As forças que marcaram a ascensão da esquerda na América Latina no início do século XXI estão entrando numa fase de declínio histórico. Essa é a opinião de Álvaro Linera que, no entanto, vê na crise do neoliberalismo e no esgotamento desse ciclo político uma oportunidade de renovação – mas para aproveitá-la, as esquerdas não podem se render à correlação de forças e devem atualizar seu projeto de futuro.
Por: Juliano Medeiros | Crédito Foto: Octavio Nava/Sec. Cultura Cidadã da Cidade do México
Em um evento realizado algumas semanas atrás em La Plata, na Argentina, o sociólogo Álvaro Garcia Linera, vice-presidente da Bolívia entre 2006 e 2019, afirmou que “estamos vivendo um momento de esgotamento de um ciclo de lideranças, propostas e formas de militância nas esquerdas”. Para ele, o fim desse ciclo – que coincide com a crise da hegemonia neoliberal – abre a possibilidade de reivindicar modelos alternativos.
Mas para isso, defende Linera, é preciso reconhecer que o conjunto de reformas e transformações com que marcaram o ascenso do progressismo no início do século XXI está “entrando numa fase de declínio histórico”. Para ele, em alguns lugares de maneira mais lenta, em outros, de maneira mais acelerada, mas em todos igualmente, talvez com a exceção de México e Colômbia.
Esse fim de ciclo é representado, de acordo com Linera, com o distanciamento entre o horizonte aspiracional dos setores populares e aquilo que as esquerdas têm se mostrado dispostas a oferecer. Mesmo sem promover reformas estruturais os governos progressistas cumpriram um importante papel histórico ao servir de anteparo ao neoliberalismo, promovendo políticas redistributivas, combatendo a pobreza extrema, preservando ou mesmo retomando o controle estatal de recursos naturais estratégicos e promovendo alianças alternativas no plano internacional.
Mas essa plataforma já não seria capaz de se conectar com os desejos e expectativas de milhões de pessoas que simplesmente não se identificam com a promessa de “desenvolvimento” ou “inclusão social”. No Brasil temos observado isso, principalmente através da crescente rejeição de jovens precarizados aos direitos trabalhistas (embora uma maioria de quase 68% dos autônomos ainda prefira o trabalho formal, segundo pesquisa FGV-Ibre de agosto de 2024).
O desafio do programa
Álvaro Garcia Linera vê na crise do neoliberalismo e no esgotamento do ciclo político dos governos progressistas de caráter socialdemocrata, uma oportunidade. Mas para aproveitá-la, as esquerdas deveriam enfrentar ao menos três desafios para estarem à altura da complexa etapa histórica que vivemos. O primeiro é o do programa. Segundo o boliviano, boa parte da esquerda latino-americana está presa a fórmulas do passado. As mudanças que o mundo tem vivenciado nos últimos 20 anos com a crise da globalização neoliberal, a revolução tecnológica, os efeitos da pandemia e as novas formas de trabalho já não encontram respostas no programa que o progressismo empalmou na primeira década deste século.
Diante de países com taxas de informalidade que beiram os 50% da força de trabalho economicamente ativa, promessas como o direito à aposentadoria não dialogam com as aspirações desses trabalhadores e trabalhadoras. Muitos deles, infelizmente, simplesmente não querem mais passar 8 horas por dia numa fábrica ou escritório. Outros, simplesmente não acreditam que isso seja possível, já que encontram em seu círculo social cada vez menos pessoas que vivem assim.
“Pensar um programa para o século XXI não pode significar uma rendição aos limites impostos por uma correlação de forças desfavorável, muito menos formular uma lista de compromissos bem-intencionados.”
A frase de uma das lideranças de entregadores por aplicativo durante a greve nacional realizada recentemente é lapidar: “É sério que o governo acha que eu estou mais interessado no valor da pensão que minha viúva vai receber caso eu morra do que em não morrer? Eu prefiro não morrer”. O rechaço dos motoristas de aplicativo à proposta costurada entre governo e empresas do setor também mostra o nível de desconexão de parte da esquerda com a nova classe trabalhadora.
Mas pensar um programa para o século XXI não pode significar uma rendição aos limites impostos por uma correlação de forças desfavorável, muito menos formular uma lista de compromissos bem-intencionados. O desafio do programa é, ao menos tempo, o desafio da estratégia: oferecer uma plataforma ousada, contemporânea, capaz de fazer frente aos desafios concretos da crise climática, das transformações em curso no mundo do trabalho, da desdemocratização de nossas sociedades em todos os níveis, ao invés de adaptar-se às evidentes dificuldades e aceitar que vivemos uma quadra histórica de defensiva, onde o programa estará dentro dos limites do possível.
O desafio da militância
Osegundo desafio mencionado por Linera é o da militância. O neoliberalismo falhou em todas as suas promessas de prosperidade, retomada do crescimento e distribuição de bem-estar. Mas foi bem-sucedido na promoção de valores e formas de sociabilidade baseadas no individualismo e na competição. “O neoliberalismo é a luta do último contra o penúltimo” disse um intelectual espanhol. Esse fenômeno também impactou as formas de agir politicamente.
A substituição do trabalho de base pela ocupação dos espaços no Estado, a predominância das redes sociais como espaço de diálogo (e suas consequentes “bolhas” de interação), a burocratização dos instrumentos de organização política como os sindicatos e centrais sindicais, e a transformação da militância numa forma de ascensão social – tal como previsto na famigerada “lei de ferro da oligarquização” preconizada por Robert Michels – são sinais dessas transformações.
“Com algumas exceções, como o movimento indígena e feminista, os processos de mobilização social na última década tomaram a forma de erupções contra o sistema, sem um horizonte claro de transformação.”
Apesar das recorrentes explosões sociais da última década, é cada vez mais raro na América Latina o surgimento de movimentos como o MST ou o MTST, com uma estrutura hierarquizada e um programa claro. Para além das crises sociais que levaram milhões às ruas na América Latina nos últimos anos, quem passou a ocupar as ruas, para a surpresa de muitos, foi uma direita que não tem medo de assumir-se como tal, com seus dentes à mostra e uma capacidade mobilização impensável tempos atrás.
Com algumas exceções, como o movimento indígena e feminista, os processos de mobilização social na última década tomaram a forma de erupções contra o sistema, sem um horizonte claro de transformação, com típicos movimentos “destituintes”. Nesse contexto, a militância das organizações políticas foi empurrada para uma dinâmica que privilegia o eleitoral em detrimento da mobilização social. Linera chega a mencionar o caso boliviano, onde a militância tornou-se uma forma de ascensão social através dos cargos públicos disponibilizados pelo Estado. Não estamos tão mal. Mas é necessário reconhecer o retrocesso do movimento de massas nos últimos anos também no Brasil após uma década de crise política ininterrupta.
O desafio das lideranças
Oterceiro e último desafio apontado por Linera é o das lideranças. O primeiro ciclo de governos progressistas contou direta ou indiretamente com líderes que expressavam a entrada em cena de novos atores sociais. Eram nomes que representavam a demanda de nossos povos por novos horizontes. Foi assim que chegaram ao poder líderes como Lula, Evo Morales, Hugo Chavez e Pepe Mujica. Outras lideranças como Dilma, Bachelet, Fernando Lugo, Rafael Correa, Tabaré Vasquez e Cristina Kirschner, embora não fossem originalmente lideranças de massas, também conduziram processos de mudança – mais ou menos intensos – graças ao impulso democratizante que a região viveu a partir das primeiras crises do neoliberalismo, ainda no final dos anos 1990.
Com o virtual esgotamento desse ciclo histórico, o debate sobre o papel das lideranças volta a estar na ordem do dia e, assim como ocorreu no período que se seguiu à crise das experiências socialistas no Leste da Europa, também aqui gira em torno do tema da renovação. Cristina, Evo e Correa já não têm mais o monopólio da liderança das esquerdas em seus países. Surgem novas vozes que reivindicam espaço. No Chile uma nova esquerda afirma pouco a pouco sua hegemonia, e no Uruguai, Pepe demonstra sua grandeza política ao sair de cena e estimular um processo de renovação dentro da Frente Ampla.
Para Linera, essas lideranças “não podem continuar dirigindo os projetos populares, em alguns casos por questões geracionais” e em outros porque “perderam parte de seu brilho, sua atratividade, ainda que sigam sendo lideranças fortes”. E é nesse contexto que começa a se discutir cada vez mais fortemente – inclusive no Brasil – a necessidade de promover nas esquerdas uma transição geracional.
O pós-Lula não é sobre pessoas, mas sobre projetos
No Brasil as esquerdas seguem dependentes política e eleitoralmente da liderança de Lula, mas torna-se cada vez mais urgente estimular um debate franco sobre o futuro. Principalmente porque os principais nomes que representam a renovação das esquerdas estão fora do partido de Lula, o que antecipa um problema de difícil solução para os mais abandeirados.
Seja como for, mais do que defender a renovação em si mesma (que sempre pode vir acompanhada de uma estratégia e uma plataforma inadequadas para enfrentar os desafios que estão postos), o que Linera propõe é pensarmos o papel das lideranças de esquerda nessa etapa histórica. Enquanto a direita defende nas ruas suas posições sem pudor, parte das esquerdas segue investindo na estratégia da moderação para ser aceita por um suposto “centro democrático”.
“Que perfil de lideranças necessitamos para conduzir o próximo ciclo de enfrentamento à extrema direita? Lideranças com origem nas lutas sociais ou ‘gestores’ sem carisma?”
Nenhum exemplo é mais gritante que o da Argentina. Mesmo com uma inflação de 180% ao ano, a coalizão de governo optou por uma candidatura imposta de cima para baixo, de um nome sem tradição na esquerda e com uma campanha de perfil moderado. Não só isso: alguém que havia sido, nada menos, que o ministro da economia meses antes da eleição. O resultado todos conhecemos.
Além da grandeza política e histórica de Lula, que não pode ser comparável à de nenhum líder em ascensão, temos ainda um problema de fundo: a hegemonia do PT no campo das esquerdas se sustenta num programa ultrapassado, baseado num desenvolvimentismo frágil, com fortes características neo-extrativistas e baixa capacidade de mobilizar setores sociais expressivos. Por isso, o debate de nomes reflete – ou deveria refletir – os diferentes projetos em disputa.
Em outras palavras: que perfil de lideranças necessitamos para conduzir o próximo ciclo de enfrentamento à extrema direita? Lideranças com origem nas lutas sociais ou “gestores” sem carisma? Militantes com capacidade de propor uma agenda ousada diante de temas como o feminismo, a transição ecológica e a defesa dos direitos humanos ou dirigentes políticos formatados para as editorias de política da grande imprensa? Gente com disposição de ouvir as ruas ou líderes encastelados em palácios? Esse é o dilema que nos traz Álvaro Garcia Linera e que nos interpela. São respostas que teremos de formular antes do que imaginamos.
Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/05/semear-o-futuro-hoje-para-renovar-as-esquerdas/