Clipping

Todos os jogos são políticos

Os jogos de tabuleiro não são apenas escapistas — eles desempenham um papel singular que nos ajuda a imaginar novos mundos e diferentes maneiras de trabalhar em conjunto. Jogos recentes como Pandemic e Daybreak colocam as crises do nosso tempo no centro da mesa e nos estimulam a resolvê-las.

Por: Max Haiven | Tradução: Guilherme Cianfarani | Imagem: do jogo Daybreak

Por que o vencedor do prêmio mais prestigiado do mundo para fabricantes de jogos de tabuleiro foi banido imediatamente após a cerimônia pela mesma organização que o premiou?

Palestina.

Quando Daybreak ganhou o Spiel des Jahres (SdJ, ou “Jogo do Ano”) como melhor jogo de tabuleiro “expert” (prêmio dado para os jogos mais complexos), ele confirmou o que muitos críticos e jogadores sabiam: o jogo, que simula blocos geopolíticos cooperando para resolver a crise climática, abriu novos caminhos e mostrou que os jogos de tabuleiro podem ser ferramentas importantes para re-imaginar questões sociais urgentes.

Mas quando um dos designers ousou demonstrar timidamente solidariedade com a Palestina na cerimônia de premiação do SdJ em Berlim em julho, começou um escândalo.

Esta história poderia ser contada como simplesmente mais um exemplo do preconceito antipalestino fanático de uma instituição alemã — o tipo que, em outros contextos, viu palestinos e seus apoiadores serem vigiados, presos, deportados e difamados.

Mas também levanta uma questão mais ampla sobre a política dos jogos de tabuleiro hoje, em um momento de fascismo crescente e crise cada vez mais profunda. E essas políticas importam. Os jogos não são apenas maneiras divertidas de se reunir. Eles desempenham um papel único em nos ajudar a imaginar novos mundos e novas maneiras de trabalhar juntos.

Um jogo para nossa época

Durante a pandemia, o designer de jogos Matteo Menapace, sediado em Londres, começou a trabalhar com Matt Leacock, criador da lendária série de jogos de tabuleiro Pandemic. O primeiro desses jogos altamente inovadores foi lançado em 2008 com enorme sucesso, destruindo o mito de que jogos cooperativos são chatos e sem graça.

Quando o surto global de COVID-19 forçou bilhões de pessoas a ficar em casa ou limitar as interações sociais, os criadores de jogos de tabuleiro independentes encontraram milhões de novos fãs. Dadas suas temáticas, Pandemic — onde os jogadores assumem os papéis de cientistas e profissionais de saúde pública colaborando para curar e eliminar doenças globais — surgiu como um vencedor claro.

No início da pandemia, Menapace escreveu um blog sobre o que o jogo Pandemic poderia nos ensinar sobre o evento do mundo real. Isso levou ele e Leacock a desenvolver a ideia para um jogo sobre outra crise: a crise climática. Os dois pesquisaram extensivamente, entrevistaram e testaram versões iniciais do jogo com dezenas de cientistas, ativistas e formuladores de políticas.

O resultado final, Daybreak, foi publicado pela CMYK Games em 2023. Até quatro jogadores assumem o papel de blocos geopolíticos (Estados Unidos, Europa, China e o Resto do Mundo). Em um jogo que demora uma hora e meia para ser jogado, eles tentam compartilhar recursos e tecnologias para que cada um possa fazer a transição de suas economias abandonando os combustíveis fósseis e ajudar as comunidades a lidar com os desastres ecológicos e sociais trazidos pelas mudanças climáticas.

O jogo foi celebrado pelos críticos pela forma satisfatória como permite que os jogadores se concentrem nos desafios de sua própria região, mas também colaborem em problemas globais, e por criar um jogo que coloca em primeiro plano as questões difíceis sobre quais caminhos tomar em direção à justiça climática. O fato de os jogadores frequentemente perderem o jogo ao acionar pontos de inflexão climática não parece ser desanimador. Cada carta tem um código QR que vincula os dados e debates que animam o jogo sobre, por exemplo, os riscos e benefícios da energia nuclear, a viabilidade da energia solar em escala e a possibilidade de decrescimento.

Assim como o blockbuster da ficção especulativa Ministry for the Future (que foi uma grande inspiração para o jogo) do romancista socialista Kim Stanley Robinson, o jogo Daybreak, de Menapace e Leacock, nos leva ao futuro próximo do caos climático do capitalismo e nos convida a imaginar que tipo de poder e instituições precisaríamos construir globalmente para nos livrar da calamidade.

O jogo do ano desastroso

Colocar tanta complexidade em um jogo que continua genuinamente divertido e desafiador não é pouca coisa, e por isso não foi nenhuma surpresa quando Daybreak foi indicado para um prêmio SdJ. O SdJ pode ser comparado ao Oscar da indústria cinematográfica: um prêmio sem paralelo em seu prestígio desde seu lançamento em 1978. Centenas de milhares de pessoas, especialmente na Alemanha, acompanham os prêmios, que celebram jogos que são sucessos de crítica e comerciais. A marca SdJ representa o padrão ouro dos jogos de tabuleiro.

Mas na Alemanha e em outros lugares, a indústria de jogos de tabuleiro é tendenciosa em relação a jogos “apolíticos”. Jogos para o mercado são normalmente colocados como atividades amigáveis ​​à família, um local seguro para competição bem-humorada, uma alternativa benéfica à televisão ou outras formas de entretenimento. A preferência tem sido por jogos que são temáticos em torno de cenários históricos ou de fantasia que não ofendam ou perturbem os jogadores.

Dito isso, a indústria de jogos de tabuleiro tem sido criticada com razão por promover regularmente clichês racistas e exóticos, incluindo no famoso Colonizadores de Catan, onde os jogadores invadem uma ilha e constroem impérios comerciais, enquanto são assediados por um misterioso “ladrão”, relembrando implicitamente as fantasias europeias de colonialismo.

Então, a orientação política mais explícita do Daybreak já irritou as comunidades de jogos de tabuleiro. Mas quando ganhou o prêmio, foi a expressão de solidariedade de Menapace com a Palestina que realmente desencadeou o conflito. Além de fazer um breve discurso encorajando os designers de jogos a se envolverem com desafios do mundo real, Menapace afixou um adesivo em sua camiseta que mostrava a silhueta da Palestina histórica em uma figura de melancia.

Pouco depois, sem notificar Menapace, o SdJ emitiu uma declaração pública, declarando que “achamos intolerável que um autor de jogo que convidamos tenha usado um símbolo em suas roupas no palco que deve ter sido percebido como antissemita pelos judeus”. (Não ficou claro se algum judeu foi consultado e, se sim, quais, ou como eles se sentiram ao saberem o que “devem” achar ofensivo.) A organização fez questão de salientar que sua preocupação girava em torno do formato do mapa da Palestina, que se estendia até as fronteiras de 1948, supostamente deslegitimando o Estado de Israel — o que é ilegal sob as leis singularmente draconianas da Alemanha.

O SdJ também acusou Menapace de se comportar “de uma maneira extremamente desleal com os outros envolvidos em seu jogo (autor, equipe editorial, editora)”, apesar do fato de não terem falado com nenhuma das partes supostamente desrespeitadas. Eles anunciaram que “Menapace não é mais bem-vindo em eventos organizados pela associação Spiel des Jahres” — uma grande sanção, dado o prestígio singular da organização.

Menapace respondeu com uma carta atenciosa explicando suas razões e negando corretamente a acusação altamente ofensiva de antissemitismo. Outros escreveram cartas condenando as ações do SdJ, particularmente sua acusação espúria de que a solidariedade com a Palestina é inerentemente antissemita, o que infelizmente é comum na Alemanha.

Seja qual for o caso, além do escândalo do excepcionalismo alemão em torno de Israel e da Palestina, esta história revela o que está em jogo quando um jogo “quebra as regras” e ousa assumir uma orientação explicitamente política.

Os jogos sempre foram “políticos”

Talvez todas as civilizações estejam envolvidas no que os antropólogos chamam de “jogo profundo”, jogos que dão expressão e ajudam uma sociedade a refletir sobre suas crenças e conflitos fundamentais. Em muitas sociedades, jogos e esportes oferecem representações de guerra e mecanismos para desenvolver as relações políticas, para o bem ou para o mal.

As Olimpíadas antigas, por exemplo, foram uma oportunidade diplomática vital para os gregos antigos. Dados os materiais ornamentados de muitas relíquias arqueológicas, alguns estudiosos especulam que jogos de mesa como Go, Xadrez, Senet e o Jogo Real de Ur eram altamente valorizados e podem ter sido ferramentas importantes para trafegar em conflitos domésticos e internacionais.

Os jogos de tabuleiro modernos derivam dos jogos de guerra de mesa usados ​​para treinar oficiais militares e de tentativas de usar a prensa tipográfica para criar brinquedos para crianças de classe média para ensinar história e incutir valores burgueses nelas. Isso dificilmente era apolítico.

Já no século XIX, movimentos sociais começaram a usar jogos de tabuleiro para transmitir suas mensagens, incluindo o Suffragetto, um jogo de tabuleiro desenvolvido por militantes que lutavam pelo direito das mulheres ao voto que simulava brigas de rua com a polícia, ou o Banco Imobiliário, que era uma crítica ao capitalismo de livre mercado antes de ser sequestrado e transformado no jogo que todos conhecemos hoje.

Também houve jogos explicitamente anticapitalistas. Em 1978, o filósofo marxista Bertell Ollman ganhou notoriedade internacional por trazer ao mercado Class Struggle, uma resposta socialista ao Banco Imobiliário, que vendeu mais de 230.000 cópias em todo o mundo. Esse jogo inspirou a Jacobin a lançar o jogo de tabuleiro para dois jogadores Class War em 2022.

A ideia de que jogos “não são políticos” é, na verdade, uma ficção inventada por corporações do final do século XX que estavam ansiosas para vender primeiro jogos de tabuleiro e depois videogames para crianças, principalmente meninos. Essa indústria se desenvolveu nos anos do pós-guerra, quando a infância estava sendo cada vez mais mercantilizada e a conformidade com normas supremacistas brancas, homofóbicas e sexistas estava sendo rigorosamente aplicada.

Hoje em dia, a antipolítica dos jogos serve a uma indústria que promete dar aos jogadores uma fuga de vidas desnecessariamente ocupadas e estressantes sob o capitalismo moderno. Mas muitas vezes as políticas reacionárias dos jogos estão escondidas à vista de todos. No livro Playing Oppression, Mary Flanagan e Mikael Jakobsson catalogam o passado e o presente de clichês racistas e coloniais em jogos de tabuleiro, notavelmente em gêneros populares como 4X (também prevalente em videogames), onde os jogadores “eXploram” paisagens curiosamente limpas, “eXpandem” seu império, “eXploram” recursos e pessoas e “eXterminam” seus oponentes. Muitos jogos são construídos em torno de mecânicas de mercado que, inspiradas pelos mitos do neoliberalismo, imaginam a economia como uma questão de puro cálculo e risco, falhando em reconhecer o papel do poder e da exploração, ou a possibilidade de solidariedade.

Nas últimas décadas, muitos designers de jogos têm lutado para contar histórias diferentes e criar jogos que nos afastem dos temas comuns de acumulação, competição, violência e escassez. Mas foi somente com a recente ascensão das plataformas de crowdfunding, bem como o surgimento de diversas comunidades de jogadores online, que um espaço se abriu para uma infinidade de experimentos.

O colaborador de Menapace em Daybreak, Matt Leacock, é amplamente reconhecido como um herói do atual “renascimento dos jogos de tabuleiro” quando se trata de jogos cooperativos, um gênero de jogos que muitas crianças de esquerdistas (como o presente autor) lembram como chato, pedante e profundamente sem graça. Leacock e outros desenvolveram maneiras de tornar os jogos cooperativos profundamente envolventes e agradáveis, e tão acessíveis a muitos jogadores que não gostam de jogos que envolvem estresse e competição.

Muitos outros seguiram adaptando esses mecanismos para abordar temas radicais. Bloc By Bloc, de T. L. Simon, por exemplo, é um jogo (principalmente) cooperativo de insurgência urbana, onde os jogadores trabalham juntos como estudantes, trabalhadores, pessoas encarceradas e ativistas locais para defender seus bairros dos policiais. O TESA Collective trabalha em estreita colaboração com organizações progressistas e ambientais para produzir jogos cooperativos como STRIKE! The Game of Worker RebellionCommunity Garden: The Board Game e Space Cats Fight Fascism.

Embora não seja cooperativo, Hegemony: Lead Your Class to Victory é um simulador fenomenal de luta de classes na social-democracia (incluindo a possibilidade de que os trabalhadores tomem conta do estado e instituam o comunismo ou que as classes dominante e média se unam para impor o fascismo). Jogos de tabuleiro como Red Flag Over Paris ou Chicago ‘68 nos ajudam a refletir sobre as vitórias e derrotas de movimentos no passado.

Meu próprio jogo, Billionaires and Guillotines, é uma sátira que dramatiza as lições sobre a acumulação de capital de Rosa Luxemburgo: não se pode confiar que a classe capitalista resolverá as crises que sua própria concorrência criou; elas sairão do controle, a menos que nos levantemos e estabeleçamos um sistema que sirva às pessoas e ao planeta, não ao lucro.

Como Richard Barbrook argumenta em seu inflamado livro Class War Games, os jogos ajudam cada radical a aprimorar significativamente suas habilidades no desenvolvimento de estratégias de ação, algo que a esquerda precisa desesperadamente enquanto enfrenta o crescente poder corporativo, o fascismo crescente e a crise climática e social.

Muitos designers de jogos de tabuleiro usam o formato para fazer um trabalho radical que está menos preocupado com o sucesso de mercado. O jogo de mapeamento A Quiet Year de Avery Alder retrata de forma comovente a alegria e a luta de construir uma comunidade após a queda da “civilização”. Jogadores de RPG de ação ao vivo exploram temas queer e políticos radicais do passado, presente e futuro interpretando personagens em produções teatrais interativas e imersivas que podem ser profundamente transformadoras.

Organizações como a Red Plenty organizam “super jogos” (grandes simulações, parecido como um modelo das Nações Unidas) em eventos e festivais radicais e esquerdistas para nos ajudar a imaginar futuros potenciais. E muitos facilitadores e educadores de movimentos ao redor do mundo foram inspirados pelo Teatro do Oprimido para usar jogos sociais e de tabuleiro e ajudar a treinar uma nova geração de ativistas e organizadores comunitários, e muitos compêndios desses jogos estão agora disponíveis.

Novos jogos para uma era de crises

Aclasse dominante sempre se ressentiu e temeu a diversão dos trabalhadores, mesmo que os esportes e outros tipos de jogos tenham sido usados ​​há muito tempo para acalmar tensões sociais ou selar divisões entre pessoas oprimidas. Mas brincar é nosso direito de nascença. Todos os animais brincam — David Graeber até argumentou que partículas subatômicas brincam. Se o capitalismo nos força a trabalhar para o benefício dos chefes, brincar e jogar contém dentro de si um núcleo de resistência.

Algumas das nossas primeiras e mais significativas experiências são pequenos jogos que os cuidadores jogam conosco quando somos bebês. Isso ocorre porque, como o filósofo C. Thi Nguyen deixa claro, os jogos nos permitem explorar como o mundo nos molda e como nós moldamos o mundo. Os jogos nos oferecem uma chance de experimentar outras formas de agenciamento: como é ser um magnata imobiliário tentando levar seus oponentes à falência, ou um bloco geopolítico tentando colaborar para consertar a crise climática, ou uma orca se vingando dos barcos que mataram sua família? Muitos jogos nos permitem simular lutas radicais do mundo real, desde organizar um sindicato até administrar um governo anticapitalista. Mas mesmo quando são mais poéticos ou abstratos, os jogos nos convidam a, por um tempo, ganhar e compartilhar novos poderes.

A maioria das pessoas hoje sente que está presa em um jogo invencível, daí talvez a popularidade de programas de TV como Round 6 ou a franquia de filmes e livros Jogos Vorazes. A extrema direita capitalizou esse sentimento, mas oferece explicações racistas e reacionárias: são os imigrantes, os “grupos de interesses especiais” e algumas “elites” nebulosas que trapacearam o sistema, que é apresentado como uma meritocracia justa.

A realidade é que o jogo capitalista sempre foi manipulado, desde o começo: ele funciona para enganar a classe trabalhadora sobre seu tempo, poder e riqueza e transferi-los para cima.

Os jogos podem e devem nos ajudar a entender esse sistema pelo que ele é e a imaginar alternativas. Daybreak é um exemplo fenomenal de um jogo assim, e por isso não poderia ser perdoado.

 

 

Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/03/todos-os-jogos-sao-politicos/


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