A eleição presidencial do próximo domingo está marcada pelo processo constituinte que desmontou o legado pinochetista. Mas a direita se reorganizou para defender a herança neoliberal da ditadura e podemos ter uma polarização radical entre dois candidatos de fora do “establishment” no segundo turno.
Por Juliano Medeiros / Créditos Foto: Marcelo Hernandez / Getty Images
No próximo domingo acontecem as eleições presidenciais no Chile. O país foi sacudido nos últimos anos por uma onda de protestos populares que viraram a política chilena de pernas pro ar e colocaram um ponto final na polarização entre neoliberais de centro-esquerda e neoliberais de centro-direita. Mas como?
O fim da sangrenta ditadura de Augusto Pinochet (1973-1989) permitiu que os chilenos pudessem novamente eleger seus representantes e os partidos voltassem a funcionar. A vitória do No no plebiscito de decidiu pelo fim do regime autoritário, em 1989, restabeleceu a democracia. Diferente do Brasil, os crimes da ditadura não ficaram totalmente impunes e houve justiça de transição, punindo agentes da ditadura.
No entanto, apesar dos governos democráticos terem se esforçado para criar uma consciência nacional em torno dos horrores da ditadura, a base econômica e social do regime pinochetista foi preservada. A constituição chilena é produto dos primeiros experimentos neoliberais desenvolvidos no regime militar pelos chamados “Chicago boys” – economistas estadunidenses que usaram o país como cobaia para suas teorias econômicas. O resultado não poderia ser mais trágico.
O fim do legado neoliberal de Pinochet
No Chile não há universidades gratuitas, o que faz com que os estudantes tenham que se endividar juntos aos bancos para poder custar seus estudos. O sistema de aposentadorias é todo baseado em fundos privados, com pensões baixíssimas que jogam milhões de idosos à própria sorte todos os anos.
Esse modelo nunca foi questionado pela coalizão de centro-esquerda, formada pelo Partido Socialista e pela Democracia-Cristã. Por duas décadas a chamada “Concertación” governou dentro das regras herdadas do regime militar. A constituição de Pinochet era uma realidade, era o “sistema” e ponto. Mas veio a crise econômica global de 2008 e as rebeliões estudantis de 2011.
Como aconteceu em todos os países, a crise impactou especialmente os mais pobres. No Chile, os estudantes – que desde o início dos anos 2000 questionavam o modelo – foram a vanguarda da resistência. Sua luta impactou o sistema político, que teve que abrir espaço a novos partidos. Uma reforma eleitoral em 2014 colocou o fim ao bipartidarismo que marcou a política chilena desde a transição.
Entre os novos partidos surgiram várias legendas formadas por lideranças estudantis oriundas dos protestos de 2011. Esses partidos questionavam o pacto da transição e a constituição de Pinochet em vigor. Questionavam também a centro-esquerda e sua aceitação do neoliberalismo. Queiram mais democracia e mais direitos. Assim, a política chilena, antes dominada por uma polarização entre centro-esquerda e centro-direita, viu surgir novos atores oriundos dos movimentos de constatação ao neoliberalismo. Uma nova esquerda, jovem, combativa e profundamente crítica ao modelo de governabilidade existente até então.
Em 2019 começa uma nova onda de protestos, uma verdadeira rebelião popular contra todas as formas de desigualdade. A luta estudantil encontrou a luta indígena; o feminismo juntou-se aos sindicatos; os aposentados saíram às ruas ao lado dos mineiros. Uma energia de mudança tomou o país. Milhares de pessoas exigiam o fim das políticas neoliberais.
Da constituinte às eleições
Já não era mais possível ao velho sistema manter-se de pé. Após meses de protestos brutalmente reprimidos pelo governo direitista de Sebastián Piñera, foi convocado um plebiscito para que o povo decidisse se queria uma nova constituição. Era a oportunidade de uma transição de verdade. Num processo de mobilização constante, a imensa maioria se manifesta favorável à convocação de uma assembleia constituinte formada por novos deputados e deputadas. Ela é formada majoritariamente por movimentos e partidos progressistas e a nova esquerda passa a ter papel decisivo nas lutas pela nova constituição.
A eleição presidencial do próximo domingo está profundamente marcada por esse processo. Ela é resultado direto da convulsão social dos últimos anos. Quem lidera as pesquisas é Gabriel Boric, líder estudantil em 2011, deputado pela região de Magallanes e um dos articuladores do movimento Frente Amplio, coalizão de partidos e movimentos que alcançou 20% nas últimas eleições presidenciais com a candidatura da jornalista Beatriz Sánchez.
Seu principal adversário é José Antonio Kast, um ex-deputado de extrema direita e fã assumido de Pinochet. Ele usa a crise do modelo para reivindicar uma “mudança” e defender a ditadura. Afirma que a crise que o país vive não tem a ver com o modelo econômico herdado da ditadura, mas com as mudanças introduzidas pela democracia liberal. Em meio às incertezas de uma classe média conservadora, Kast ganha cada vez mais adeptos.
Os candidatos de centro (tanto de esquerda quanto de direita) ocupam, segundo pesquisas recentes, o terceiro e quarto lugar na corrida presidencial. Significa que há grandes chances do segundo turno, em dezembro, ser disputado entre dois candidatos de fora do “establishment” numa mega polarização que representa perfeitamente uma resposta à crise da democracia liberal e suas saídas tecnocráticas.
Por isso, a eleição no Chile é tão importante. Uma vitória de Boric pode colocar no poder uma geração de lutadores que nasceu da luta contra o neoliberalismo e as vacilações da “velha esquerda”. Uma vitória de Kast pode fortalecer uma saída reacionária para a crise, premiando a América Latina com um novo Bolsonaro. Por isso, não há espaços para titubear: o candidato das esquerdas no Chile é Gabriel Boric.
Veja em: https://jacobin.com.br/2021/11/o-que-esta-em-jogo-no-chile/
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