Revogar a ”reforma” é insuficiente, sem novas tutelas, a informalidade vai ganhar a parada
Por: Tarso Genro / Créditos da foto: (Igor Stevanovic)
A evolução é lenta e indeterminada. A revolução é súbita, rupturista. As mutações podem não ser visíveis no imediato, mas seu acúmulo revoluciona o futuro e fixa as fronteiras do passado. E o passado, em cada ciclo histórico, não é mais o mesmo. A proteção da CLT já não mais abarcava os novos processos do trabalho que já demandavam um novo sistema protetivo tão eficiente como foi a CLT no capitalismo industrial fordista.
As “mutações” que ocorrem no processo do trabalho, que ensejam – como assevera Bayon Chacon – “regulamentações ditadas para cada profissão de forma obrigatória é tão minuciosa e casuística que deixa escassas margens de atuação à vontade das partes”[1] As mutações que ocorrem no “tempo curto” (…), “nem sempre (são) percebidas (imediatamente) na sua dimensão”, pois o seu “arco de fundo” desenvolve-se no “tempo longo”[2]. Em algum momento, todavia, o acúmulo histórico da ciência e da técnica, gera as transformações tecnológicas revolucionárias, como as que estão ora em curso.
É irônico que as revoluções infodigitais – processuais “mutações” herdadas e visíveis como rupturas no tempo presente – tenham sido apontadas como fundamentos para a libertação do trabalho como “pena”, consideradas adequadas para reduzir a jornada de trabalho. Hoje vê-se que elas geram em todo o mundo seu contrário: maior rigidez no “eyes of master”, pelos novos controles derivados dos processos tecnológicos e, ao mesmo tempo, mais intermitência, precariedade, redução de empregos e desvalorização dos salários. Transcorrerá um certo tempo (longo?) para que uma reformulação estrutural da doutrina trabalhista seja construída de forma compatível com capacidade de incidir neste novo cenário.
Tudo indica que a doutrina futura deverá recuar da tutela em abstrato de qualquer relação de trabalho dependente -que se fragmentará em dependências múltiplas- para criar trincheiras de defesa dos direitos fundamentais mínimos. De certa forma é o Direito do Trabalho voltando às suas origens, das quais ele emerge – como afirmou Walter Kaskel – honrando a ideia de proteção que se constituiu como “um sistema jurídico no qual seus sujeitos só se configuram em posição de igualdade, mercê da especial tutela que se dispensa a um deles”[3], a saber – à época – a classe operária da nascente revolução industrial.
A substituição do trabalho e dos serviços prestados diretamente pelos humanos, face ao encadeamento de controles e processos de inteligência artificial, ao mesmo tempo em que diminuíram a intervenção do sujeito produtivo (“sujeito de direitos”) na produção e na gestão, não reduziram a jornada laboral. Ao contrário, em regra, aumentaram-na.
Definharam, assim, os postos de trabalho de qualidade, impulsionaram prestações precárias mal pagas e requisitaram serviços intermitentes – nas funções mais simples e mais tradicionais – que continuam sendo necessários à produção, mesmo considerando a sofisticação pela técnica e pela ciências universais.
Com as grandes transformações tecnológicas que ocorreram nos últimos cinquenta anos – especialmente com a importância e a rentabilidade do setor financeiro em escala global – as mudanças no setor bancário, por exemplo, foram exponenciais. Com a tendência à substituição dos trabalhadores destinados a cumprirem as tarefas mais simples – dos “caixas” aos “escriturários”, dos “estafetas” aos modestos chefes de serviço -, com a redução do número de funcionários, o sistema financeiro cada vez mais transformou as suas agências num viveiro de técnicos programados pelas máquinas, operando sem cessar 24 horas por dia.
É um movimento que inaugura, a época em que o capitalismo exige disponibilidades e capacidades ilimitadas de poucos, trabalhos altamente qualificados, no centro do sistema, para lidar com as peculiaridades do mercado financeiro (sem controle aparente de jornada) e, na “base” da demanda, outros tantos trabalhos enfadonhos e mal pagos. Trata-se de solução cuja “aparência” imediata insinua que a pura qualificação técnica (para lidar com máquinas) é o que obtém “resultados” para o empregador – pela simples adição quantitativa do poder de comando -, e não o que efetivamente o é: o surgimento do substitutivo simétrico do poder de comando clássico do comando do empregador que existiu nas velhas agências, que foi fulminado pelas novas tecnologias e técnicas de organização do trabalho. À despersonalização do empregador sucede a “cosificação” maior da mente do prestador.
Foi superada, então, a época na qual os gerentes como “longa manus” do capital, além de lidarem com os clientes, funcionários e até mesmo com os gestores centrais da empresa, detinham largas margens de autonomia e uma real “representação” do empregador. Hoje, as novas gerências bancárias, por exemplo, e todos os demais serviços baseados nas novas tecnologias infodigitais, bem como os seus demais cargos de “confiança” e “gerenciamentos gerais”, em regra são a extensões de máquinas programadas para ofertar produtos já catalogados pelos novos padrões tecnológicos de um sistema.
As formas adquiridas por estas ofertas reduziram drasticamente a confiança “intuitu personae”, já que elas aparecem perante o cliente à medida que são controladas e programadas, independentemente de qualquer iniciativa de “gerenciamento”. Este gerenciamento é, nos dias que correm, um episódio ilusionista de uma autonomia simulada, pois, na verdade, é processo que também invade o tempo livre do empregado – previsto em todas as legislações civilizadas – transformando-o em tempo permanentemente coordenado e subordinado às finalidades estratégicas da empresa.
As consequências destas mutações, ensejadas por uma necessária “flexibilidade” nas relações de trabalho, tornaram-se problemáticas. Na esfera das relações individuais de trabalho, elas subordinam a ação humana à máquina programada. No plano das relações coletivas -que deram estabilidade aos vínculos entre empresas e trabalhadores no pacto socialdemocrata -, a crise é mais evidente: o relacionamento entre as partes contratantes vem acompanhado da intenção de “recortar direitos laborais em favor de uma menor rigidez laboral, mas (sem) dotar os sindicatos de capacidades e meios para proteger o trabalhador perante os riscos da arbitrariedade empresarial”[4]. A consequência será a revalorização do direito individual do trabalho, que, provisoriamente, tornar-se-á um refúgio tanto da fragmentação como da impotência das novas profissões.
O pleito de uma jornada indefinida para um “gerente” meramente formal é uma consequência que é a ponta de um “iceberg” que não se dissolve, mas cresce. É a consequência de uma mutação profunda no processo do trabalho, com uma programação centralizada dos serviços pensada diretamente para utilizar também o consumidor como prestador, com a rapidez e a qualidade uniforme dos serviços para as disputas do mercado.
O cliente, de outra parte, com os seus novos vínculos ofertados pelas novas tecnologias, “ajuda” o empregador a substituir os empregados que eram destinados a realizar as operações mais simples, ao se acostumarem a lidar na empresa com máquinas complexas, que os vinculam à inteligência do sistema. Desta forma o comprador de serviços bancários, por exemplo, também passa a ser integrado, na sua ação consumidora, como sujeito e objeto da cadeia de decisões programadas pelo centro dirigente das finalidades estratégicas da empresa.
Quanto à gestão, este processo põe em cheque a natureza da “confiança” e da “representação” do empregador; quanto ao trabalho concreto, propriamente dito, há seguramente o aumento da jornada no “topo”, seguido de maior jornada desqualificada e da má remuneração, na base; quanto ao “modo de vida”, os trabalhadores assalariados do setor, passam a viver esta situação de aparente liberação do trabalho vivo como um permanente “impulso ao desemprego”[5]. Para responder a estas mutações, é preciso desvelar o que a doutrina deve conformar como “autonomia, que vai se depurando na nova conformação histórica do direito laboral”[6], para que este não perca a sua autenticidade de tutelar os assalariados.
Em tempo de flexibilização das relações de trabalho,decorrente da mutação programada nas formas de produção e dos serviços, trepida o edifício tradicional da doutrina trabalhista. Categorias jurídicas e estatutos conceituais como “hierarquia”, “confiança”, “subordinação”, mudam no tempo e no espaço. Subsumem-se, uma na outra, anulam-se, reforçam-se, passam a ser revestidas de novas formas jurídicas frágeis, flexibilizadas e mais inseguras, como o próprio mundo laboral concreto que as cerca.
Este mesmo impasse, embora em condições históricas diferentes, já chamava atenção para a especificidade do Direito do Trabalho no âmago do desenvolvimento industrial: “O vazio jurídico que implicou o regime liberal é já apenas uma lembrança. Hoje a prestação laboral não é um mero arrendamento de serviços, mas a integração do fator humano numa célula da produção a que está ligada nas vicissitudes que atravessa, e se encontra regulada não somente pelas regras gerais e adjetivas (…) muitas vezes da CLT, senão pelas regulamentações ditadas para cada profissão de forma obrigatória, inderrogável e tão minuciosa e casuística que deixam escassas margens de atuação à vontade das partes”[7].
No caso concreto da reforma trabalhista selvagem feita no Brasil, tão importante como serem revogadas suas disposições nitidamente inconstitucionais é necessário propor um novo estatuto protetivo para a barbárie sem proteção, a que foram jogados a maioria dos trabalhadores, intermitentes, precários, “meio-jornadistas”, falsos autônomos, informais na miserabilidade ou “pejotas” falsificados.
Estas “escassas margens” de atuação da vontade, hoje transformam a flexibilidade necessária (que é antítese do fordismo) na subordinação do trabalhador à máquina infodigital já programada. É apropriada a fórmula de Sennett quando lembra: “o sistema de poder que se esconde nas modernas formas de flexibilidade consiste em três elementos: reinvenção descontínua de instituições, que representa o comportamento flexível – como que exigindo o desejo de mudança –, (que é) um determinado tipo de mudança, com determinadas consequências para nosso tempo, (como) sistema (que é) fragmentado em redes elásticas; a especialização flexível da produção, antítese do sistema de produção incorporado no fordismo; e a concentração de poder sem centralização, que é um tipo de organização que descentraliza o poder, sobrecarregando as categorias inferiores – (é) uma rede de relações desiguais e instáveis, cujo controle é estabelecido por metas de produção, instituídas onde há uma forte pressão, além (e superior) capacidade de produção dessas pequenas instituições”.[8]
Estas novas concentrações de poder não são uma “opção” empresarial, mas sim o resultado concreto do férreo controle, que a empresa precisa realizar – pela sua direção superior – sobre o que vai restando de prestação concreta do trabalho por conta alheia, pelos humanos. Trabalho que faz seu fluxo, tanto nas redes de colaboração inteligente, como no sistema de cooperação horizontal entre as empresas, cujas formas são organizadas para novos processos de produção e cooperação, no mundo “internético”, que os vincula ao consumo.
Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Mutacoes-tecnologicas-e-crise-do-trabalho/4/52469
Comente aqui