Conheça o episódio entre a teórica norte-americana e o filósofo brasileiro que transformou a linguagem dele e impactou a obra dela
Por Ana Clara / Créditos da foto: (Reprodução/pt.org.br)
Bell Hooks é autora, professora, teórica feminista, artista e ativista antirracista estadunidense. Ela publicou mais de trinta livros e diversos artigos acadêmicos, é uma intelectual referência no movimento feminista e sua obra incide sobre a interseccionalidade de raça, capitalismo e gênero.
Nos cem anos de Paulo Freire, você pode se perguntar: por que trazemos Hooks para o cenário?
Primeiro, porque a autora baseia boa parte da sua obra nos escritos de Paulo Freire sobre pedagogia e educação. No livro “Ensinando a transgredir”, ela dedica um capítulo inteiro ao educador e filósofo brasileiro. Segundo a própria ativista, Freire “foi um dos pensadores cuja obra me deu uma linguagem. Ele me fez pensar profundamente sobre a construção de uma identidade na resistência”.
Ainda nesta obra, Hooks publica uma entrevista dela com ela mesma usando “Gloria Jean Watkins”, seu nome de batismo, para questionar sua relação com o filósofo. Doçura e solidariedade foram as palavras que ela escolheu para partilhar de sua visão sobre Freire.
No entanto, apesar da admiração intelectual mútua, a conexão não se construiu apenas no rasgar de seda. A autora conheceu não apenas as obras, mas também o próprio Paulo Freire pessoalmente, em um seminário na universidade que ela dava aula.
Na ocasião, Hooks criticou o filósofo pela linguagem sexista nas obras dele. O educador acolheu as críticas e argumentou que estaria mais atento nas próximas publicações — o que de fato ocorreu. Em suas obras posteriores, tal como “A política da educação” ou “Lendo a palavra e o mundo”, o uso da linguagem sexista é evitado. E Freire amplia o grau de escuta que vinha das críticas levantadas pelas feministas, apesar dele não aceitar apontamentos retroativos.
Você vê, durante os anos 70, o movimento feminista não criticou o tratamento do gênero nas minhas obras. Mas o movimento dos anos 90 está sendo muito crítico. Por que? Porque os movimentos dos anos 90 estão agora vendo coisas das quais não estavam ainda conscientes nos anos 70. Eu penso que está errado criticar um autor utilizando-se instrumentos que a história ainda não havia dado a ele ou a ela. Eu escrevi a “Pedagogia do Oprimido” há vinte anos.” (Paulo Freire, 1993)
À época, o acontecimento foi o que hoje a gente chamaria de treta na timeline. Diante dos ataques, Bell Hooks saiu em defesa do educador e disse que o sexismo em suas obras não é motivo para desculpas, mas sim para um aprendizado, e demonstrou a predisposição de Freire em admitir suas próprias limitações. E reforçou a importância da resposta dele durante aquele seminário, que causou um grande impacto sobre ela, em seus pensamentos e sentimentos.
“Tudo seria diferente para mim se ele tivesse tentado silenciar ou diminuir a crítica feminista”, Bell Hooks.
Importante destacar que o encontro entre Hooks e Freire foi um dos melhores exemplos de ‘choque construtivo’. À medida que a autora transformou a linguagem de Freire e abriu seus olhos para críticas de outras feministas, a obra do filósofo foi profundamente marcante para a autora — e por que não, ajudou-a a conceber suas próprias reflexões sobre feminismo.
“Uma frase isolada de Freire se tornou um mantra revolucionário para mim: ‘Não podemos entrar na luta como objetos para nos tornarmos sujeitos mais tarde.’ Realmente é difícil encontrar palavras adequadas para explicar como essa afirmação era uma porta fechada – e lutei comigo mesma para encontrar a chave – e essa luta me engajou num processo transformador de pensamento crítico.” , pontuou a autora.
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