O historiador marxista Caio Prado Júnior faleceu neste dia em 1990. Sua obra nos ajuda a entender a articulação entre dependência externa e exploração interna e desvendar como a atual estrutura de classes brasileira herdou o passado colonial após a independência e a abolição – resultando de um lado uma minoria proprietária e de outro uma grande massa trabalhadora.
Por Leda Paulani / Acervo Brasiliense/Divulgação
Na monumental biografia política de Caio Prado Júnior publicada pela editora Boitempo em 2016, Luiz Bernardo Pericás, seu autor, relata um episódio que faz parte do processo em que a ditadura militar, sob a acusação de “incitação subversiva”, condenou e prendeu, aos 63 anos de idade, o grande intelectual. Em determinado momento da instrução, o oficial que entrevistava Caio lhe perguntou: “O senhor é o homem que inventou esse tal de marxismo no Brasil, não é?”.
A feição anedótica do caso não deve, é claro, apagar a violência política que corria naquele início dos anos 1970, menos ainda fazer esquecer quão pouco divertido deve ter sido, para nosso autor, àquela altura da vida, encarar mais essa prisão. Se o trago aqui, neste texto, é porque penso que, em sua inacreditável obtusidade, o inquisidor de coturno esbarrou sem querer com a verdade de seu objeto. Se evidentemente Caio não “inventou” o marxismo no Brasil, ele, no entanto, a partir do paradigma descoberto por Karl Marx, inaugurou por aqui a construção daquilo que poderíamos chamar de a economia política do Brasil, dando assim início à mais fecunda das tradições intelectuais que buscam encontrar respostas aos recorrentes descaminhos do país.
O livro História e desenvolvimento, recém republicado pela Boitempo, escrito originalmente em 1968 como tese de livre-docência para a cátedra de história da civilização brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), é um dos tijolos dessa base estrutural que Caio constrói, e cuja pedra de lançamento fora a publicação, quase quatro décadas antes, em 1930, de Evolução política do Brasil. Mas, enquanto intelectual (não vamos falar aqui diretamente do militante político), Caio é conhecido, discutido, criticado e louvado como historiador. Com que direito venho eu agora dizer que seu métier é a economia política? Será que puxo a brasa pra minha sardinha?
A bem da honestidade, devo dizer que pode haver aí um fundo de verdade. Quando fui convidada pelo professor Pericás a escrever este texto, minha primeira reação foi de recusa: não sou historiadora (quem me dera!), tampouco grande conhecedora da obra do próprio Caio. Aceitei o desafio, contudo, porque abria-se a oportunidade de voltar ao grande autor, a quem fora apresentada, nos distantes anos da graduação em economia na FEA-USP, por meio das páginas de Formação do Brasil contemporâneo e História econômica do Brasil. Isso posto, organizar o andamento dos argumentos de modo a poder comentar o livro do ponto de vista da economia política, claramente mais confortável para mim, seria uma boa estratégia – e não de todo espúria, a julgar pelos ecos, ainda em mim presentes, da longínqua leitura das citadas obras. Quando me pus, porém, a ler História e desenvolvimento (que não conhecia), fiquei ainda mais feliz por ter aquiescido ao arriscado convite: é de economia política que se trata, e de economia política do Brasil, o continente de reflexão e teoria que Caio Prado inaugurou por aqui.
Poder-se-ia argumentar que, feitas as contas, a associação entre economia e história não é nova e que, sendo nosso autor declaradamente marxista, tampouco deveria ter eu me surpreendido que o livro abordasse de maneira tão direta tal temática. Afinal, não existe materialismo histórico sem economia política nem esta sem aquele. No paradigma marxiano, a chave de tudo, a categoria básica que permite iluminar longos períodos e firmes estruturas, bem como movimentos conjunturais e rupturas, é o conceito do modo de produção, o qual abriga em sua base, como se sabe, o substrato material, econômico, da sociedade (as forças produtivas e a forma como socialmente se organizam). O argumento é válido, mas, ainda assim, insuficiente para negar o fato de serem distintos tais tipos de trabalho e reflexão intelectual, por mais que a afiliação ao marxismo nos faça renegar a cultura de especialistas – a se alastrar como praga de contágio crescente e sempre renovado.
Que a questão é ardilosa revela-se pelas armações, em princípio opostas, de dois de nossos mais importantes pensadores, ambos, de certa forma, herdeiros do espaço aberto por Caio Prado para pensar o país. Para Florestan Fernandes, que escreveu o prefácio desta obra, em 1988, para a terceira edição de História e desenvolvimento publicada pela editora Brasiliense e que é reproduzida no presente volume, “Caio Prado Júnior dedicou-se à investigação e à explicação da economia brasileira ao longo de vários anos”. Já para Fernando Novais, no ensaio que escreve à guisa de introdução do Formação do Brasil contemporâneo para a edição da Nova Aguilar (2000), “Caio foi desde o início historiador”. Verdade que Florestan, poucas páginas à frente, fala de nosso autor como “um grande historiador”, enquanto Novais diz, na sequência, que a obra de Caio vai se desdobrando na análise econômica (e também na reflexão filosófica e no ensaísmo político). A troca de posições, longe de contradição, claro, alarga o campo de investigação.
No ensaio já citado, Novais arma que, em Evolução política do Brasil e História econômica do Brasil, a exposição cronológica oblitera o procedimento analítico, que, no entanto, em Formação do Brasil contemporâneo, se revela inteiramente. Ao começar o livro apresentando a discussão sobre o sentido da colonização, Caio teria tornado manifesto o movimento que sai da aparência empírica para as categorias básicas de análise, o qual permite, na sequência, que os vários setores da realidade sejam iluminados enquanto manifestações desse sentido, explicando-o e sendo por ele explicados.
Na linguagem de Marx, diríamos que Caio, em sua investigação, parte da representação caótica da colônia portuguesa na América no início do século XIX, por um processo de análise chega às suas determinações mais simples e, guarnecido por elas, faz a viagem de volta, tornando inteligível aquela realidade concreta em suas múltiplas e contraditórias determinações. O mais importante aí é que a detalhada narrativa por ele construída sobre os vários segmentos e instâncias sociais do Brasil colônia naquele momento de sua história não produz apenas explicações sobre a natureza de cada elemento, mas vai corporificando e dando efetividade àquele sentido.
Não terá sido, pois, de pouca monta a proeza de Caio. Ao transportar para a exposição o caminho de sua investigação, não só o texto ganha formidável poder argumentativo, como configura o que Novais vai chamar de “um tratamento dialético quase na forma pura”. E esse método, que se torna assim praticamente explícito, deixando de portar aquela expressão rarefeita característica das considerações metateóricas, não é nada mais nem nada menos que aquilo que o próprio Marx chamou, num texto inacabado, de o método da economia política.
Fiz todo esse preâmbulo para dizer que, se Caio é o historiador que é e tem o notável trabalho de historiador que tem, isso só é possível porque ele traz na base de sua análise a economia política. Como seu objeto era a identidade nacional do Brasil e as possibilidades de sua transformação, ele fez debutar no país o território inexplorado da economia política do Brasil. E nosso autor fez isso desde 1930, ano do surgimento de Evolução política do Brasil, a primeira peça desse caminho de investigação do qual o livro História e desenvolvimento, escrito quase quatro décadas depois, também faz parte. E continuou nessa trilha fecunda mesmo depois de se filiar ao Partido Comunista, que tinha sobre o país teses que se chocavam abertamente com as descobertas que ele ia fazendo.
É neste sentido que Caio é o mestre soberano da economia política do Brasil, por ter inaugurado o caminho e nele permanecido firmemente. Não por acaso, portanto, Formação do Brasil contemporâneo tornou-se um clássico, ainda que não de imediato. Segundo Paulo Arantes, sua análise mostrando os vínculos entre sistema colonial e capitalismo comercial, golpeando por isso a convicção dual barateada que então se alastrava na forma de uma crença na justaposição de “dois Brasis”, permaneceu no limbo por pelo menos duas décadas, até ser reativada pela escola uspiana de ciências sociais. Hoje, porém, é difícil pensar em várias das mais importantes reflexões sobre nosso país, principalmente no que concerne às relações entre a base material e as demais instâncias da produção social da vida, sem que se faça referência a seu trabalho. Menciono aqui uns poucos, mas relevantes, exemplos de autores e escolas tributários do esforço pioneiro do mestre, o que nos levará de volta a História e desenvolvimento.
Começo pelo mesmo Fernando Novais, de quem já me socorri aqui. Não é preciso mencionar a riqueza e as profícuas consequências de seus esquemas em torno do antigo sistema colonial para o entendimento do que viemos a ser. Esses esquemas agregam à expansão comercial marítima europeia, que está no cerne do processo de investigação de Caio Prado, o contexto maior do andamento da acumulação primitiva no centro do sistema, sob a régua e o compasso do capital comercial. Note-se também que o corte que produz a análise sincrônica de ambos os autores se dá no mesmo ponto: a crise do antigo sistema colonial que Novais examina, vale dizer, o curto período de três décadas que vai do fim do século XVIII ao início do XIX, é o mesmo “ponto morto” a que havia chegado o regime colonial de que nos fala Caio Prado na primeira página de Formação.
Para o historiador Milton Ohata, a última interpretação abrangente de nossa historiografia antes de O trato dos viventes, de Luiz Felipe de Alencastro, foi justamente Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, de Fernando Novais, obra que, em sua visão, “aprimora as análises de Caio Prado em Formação do Brasil contemporâneo”. E, sobre o primeiro trabalho, ele diz que Alencastro “com uma erudição de atordoar […] periodiza, multiplica e dá corpo aos enunciados teóricos de mestre Novais”. Um silogismo básico é suficiente neste ponto para que se perceba por que Caio Prado é o mestre soberano.
É verdade que as coisas aqui não são tão simples, e o próprio Ohata arma logo de início que, ao mesmo tempo que O trato dos viventes dá continuidade ao trabalho de Novais, ele também o modifica. De fato, a argumentação de Alencastro é poderosa no sentido de mostrar a autonomia que ganham os interesses luso-brasílicos frente àqueles da metrópole, de modo que o tráfico negreiro (que já estava no escopo do comércio português desde meados do século XIV), ao funcionar como a cola do sistema, acaba por reduzir a importância que até então se costumava atribuir ao pacto colonial. Todavia, para o que quero mostrar aqui, esse embate não se coloca como empecilho, antes o contrário: revela quão profícuo foi o pioneirismo de Caio Prado.
Também não terá sido casual uma observação de um dos autores mais celebrados da teoria da dependência sobre Caio e sua obra. Em ensaio sobre ele, Fernando Henrique Cardoso afirma que, em Formação, o grande historiador foca a luz no fundamental, isto é, a articulação entre dependência externa e exploração interna, dinâmica que constitui, como se sabe, uma das chaves do famoso livro que o ex-presidente escreveu com Faletto.
Não será demais lembrar ainda uma entrevista de Chico de Oliveira, na qual afirma ele que as pistas do dualismo já estão em Caio; mais ainda, que, em A revolução brasileira, escrito em 1966, e que Chico vê como uma espécie de coroamento de toda uma interpretação do Brasil que ele vinha construindo, a percepção-chave é que, em nosso país, o capitalismo, ao não integrar, desintegra, de modo que nosso desenvolvimento não pode seguir o padrão clássico.
Veja em: https://jacobin.com.br/2021/11/a-economia-politica-do-brasil-e-seu-mestre-soberano/
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