A primeira edição do Volume I d’O Capital foi publicada em 14 de setembro de 1867. Ao longo dos anos que se seguiram, Karl Marx e Friedrich Engels continuaram trabalhando no texto final, mostrando como ele permaneceu parte de um projeto crítico vivo.
Por: Marcello Musto | Tradução: Marcos Martim | Crédito Foto: Georg Wendt/picture alliance via Getty Images. Uma primeira edição original de O Capital, de Karl Marx, em exposição no Museu do Trabalho em Hamburgo, Alemanha, em 5 de setembro de 2017
Não importa quantas décadas se passem desde que O Capital de Karl Marx foi publicado pela primeira vez, nem mesmo o quanto essa obra seja descartada como desatualizada, ela retorna repetidamente ao centro do debate. Com veneráveis 158 anos de idade (foi publicada pela primeira vez em 14 de setembro de 1867), a “crítica da economia política” tem todas as virtudes dos grandes clássicos: estimula novos pensamentos a cada releitura e é capaz de ilustrar aspectos cruciais de nosso presente e de nosso passado.
Um grande mérito d’O Capital é que ele nos ajuda a colocar os desenvolvimentos do momento atual em uma perspectiva histórica adequada. O famoso escritor italiano Ítalo Calvino disse que uma das razões pelas quais um clássico é um clássico é que ele nos ajuda a “relegar os acontecimentos atuais ao nível do ruído de fundo”. Tais trabalhos apontam para questões essenciais que não podem ser contornadas, a fim de compreendê-las adequadamente e encontrar um caminho através delas. É por isso que os clássicos sempre despertam o interesse de novas gerações de leitores. Permanecem indispensáveis, apesar da passagem do tempo.
Isso é exatamente o que podemos dizer d’O Capital, 158 anos após ser publicado pela primeira vez. De fato, tornou-se ainda mais poderoso à medida que o capitalismo se espalha para todos os cantos do planeta — e se expande para todas as esferas de nossa existência.
Depois que a crise econômica eclodiu em 2007–8, a redescoberta do magnum opus de Marx foi uma necessidade real — quase uma espécie de resposta emergencial ao que estava acontecendo. Se a grande obra de Marx tivesse sido esquecida após a queda do Muro de Berlim, ela forneceria chaves ainda válidas para entender as verdadeiras causas da loucura destrutiva do capitalismo. Assim, enquanto os índices do mercado de ações mundial queimaram centenas de bilhões de dólares e inúmeras instituições financeiras declararam falência, em apenas alguns meses O Capital vendeu mais cópias do que nas duas décadas anteriores.
Pena que o renascimento d’O Capital não se cruzou com o que restou das forças da esquerda política. Ela se iludiu pensando que poderia mexer em um sistema que estava cada vez mais mostrando sua irreformabilidade. Quando entrou no governo, adotou medidas paliativas leves que não fizeram nada para diminuir a crise ecológica em curso e as desigualdades socioeconômicas cada vez mais dramáticas. Os resultados dessas escolhas estão aí para todos verem.
Mas o atual renascimento d’O Capital respondeu a outra necessidade: a de definir — também graças a uma série de estudos recentes — exatamente qual é a versão mais confiável do texto ao qual Marx dedicou a maior parte de seus trabalhos intelectuais. Essa é uma questão há muito não resolvida, resultante da maneira como Marx produziu e refinou seu estudo.
As Muitas Versões do Volume I
Aintenção original do revolucionário alemão, ao redigir o primeiro manuscrito preparatório (os Grundrisse, de 1857–58), fora dividir sua obra em seis volumes. Os três primeiros deveriam ser dedicados ao capital, à propriedade da terra e ao trabalho assalariado; os últimos, ao Estado, ao comércio exterior e ao mercado mundial.
Ao longo dos anos, a crescente percepção de Marx de que um plano tão vasto era impossível de realizar o forçou a desenvolver um projeto mais prático. Ele pensou em deixar de fora os três últimos volumes e integrar algumas partes dedicadas à propriedade da terra e ao trabalho assalariado no livro sobre o capital. Este último foi concebido em três partes: o Volume I seria dedicado ao Processo de Produção de Capital; o Volume II, ao Processo de Circulação de Capital, e o Volume III, ao Processo Geral da Produção Capitalista. A estes se acrescentaria um Volume IV — dedicado à história da teoria — que, no entanto, nunca foi iniciado e é, muitas vezes, confundido erroneamente com as Teorias da Mais-Valia.
Como é sabido, Marx completou apenas o Volume I. O segundo e o terceiro volumes não viram a luz do dia antes de sua morte; apareceram em 1885 e 1894, respectivamente, graças a um enorme esforço editorial de Friedrich Engels.
Se os estudiosos mais rigorosos questionaram repetidamente a confiabilidade desses dois volumes, compostos com base em manuscritos inacabados e escritos fragmentados com anos de diferença e que continham inúmeros problemas teóricos não resolvidos, poucos se dedicaram a outra questão, não menos espinhosa: se havia de fato uma versão final do Volume I.
A disputa voltou ao centro das atenções de tradutores e editores e, nos últimos anos, muitas novas edições importantes d’O Capital surgiram. Em 2024, alguns deles foram lançados no Brasil, na Itália e nos Estados Unidos, onde a Princeton University Press publicou na segunda semana de setembro a primeira nova versão em inglês em cinquenta anos (a quarta no geral) graças ao tradutor Paul Reitter e ao editor Paul North.
Publicado em 1867, após mais de duas décadas de pesquisa preparatória, Marx não estava totalmente satisfeito com a estrutura do volume. Ele acabou dividindo em apenas seis capítulos muito longos. Acima de tudo, Marx estava descontente com a maneira como expôs a teoria do valor, a qual foi forçado a dividir em duas partes: uma no primeiro capítulo e outra em um apêndice escrito às pressas após a entrega do manuscrito. Assim, a escrita do Volume I continuou a absorver as energias de Marx mesmo após ser publicado.
Em preparação para a segunda edição, vendida em partes entre 1872 e 1873, Marx reescreveu a seção crucial sobre a teoria do valor, inseriu várias adições sobre a diferença entre capital constante e variável e sobre a mais-valia, bem como sobre o uso de máquinas e tecnologia. Ele também remodelou toda a estrutura do livro, dividindo-o em sete partes, compreendendo vinte e cinco capítulos cuidadosamente divididos em seções.
Marx acompanhou de perto o processo da tradução russa (1872) e dedicou ainda mais energia à versão francesa, que apareceu — também em partes — entre 1872 e 1875. Ele teve que gastar muito mais tempo do que o esperado revisando a tradução. Insatisfeito com o texto excessivamente literal do tradutor, Marx reescreveu páginas inteiras para fazer o que ele considerava mudanças necessárias e tornar as partes carregadas de exposição dialética mais fáceis para o público francês digerir. Isso se referia principalmente à seção final, a saber “O processo de acumulação do Capital”. Ele também dividiu o texto em mais capítulos. No posfácio da edição francesa, Marx escreveu que aquela versão tinha “um valor científico independente do original” e observou que deveria “também ser consultada por leitores familiarizados com a língua alemã”.
Sem surpresas, quando uma edição em inglês foi sugerida em 1877, Marx apontou que o tradutor “necessariamente teria que comparar a segunda edição alemã com a francesa”, já que nesta última edição ele havia “adicionado algo novo e… descrito muitas coisas de forma mais adequada”. Não eram, portanto, meros retoques estilísticos. As mudanças que Marx acrescentou às várias edições também integraram os resultados de seus estudos em andamento e os desenvolvimentos de seu pensamento crítico em constante evolução.
Novamente no ano seguinte, ele revisitou a versão francesa, destacando seus prós e contras. O autor escreveu a Nikolai Danielson, o tradutor russo d’O Capital, dizendo que o texto francês continha “muitas variações e acréscimos importantes”, mas admitiu que “também foi forçado, especialmente no primeiro capítulo, a ‘achatar’ a exposição”. Assim, ele sentiu a necessidade de esclarecer que os capítulos sobre “A mercadoria e o dinheiro” e “A transformação do dinheiro em capital” deveriam ser “traduzidos exclusivamente seguindo o texto alemão”. De qualquer forma, pode-se dizer que a versão francesa constituiu muito mais do que uma tradução.
Marx e Engels tinham ideias diferentes sobre o assunto. O autor ficou satisfeito com a nova versão, considerando-a, em muitas partes, uma melhoria em relação às anteriores. Mas Engels, embora elogiasse algumas das melhorias teóricas feitas, era cético quanto ao estilo literário imposto pela língua francesa. Ele escreveu: “Acho que seria um grave erro usar a versão francesa como base para uma tradução em inglês.”
Então, quando lhe pediram, pouco depois da morte de seu amigo, que preparasse a terceira edição alemã (1883) do Volume I, Engels fez “apenas as alterações mais necessárias”. Seu prefácio dizia aos leitores que Marx pretendia “reescrever grande parte do texto do Volume I”, mas que problemas de saúde o impediam de fazê-lo. Engels fez uso de uma cópia alemã, corrigida em vários lugares pelo autor, e de uma cópia da tradução francesa, na qual Marx indicara as mudanças que considerava indispensáveis. Engels foi econômico em suas intervenções, relatando que “nem uma única palavra foi alterada nesta terceira edição sem minha firme convicção de que o próprio autor a teria modificado.” No entanto, ele não incluiu todas as mudanças apontadas por Marx.
A tradução para o inglês (1887), totalmente supervisionada por Engels, foi baseada na terceira edição alemã. Ele afirmou que este texto, como a segunda edição alemã, era superior à tradução francesa — não por causa da estrutura do capítulo. Ele esclareceu no prefácio do texto em inglês que a edição francesa havia sido usada principalmente para testar “o que o próprio autor estava disposto a sacrificar sempre que algo do significado completo do original tivesse que ser sacrificado na tradução.” Pouco antes, no artigo How Not to Translate Marx (Como Não Traduzir Marx, em livre tradução), Engels havia criticado duramente a péssima tradução de John Broadhouse de algumas páginas d’O Capital, afirmando que “o poderoso alemão requer um inglês poderoso para traduzi-lo… termos alemães recém-cunhados exigem a cunhagem de novos termos correspondentes em inglês”.
A quarta edição alemã foi publicada em 1890; foi a última preparada por Engels. Com mais tempo disponível, ele pôde integrar várias correções feitas por Marx à versão francesa, enquanto excluía outras. Engels declarou no prefácio: “Depois de comparar novamente a edição francesa e as observações de Marx, fiz mais algumas adições ao texto alemão a partir daquela tradução”. Ele ficou muito satisfeito com seu resultado final, e apenas a edição popular preparada por Karl Kautsky em 1914 fez melhorias adicionais.
Em busca da versão final
Aedição de 1890 do Volume I d’O Capital, de Engels, tornou-se a versão canônica a partir da qual a maioria das traduções em todo o mundo foi feita. Até o momento, o Volume I foi publicado em 76 idiomas, e em 59 desses projetos os Volumes II e III também foram traduzidos. Com exceção do Manifesto Comunista, co-escrito com Engels e provavelmente impresso em mais de 50 milhões de cópias, bem como o Livro Vermelho, de Mao Zedong, que teve uma circulação ainda maior — nenhum outro clássico de política, filosofia ou economia teve uma circulação comparável à do Volume I d’O Capital.
Ainda assim, o debate sobre a melhor versão nunca cessou. Qual dessas cinco edições apresenta a melhor estrutura? Qual versão inclui as aquisições teóricas do velho Marx? Embora o Volume I não apresente as dificuldades editoriais dos Volumes II e III, que incluem centenas de mudanças feitas por Engels, ainda é bastante complicado.
Alguns tradutores decidiram se basear na versão de 1872-73 — a última edição alemã revisada por Marx — como no caso de Reitter e North com a nova edição inglesa. Uma versão alemã de 2017 (editada por Thomas Kuczynski) propôs uma variante que — alegando maior fidelidade às próprias intenções de Marx — inclui mudanças adicionais preparadas para a tradução francesa, mas desconsideradas por Engels. A primeira escolha tem a limitação de negligenciar partes da versão francesa que são certamente superiores à alemã, enquanto a segunda produziu um texto confuso e difícil de ler.
Melhores, portanto, são as edições que incluem um apêndice com as variantes feitas por Marx e Engels para cada versão e também alguns dos importantes manuscritos preparatórios de Marx, até agora publicados apenas em alemão e em alguns outros idiomas.
No entanto, não há uma versão definitiva do Volume I. A comparação sistemática das revisões feitas por Marx e Engels ainda depende de mais pesquisas por seus estudiosos mais cuidadosos.
Marx tem sido frequentemente chamado de antiquado, e os opositores de seu pensamento político adoram declará-lo derrotado. Mas mais uma vez, uma nova geração de leitores, militantets e estudiosos estão aprendendo com sua crítica ao capitalismo. Em tempos sombrios como o presente, este é um pequeno bom presságio para o futuro.
Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/05/por-que-karl-marx-continuou-retrabalhando-no-capital/