Dentro da lei, Brasil poderia desmatar o equivalente a duas Alemanhas, emitindo bilhões de toneladas de CO2. UE e pesquisadores temem que foco em coibir desmatamento ilegal leve a afrouxamento de regras ambientais.
Por: Edison Veiga
Parece óbvio, mas não custa repetir: para o equilíbrio da natureza, arcabouços legislativos não fazem a menor diferença. O que significa que pouco importa se o desmatamento foi feito seguindo os limites previstos na legislação ambiental — que, no caso brasileiro, variam conforme o bioma — ou se é o chamado desmatamento ilegal. A consequência, quem sentirá, é o planeta.
A importância de conter também o desmatamento considerado legal é o ponto central de uma pesquisa científica que será publicada no próximo dia 23 de novembro pelo periódico Environmental Research Letters.
Segundo os autores do estudo, se o agronegócio brasileiro resolver desmatar toda a área hoje permitida pela lei, isso significa uma perda de 70 milhões de hectares de vegetação nativa — o equivalente a duas vezes o total da área da Alemanha. No total, acarretaria uma emissão adicional de 5,8 bilhões de toneladas de carbono.
Os pesquisadores identificaram que, desses 70 milhões de hectares, 3,25 milhões estão sob forte risco de serem desmatados até 2025. São locais considerados de alta aptidão para agropecuária, pois são próximos de infraestrutura, contam com solo favorável e estão em regimes climáticos adequados para o cultivo de commodities.
Tal mapeamento foi desenvolvido a partir de um estudo realizado ao longo de seis meses por nove pesquisadores da Universidade de São Paulo, Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola e as organizações não governamentais WWF-Brasil e Trase.
Risco de afrouxamento da lei
Segundo os pesquisadores, no caso do Brasil ainda há muita área passível de desmatamento legal; e em diversos países, inclusive o Brasil, há lobbies de bancadas ruralistas e outros interessados que pretendem afrouxar ainda mais a legislação.
Por conta disso, os autores do estudo recomendam que o conceito de desmatamento adotado em legislações de países importadores não difira se o mesmo foi legal, legalizável ou ilegal.
“Nosso argumento é bem claro: é inócuo, ineficaz e até ineficiente você tentar diferenciar desmatamento legal de ilegal, principalmente em um país como o Brasil. A gente precisa acabar com o desmatamento de modo absoluto”, afirma Tiago Reis, líder da Trase na América do Sul e um dos autores do trabalho.
“No momento, Reino Unido, Estados Unidos e União Europeia estão formulando políticas para verificar e potencialmente inibir a importação de produtos associados ao desmatamento ilegal em países produtores”, contextualiza ele. “[Se tais regulações não forem bem planejadas] existe um problema grave, porque podem permitir a continuidade do chamado desmatamento legal e ainda estimularem a mudança de legislação de países produtores.”
UE manifesta preocupação com “incentivos errados”
Em proposta apresentada pela Comissão Europeia nesta quarta-feira (17/11) para determinar que o bloco adquira somente commodities com o compromisso do desmatamento zero, a preocupação com a legislação ambiental ficou clara.
“Espera-se que a definição de livre de desmatamento evite a criação de incentivos errados para os países terceiros, que, de outra forma, seriam tentados a reduzir os padrões ambientais para facilitar o acesso de seus produtos à União Europeia se apenas controles de legalidade forem estabelecidos na proposta”, diz trecho de um dos documentos.
Em nota, a organização não governamental WWF reconheceu a importância dos termos da proposta, mas, ao mesmo tempo, demonstrou preocupação com as possíveis lacunas.
“Como maior bloco comercial do mundo, a União Europeia tem a responsabilidade de impedir que seu consumo cause destruição da natureza. Com esta proposta, a Comissão Europeia criou as bases para que o bloco se torne a primeira região a abordar de forma abrangente seu papel no desmatamento global”, afirmou Ester Asin, diretora do escritório de política europeia da ONG.
Risco de desmantelamento das regulações ambientais brasileiras
“O grande problema do foco em legalidade é que ele cria um incentivo perverso para que se legalize aquilo que hoje é ilegal”, analisa o biólogo Mairon Bastos Lima, pesquisador no Instituto Ambiental de Estocolmo.
“Põe-se uma máscara sobre o problema. Legaliza-se no Brasil, aceita-se assim no mercado consumidor estrangeiro, e não se resolveu nada do problema prático que são as perdas ambientais e as suas consequências negativas para as pessoas.”
Segundo ele, essa postura esconde um risco: agravar o que já está em curso. “Sob nomes amistosos, como ‘simplificar’, ‘facilitar’ ou ‘agilizar’ os trâmites ambientais, o que tem sido feito é diminuir as exigências, afrouxar as proteções ambientais e deixar correr solto, deixar a boiada passar”, comenta. “Se, em cima disso, houver ainda um incentivo de mercado para a legalização, o atual desmantelamento das regulações ambientais brasileiras pode aumentar ainda mais.”
Professor na Universidade Federal de Viçosa, o engenheiro agrícola Marcos Heil Costa lembra que essas legislações que diferenciam o que é desmatamento legal e o que é desmatamento ilegal estão sujeitas a “fortes lobbies de alguns setores”.
“A maneira mais eficiente [de não permitir um afrouxamento] seria contrabalançar esse lobby no Congresso. As pressões internacionais sob a forma de acordos comerciais ajudam um pouco, mas devemos nos lembrar que nem todas as commodities produzidas são destinadas à exportação”, ressalta ele. “Muitas são destinadas ao mercado interno, onde praticamente não há pressão por produtos oriundos de áreas não desmatadas.”
Mas se o ideal é desmatamento zero, existe desmatamento pior? “O desmatamento ilegal continua sendo pior, pois é um sintoma claro de falta de vontade política de um lado, e da corrupção do agente público do outro. Dá insegurança ao produtor que quer produzir legalmente e fragiliza o sistema como um todo. E a longo prazo a perda líquida de cobertura florestal tende a ser maior”, avalia o biólogo Magno Botelho Castelo Branco, especialista em ecologia e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“É preciso ser claro: do ponto de vista do planeta, da natureza, e das pessoas que sofrem por causa da destruição ambiental, sejam as tempestades de areia no Brasil ou a mudança climática global, não faz nenhuma diferença se essa destruição ocorre legal ou ilegalmente”, acrescenta Lima. “O planeta não vai deixar de aquecer se o desmatamento ocorrer legalmente.”
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