Líder do novo partido alemão ganha espaço. Suas ideias sobre imigração e identidade são controversas. Mas ao propor que os progressistas liguem-se de novo às maiorias, e se afastem da ordem liberal em crise, ela merece ser ouvida
Por: Fernando Marcelino
Em 2018, a revista The Economist identificou a esquerda que combina o desenvolvimento da economia nacional com conservadorismo cultural como um fenômeno em ascensão.
Em 8 de janeiro de 2024, foi fundado na Alemanha a Aliança Sahra Wagenknecht – Razão e Justiça [Bündnis Sahra Wagenknecht – Vernunft und Gerechtigkeit (BSW)]. A nova formação política é liderada por Sahra Wagenknecht (nascida em 1969), uma das políticas mais conhecidas de sua geração na Alemanha e ex-estrela do Partido de Esquerda [Die Linke]. Ela nasceu na Alemanha Oriental comunista, filha de mãe alemã e pai iraniano, e ingressou no governante Partido da Unidade Socialista (SED) em 1989, poucos meses antes da queda do Muro de Berlim. Após a reunificação alemã, juntou-se ao partido sucessor do SED, que acabou se fundindo no Die Linke. Eleita primeiro para o Parlamento Europeu e depois para o Bundestag, o parlamento alemão, tornou-se cada vez mais estridente nas suas críticas à imigração irrestrita, especialmente depois de 2015, quando cerca de um milhão de pessoas da Síria e de outros países chegaram à Alemanha.
Durante 2023, divergências com o Die Linke aumentam até a saída dela e outros deputados para fundação do BSW. Apontou principalmente a perda de contato com sua base na classe trabalhadora e a descompostura do partido em relação a questões como a guerra e a inflação. O Die Linke não se manifestou com veemência contra o apoio ocidental à guerra na Ucrânia. Wagenknecht disse: “se você defende políticas energéticas irracionais, como trazer a energia russa mais cara via Índia ou Bélgica, enquanto faz campanha para não reabrir os oleodutos com a Rússia para obter energia barata, as pessoas simplesmente não acreditarão que você defenderia os milhões de trabalhadores cujos empregos estão em risco como resultado do colapso de indústrias inteiras provocado pelo aumento dos preços da energia”.
As posições políticas do BSW incluem a defesa do mercado, a concorrência e a propriedade privada. Wagenknecht rejeita a acusação de que queria uma “economia estatal à la RDA [antiga Alemanha Oriental]”. O primeiro capítulo do manifesto fundador do BSW, “Razão Económica”, fala: “Buscamos uma economia inovadora com concorrência leal, empregos seguros e bem remunerados, uma elevada proporção de valor agregado industrial, um sistema fiscal justo e uma classe média forte. A indústria alemã é a espinha dorsal da nossa prosperidade e deve ser preservada. Precisamos de fundos futuros para promover empresas nacionais inovadoras e start-ups e não de subsídios de bilhões de dólares para empresas estrangeiras. Nosso objetivo é uma meritocracia justa, com mais concorrência e pequenas e médias empresas fortes”.
O capítulo “Paz” do manifesto opõe-se à “resolução de conflitos por meios militares”, mas sobretudo porque tais operações ocorrem atualmente predominantemente no âmbito da aliança da OTAN dominada pelos EUA. “O Bundeswehr (exército alemão) tem a tarefa de defender o nosso país e deve estar adequadamente equipado para esta tarefa”. Defende “uma política autoconfiante, que se baseia na percepção de que os interesses dos EUA são por vezes significativamente diferentes dos nossos interesses”. O objetivo é “uma Europa independente de democracias soberanas num mundo multipolar”, que evite que a Europa seja esmagada “entre os EUA e o novo bloco de poder em torno da China e da Rússia”.
O último capítulo do manifesto, “Liberdade”, consiste em dois parágrafos. O primeiro alerta para a ameaça à liberdade representada pela “cultura de cancelamento” e pelo “autoritarismo político que pretende educar as pessoas e regular o seu estilo de vida ou língua”. O segundo parágrafo destina-se aos refugiados e migrantes. Diz que a “coexistência de diferentes culturas” poderia de fato ser “um enriquecimento”; no entanto, isto só se aplica “enquanto o influxo permanecer limitado a uma ordem de grandeza que não sobrecarregue o nosso país e as suas infraestruturas”. Sobre a questão, na conferência de imprensa, Wagenknecht disse que, face à falta de habitação, de professores e de educadores, foi completamente irresponsável permitir a imigração descontrolada porque sobrecarrega completamente o país.
Em seu livro The Self-Righteous [algo como “O Hipócrita”], Wagenknecht argumenta que a esquerda política na Alemanha (Die Linke, o Partido Social Democrata e os Verdes) foi dominada por “liberais de esquerda”, uma panelinha intolerante e obcecada por si mesma que só fala entre si e ignora o seu apoio eleitoral tradicional. Aponta que a Alemanha está profundamente dividida. A coesão social está se desintegrando. A união social foi substituída por um conjunto de grupos largamente hostis entre si. O bem comum e o espírito público são palavras que praticamente desapareceram da linguagem cotidiana. Pela forma com que vem conduzindo o debate público, a esquerda já não representa a justiça aos olhos de muitos, mas sim a justiça própria: um estilo de debate que faz com que muitos se sintam magoados, moralmente degradados e repelidos. Em seu livro, Wagenknecht diz que
Os liberais de esquerda afirmam defender a diversidade, o cosmopolitismo, a modernidade, a ação climática, o liberalismo e a tolerância. Por outro lado, declaram guerra a tudo o que o pensamento liberal de esquerda considera de direita: nacionalismo, bloqueio ao pensamento contrário, provincianismo, racismo, sexismo, homofobia, islamofobia. Para os liberais de esquerda, a fé, a nação e a pátria são sinais de atraso. (pág. 99). A teoria por trás dessa abordagem é chamada de política de identidade. Está no cerne do liberalismo de esquerda e fornece o quadro prático no qual se baseia a visão de mundo liberal de esquerda. A política de identidade equivale a concentrar-se em minorias cada vez menores e cada vez mais bizarras, cada uma das quais encontra uma identidade em alguma peculiaridade que a distingue da maioria da sociedade, e da qual deriva a reivindicação de vitimização. (pág. 102)
O liberalismo de esquerda é um movimento político-intelectual relativamente recente que só ganhou influência social nas últimas décadas. Ela aponta que o nome “liberalismo de esquerda”, contudo, é enganador. Estritamente falando, não é nem de esquerda nem liberal, mas contradiz ambas as tendências políticas em questões fundamentais. Uma reivindicação importante de qualquer liberalismo, por exemplo, é a tolerância para com outras opiniões. Os típicos liberais de esquerda, no entanto, mostram o oposto: extrema intolerância para com qualquer pessoa que não partilhe a sua visão das coisas. O liberalismo também luta tradicionalmente pela igualdade jurídica perante a lei, enquanto o liberalismo de esquerda luta pelas cotas e pela diversidade, ou seja, pelo tratamento desigual de diferentes grupos.
Wagenknecht enfatiza que o liberalismo de esquerda tem a sua base social na classe média abastada e com formação universitária nas grandes cidades. Isto não significa que todos os graduados com bons rendimentos que vivem numa cidade grande sejam liberais de esquerda. Mas o liberalismo de esquerda está em casa neste meio, e os seus formadores de opinião vêm deste estrato comparativamente privilegiado. Os partidos liberais de esquerda apelam sobretudo aos mais instruídos e com rendimentos mais elevados e são eleitos principalmente por eles. Os liberais de esquerda defendem uma forma multicultural, multigênero e globalista de política de identidade. Vivem nas suas próprias bolhas sociais e têm pouco contato, para além dos puramente transacionais, com aqueles que exploram. Acima de tudo, convencidos da virtude dos seus estilos de vida e atitudes progressistas, eles desprezam os valores tradicionais e a solidariedade da classe trabalhadora. Aponta que os neoliberais e os liberais de esquerda são virtualmente idênticos. Ela afirma mesmo que os neoliberais de ontem são os liberais de esquerda de hoje: “Assim, o egoísmo tornou-se autorrealização; a flexibilização tornou-se diversidade de oportunidades; ; a globalização tornou-se abertura ao mundo; e a irresponsabilidade para com as pessoas do seu próprio país tornou-se cosmopolitismo”.
Urbano, cosmopolita, individualista – para muitas pessoas hoje, ser de esquerda tornou-se uma questão de estilo de vida. O que falta são conceitos políticos de solidariedade social que beneficiem as mulheres com baixos rendimentos, as crianças migrantes pobres, os trabalhadores temporários explorados e grandes sectores da classe média. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, a obsessão pelos pronomes em vez da igualdade de oportunidades e uma atitude desdenhosa em relação à cultura e ao sentido de comunidade correm o risco de alienar a esquerda de grandes setores da população, ao mesmo tempo que faz o jogo da extrema direita.
Ela diz que coexistiam duas esquerdas, uma esquerda que aumenta os salários e que quer distribuir a riqueza de forma justa e uma esquerda que regula o discurso e que quer afirmar a identidade de gênero ou combater o racismo. Durante muito tempo, essas duas esquerdas – econômica e cultural – tenderam a encontrar um lar nos mesmos partidos. Porém, com a ascensão do novo liberalismo de esquerda, “o foco da política de esquerda já não está nos problemas sociais e político-econômicos, mas em questões de estilo de vida, hábitos de consumo e atitudes morais”. Para Wagenknecht, o liberalismo de esquerda desempenhou um papel importante no declínio da cultura de debate. A intolerância liberal de esquerda e o discurso de ódio de direita são fenômenos inter-relacionados que precisam um do outro e se reforçam mutuamente. A arrogância da esquerda liberal cede terreno à direita. As políticas de identidade ameaçam consumir a esquerda e os conservadores que, com orgulho, instigam as chamadas “guerras culturais” para enfatizar as diferenças culturais entre os ativistas da esquerda e os eleitores da classe trabalhadora. E quanto mais ruidosas as injúrias da direita, mais os liberais de esquerda se sentem fortalecidos na sua posição.
Penso que é uma tragédia que a maioria dos partidos social-democratas e de esquerda tenham seguido o caminho errado do liberalismo de esquerda, que teoricamente destruiu a esquerda, deixando-a, em grande medida, alienada de grandes partes do seu eleitorado. Esta é uma aberração que fortalece o neoliberalismo como filosofia política, apesar de haver maiorias na população a favor de uma política diferente: por mais equilíbrio social, por uma regulação sensata dos mercados financeiros e da economia digital, por direitos mais fortes dos trabalhadores e por uma política industrial inteligente.
Quatro décadas de liberalismo econômico, cortes sociais e globalização dividiram de tal forma as sociedades ocidentais que a vida real de muitas pessoas é conduzida dentro dos limites da sua própria bolha social. E também existem muros de frieza emocional separando aqueles que não conhecem outra vida além da abundância dos que adorariam viver sem medo existencial, se pudessem. Wagenknecht aponta que a transformação dos partidos de esquerda, que atingem cada vez menos pessoas com baixos rendimentos e desfavorecidos, é um desenvolvimento indesejável. Avalia que a principal razão para o declínio dos partidos de esquerda é que eles não se preocupam o suficiente com as chamadas pessoas comuns. Esta parte da população, luta contra o aumentos de preços e a falta de habitação acessível, e tem pouco a ver com ideias de esquerda “esclarecidas” defendidas por partidos de esquerda. Wagenknecht defende um apelo a uma esquerda forte e uma análise das causas pelas quais a maioria dos partidos de esquerda e social-democratas na Europa nos últimos anos perderam os seus antigos eleitores.
Wagenknecht pensa que a primeira prioridade dos partidos de esquerda é defender os interesses dos trabalhadores e não prosseguir políticas de identidade. Defende que é possível produzir de forma diferente, mais inovadora, mais local e de uma forma mais amiga da natureza, distribuindo os resultados de forma melhor e mais justa. Pode-se moldar a comunidade democraticamente, em vez de deixar as decisões sobre as nossas vidas e o desenvolvimento econômico para grupos de interesse que estão apenas voltados para seu próprio lucro. Pode-se encontrar o caminho de uma boa coexistência solidária que, em última análise, beneficia todos: aqueles que perderam nos últimos anos e agora têm medo do futuro, mas também aqueles que estão bem, mas que não querem viver em um país dividido que pode acabar onde estão hoje os Estados Unidos.
O partido tem sido descrito de diversas formas: economicamente socialista, conservador cultural, nacionalista, conservador de esquerda, socialismo de direita e populista de esquerda de matiz conservadora. O jornal Münchner Merkur rotulou o partido de “nacional e socialista”, escrevendo: “Para Wagenknecht, o nacionalismo não parece mais ser o inimigo maligno, mas um meio e um fim para mobilizar as pessoas para o seu tipo de socialismo.” Da mesma forma, o Die Tageszeitung descreveu a ideologia do partido como “socialismo com um código de direita” e colocou-o no contexto de uma mistura de nacionalistas e conservadores de esquerda. Wagenknecht afirmou que o seu partido “obviamente não é de direita”, mas sim de esquerda no sentido de “lutar por mais justiça social, bons salários, aposentadorias decentes”.
O BSW quer mais investimento em serviços públicos e infraestruturas; mais redistribuição da riqueza e aumento dos gastos com assistência social; mais investimento público na indústria e nos negócios. Afirma que, caso triunfe, não haverá mais alianças militares lideradas pelos EUA. Pede conversações de paz com a Rússia, imigração reduzida e o fim da cultura de cancelamento. Contra o seu foco predominante nas políticas de identidade e nas escolhas de estilo de vida, ela defende as preferências culturais dos grupos socioeconômicos mais baixos. Afirma que não é sensato para a esquerda rotular instintivamente alguém que não concorda com políticas de identidade e códigos linguísticos como de “direita”.
O partido de Wagenknecht visa agradar eleitores culturalmente conservadores e economicamente de esquerda. Um partido que não contribui para a polarização da sociedade, mas sim para a revitalização de valores comuns. Visa buscar os eleitores com valores conservadores de esquerda, uma combinação singular, representando uma mudança significativa no cenário político.
O cientista político Cas Mudde diz que existe um eleitorado “significativo” com opiniões conservadoras de esquerda. Mas acrescenta que “a maioria destes eleitores preocupa-se mais com as suas opiniões culturais de direita do que com as suas opiniões econômicas de esquerda”. O novo partido tem implicações não só para o futuro da política alemã, mas também para a forma como pensamos sobre o que a esquerda está se transformando em parte do mundo ocidental.
A proposta da BSW – ou Alliance Sahra Wagenknecht – será testada pela primeira vez nas eleições europeias de julho. No entanto, é provável que três eleições estaduais na Alemanha Oriental, em setembro de 2024, forneçam uma indicação mais forte sobre seu desempenho.
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/que-sahra-wagenknecht-diz-a-esquerda/
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