o público infantil, e essa iniciativa tem o papel também de mostrar em que outros lugares da literatura as autoras estão, e também a diversidade de povos, lugares e rostos”, conta Anahata.

Características da literatura indígena contemporânea

Além do marco autoral, a produção tem outras características fundamentais, pois parte de outro paradigma de mundo, em que natureza e cultura não estão dissociadas. “A literatura indígena traz muito o espaço da floresta, porque é de onde vem o nosso conhecimento, mas também traz espaços urbanos. E, mesmo em cidades, a floresta está presente”, explica Dorrico. “A natureza não é só um pano de fundo”, complementa Anahata.

Essa relação com a natureza também influencia na construção dos personagens, pois seres encantados não são descritos como folclóricos, e o espaço-tempo não está, necessariamente, ancorado no tempo histórico. A narrativa tampouco é apenas linear.

“Isso revela uma visão de mundo profundamente conectada com o território e a espiritualidade. O uso simbólico da natureza é um ponto de expressar valores coletivos e éticos que contrapõe a lógica da exploração e da destruição ambiental”, diz Enes Filho.

As obras também têm hibridismos de linguagens, em que um livro pode misturar gêneros – como poesia, ensaios e relatos. Outra característica é a capacidade de transitar entre a escrita e outras formas de expressão, como a música. “Muitos textos assumem uma estrutura narrativa que lembra os relatos orais tradicionais com repetições, ritmo, musicalidade e uso de expressões das línguas indígenas”, explica Enes Filho.

É também uma literatura instrumento de resistência social, cultural e política, que pode ser vista na obra de escritores como Daniel Munduruku, Olívio Jekupé, Eliane Potiguara, Cristino Wapichana, entre outros. “Eles utilizam a palavra como ferramenta de denúncia contra o racismo e a invisibilização histórica dos povos originários. É uma literatura que reivindica a memória, a identidade e o território”, diz Enes Filho.

Como exemplos dessa reivindicação estão obras como Metade Cara, Metade Máscara, de Eliane Potiguara, A Terra dos Mil Povos, de Kaká Werá Jecupé, e Meu vô apolinário: Um Mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel Munduruku.

Apesar da visibilidade, desafios para expansão permanecem

Mesmo diante da inserção no mercado editorial, a literatura indígena contemporânea ainda enfrenta muitos desafios para se expandir. O principal deles é o preconceito contra os povos indígenas, que ainda faz muitas editoras enxergarem a produção de autores indígenas com desconfiança ou classificá-las como de um “nicho exótico”.

O preconceito impede também que os povos indígenas sejam enxergados como produtores de conhecimento. Ainda é comum que muitos daqueles que chegaram às universidades e espaços de formação sejam descritos como não-indígenas.

Outro desafio é a falta de representatividade no próprio circuito, já que são poucos os editores, editoras, revisores, curadores e agentes literários indígenas. Isso impede que os valores culturais e estéticos dos povos originários entrem nas mesas de decisão sobre o que é publicável. Depois de publicadas, essas obras ainda enfrentam o desafio de receber investimentos para divulgação, distribuição e marketing.

Criança lê livro infantil
Escritores indígenas estão presentes em todos os ramos literários. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Apesar da Lei 11.645, ainda há também resistência para inserção dos autores indígenas nas escolas e universidades, seja pela falta de materiais didáticos disponíveis nas bibliotecas ou pela falta de formação dos docentes para o tema. “A inserção dessa literatura no ambiente escolar ainda é tímida e depende muito do esforço individual de professores que sejam realmente comprometidos”, diz Enes Filho.

Para superar esses desafios, há alguns projetos em curso no país. Alguns deles são o Prêmio Akuli, da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), voltado ao reconhecimento das histórias de tradição oral indígenas, quilombolas e ribeirinhas, e o Prêmio Cunhambebe Tupinambá, do Museu Nacional dos Povos Indígenas e da Funai. Há algumas editoras também, como a Pachamama, que publica livros bilíngues. Além disso, há o encontros de escritores.

Fortalecimento da literatura indígena

Questionados, os Ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e da Cultura (MinC) afirmaram que assinaram um protocolo, em maio, para entre outras ações fortalecer a literatura indígena com apoio na formação de autores, incentivo à produção de livros e ampliação do acesso a políticas de fomento. O MinC afirmou que ainda está em curso no país um projeto para traduzir a Constituição Federal para línguas indígenas.

Na área da educação, o Ministério da Educação (MEC) afirmou que assessora a formulação de políticas voltadas à alfabetização de estudantes indígenas, com apoio à produção de materiais bilíngues distribuídos nas escolas públicas. Em 2025, foi criada a Rede de Coordenadores dos Saberes Indígenas (ReCo-ASIE), para a produção de metodologias e materiais didáticos específicos, incluindo obras literárias de autoria indígena.

No ensino superior, o MEC afirmou ainda que tem estimulado a inclusão de autores indígenas nos currículos dos cursos de licenciatura e que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo Enem, já incluiu textos de autores como Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Kaká Werá Jecupé, Graça Graúna e Olívio Jekupé em edições recentes do exame.

 

 

 

Publicado originalmente em: https://www.dw.com/pt-br/literatura-ind%C3%ADgena-ganha-espa%C3%A7o-no-brasil-ap%C3%B3s-s%C3%A9culos-ignorada/a-72784522