Recuperação econômica trará consigo aumento da inflação, da pobreza e do endividamento. Riscos de novas crises são reais. Encará-las dependerá de formas mais cooperativas de enfrentar desafios sanitários, climáticos, sociais e geopolíticos
Por: André Moreira Cunha e Andrés Ferrari/ Sul 21| Imagem: Otto Dettmer
O que esperar da economia global em 2022? Como é usual, nas últimas semanas essa pergunta esteve em alta. Por mais difícil que seja o exercício de construir análises prospectivas, particularmente de variáveis socioeconômicas, certos pontos de convergência se destacam nas projeções mais recentes de agências governamentais, órgãos multilaterais, bancos de investimento, gestores de fundos e analistas em geral [1]. Dentre eles, podemos elencar os seguintes:
1. A recuperação da economia global tem sido intensa, mas desequilibrada. A OCDE (OECD Economic Outlook, December 2021) mostrou recentemente que, depois de uma contração da renda em 2020 (-3,4%), o ano de 2021 possivelmente encerrou com crescimento entre +5% e +6%. Para 2022 e 2023, aquela instituição vislumbra uma acomodação no ritmo de expansão, que retornaria para um patamar entre +3% e +4%. Os mercados financeiros seguiram em alta até o final do ano passado, particularmente em renda variável. Todavia, esta realidade depende mais da continuidade dos estímulos monetários excepcionais, do que do desempenho da economia real.
2. A inflação também está em alta, tendo atingido 5% a.a. no conjunto das economias da OCDE no final de 2021. Isto se deveu ao descompasso entre a recuperação da demanda, que foi mais rápida, em função dos programas de proteção dos governos nacionais, e a capacidade de ampliar a oferta de bens e serviços. Nesta segunda dimensão, foram marcantes as pressões de custo derivadas da escassez localizada de trabalho em determinados setores e regiões (por aposentadorias precoces, mudanças de ocupação, menor mobilidade entre países e nos países, etc.), de insumos e de serviços estratégicos (silicone e alumínio, o que afetou a produção de microprocessadores; contêineres; matérias-primas; energia; dentre outros). Tais elementos são usualmente considerados temporários e a OCDE espera uma acomodação dos índices de preço ao consumidor no patamar de 3% a.a. em 2022 e 2023. Ainda assim, a persistência na alta dos preços nas economias avançadas no final de 2021 poderá induzir as autoridades monetárias a antecipar a introdução de políticas mais restritivas.
3. A fragmentação do comércio global, já observada no pós-2009, ganhou força no contexto da pandemia. Há sinais de que, especialmente nas principais economias maduras, as empresas estão reavaliando riscos e reduzindo suas exposições relativas ao suprimento de insumos ou a produção de bens e serviços finais em localizações mais distantes ou que se encontram sujeitas a restrições sanitárias ou a problemas geopolíticos. Portanto, ampliou-se a internalização de cadeias produtivas, em um movimento que, de acordo com a consultoria McKinsey, pode atingir cifras equivalentes a ¼ do comércio global até meados de 2025 (ou perto de US$ 5 trilhões em valores atuais).
4. O “reshoring” e o “nearshoring” se reforçam e são potencializados pelas novas políticas industriais e de investimentos na América do Norte, na Europa e em partes da Ásia. Com a pandemia, os problemas associados ao suprimento de insumos e de equipamentos para a área de saúde tornaram ainda mais evidentes os limites do padrão prévio de globalização, que criou cadeias produtivas muito longas, complexas e controladas por atores externos. A suposição geopolítica deste modelo era a manutenção de uma ordem internacional relativamente estável, de modo a permitir a fluidez nas trocas internacionais de bens, serviços, pessoas e capitais. Após dois grandes choques globais – a crise financeira de 2007-2009 e a pandemia da Covid-19 – o quociente de exportações de bens e serviços em relação ao PIB recuou de 31% (2008) para 26% (2020) para o conjunto da economia mundial. Os fluxos líquidos de investimento direto estrangeiro (IDE), também como proporção do PIB, passaram de um pico de 5% (2005) para valores abaixo de 2% (desde 2018). As exportações e o IDE seguirão importantes, mas dificilmente serão os motores do crescimento nos mesmos moldes observados nas últimas três décadas, particularmente na Ásia. Não à toa, países que se beneficiaram desta dinâmica, estão se voltando “para dentro”, especialmente a China com a sua nova estratégia de “circulação dual” – a priorização do consumo doméstico com manutenção da abertura externa.
5. Desequilíbrios previamente preocupantes se aprofundaram. A distribuição de renda e de riqueza piorou, com segmentos de renda média e alta obtendo ganhos desproporcionais em função da maior valorização dos ativos financeiros em relação às rendas do trabalho. A intervenção dos principais bancos centrais, por meio da expansão dos seus balanços, já havia catapultado o mercado acionário (e outros segmentos financeiros) para sucessivos recordes de alta depois de 2009. Esta política se traduz na emissão de moeda (passivo monetário dos BCs) para a aquisição de ativos privados e públicos nos mercados secundários de dívida. Com isso, os BCs irrigam o mercado bancário com “dinheiro novo”, acumulando, por contrapartida, ativos menos líquidos e/ou de baixa qualidade. Entre 2009 e 2019, os ativos conjuntos das autoridades monetárias dos EUA, Europa, Japão e China passaram de US$ 9 trilhões para US$ 19 trilhões. Já entre 2020 e 2021, verificou-se um novo salto que fez com que aqueles atingissem US$ 31 trilhões. Ou seja, no primeiro ciclo de estímulos a liquidez gerada foi, em média, de US$ 1,0 trilhão/ano; com a pandemia este patamar chegou a US$ 6,0 trilhões/ano. Por decorrência, o crescimento acumulado do índice Dow Jones foi de 401% no primeiro ciclo, já no segundo, aquele índice dobrou, após a queda de -34% entre fevereiro e março de 2020.
6. A retomada no aumento da pobreza em escala global é o novo normal. Considerando apenas a renda, mas não o estoque de riqueza, o Banco Mundial observou que: (i) a evolução efetiva da renda dos mais pobres ficou bem abaixo daquela que poderia ter ocorrido sem a pandemia; (ii) o quintil superior foi o que experimentou menor perda de renda potencial; e (iii) 100 milhões de pessoas voltaram à situação de pobreza extrema somente em 2021. Se o conjunto da economia global experimentou uma intensa recuperação em “V”, com estimativas de variação do PIB entre 5% e 6% em 2021, o desempenho dos países de baixa renda dificilmente ultrapassará os 2%. Para o Banco Mundial, o elemento central a explicar tais divergências é a menor vacinação relativa nos países de menor renda. Estes apresentam menos de 10% da população com pelo menos uma dose aplicada, ante os mais de 75% verificados nos países de alta renda.
7. O acúmulo de dívidas tem se acentuado nos anos pós-crise financeira global e, com redobrado vigor, depois da pandemia. Para o conjunto dos países emergentes e em desenvolvimento, o Banco Mundial estimou que, em 2020, o setor privado detinha um estoque de dívidas como proporção do PIB de 142%, ao passo que o setor público registrava 63%. Assim, o endividamento total foi de 205% do PIB, o que equivale ao dobro dos montantes contabilizados em 2007.
8. Para o conjunto da economia global, o FMI apontou um estoque de débitos da ordem de 256% do PIB (ou US$ 226 trilhões) no final de 2020. Em 2007, este indicador era de 195%. Os países avançados, emissores de moedas conversíveis internacionalmente, e emergentes como a China, conseguiram condições mais favoráveis de financiamento. Seus governos, famílias e empresas foram responsáveis por 90% do incremento de dívida observado em 2020, e que foi de US$ 28 trilhões. Os demais países enfrentaram maiores restrições de crédito. Tais assimetrias são estruturais, e não devem revelar mudanças abruptas em 2021, 2022 e em um futuro próximo. Ademais, se, por um lado, elas representam a maior capacidade de gasto dos setores privado e público nos momentos de crise nas maiores economias, por outro, revelam o aprofundamento dos desequilíbrios potenciais de estoques naquelas. O caso chinês recente merece atenção especial, dados os problemas no setor imobiliário. Os níveis totais de endividamento de famílias, empresas e governo da China, que já eram altos antes da crise financeira global (140% do PIB em 2007), estão próximos a 300% do PIB (2021).
9. Neste contexto, várias economias encontram-se em situação de maior exposição às mudanças abruptas de política econômica, tanto as domésticas, quanto as externas. A descontinuidade dos estímulos monetários e fiscais poderá comprometer não apenas a retomada do crescimento, como gerar maiores dúvidas sobre a trajetória de preços-chave e do valor dos ativos financeiros, particularmente dívidas e ações. Muitos gestores de riqueza lançam mão de estratégias agressivas de alavancagem e investimento: tomam dinheiro emprestado no mercado monetário, às taxas curtas, que se aproximam das policy rates – atualmente próximas a zero nas principais moedas conversíveis internacionalmente, como o dólar e o euro – e aplicam em ativos de renda fixa mais longos, em renda variável e em diversos produtos financeiros exóticos e opacos. Quando as taxas de juros determinadas pelas Autoridades Monetárias sobem de forma vigorosa e abrupta, muitos fundos de investimento e de empresas que operam com níveis elevados de endividamento e uma carteira de ativos de mais longa maturação – se defrontam com graves problemas de liquidez (“falta de caixa”). Por decorrência, acionam o “botão de vendas”, o que pode precipitar uma corrida desordenada de busca por liquidez com intensa queda de preços. Quase todas as crises financeiras se caracterizam por profundos desequilíbrios de estoques e são precipitadas por situações específicas, como o aumento de juros, crises políticas e sociais que gerem incerteza acima do normal, rupturas de segmentos específicos, dentre outros fatores. Os desequilíbrios correntes são tão ou mais intensos do que aqueles observados antes de outros episódios de crises sistêmicas.
10. A evolução da economia global seguirá na dependência fundamental de fatores não estritamente econômicos. Em 2022, a pandemia da Covid-19 entrou em seu terceiro ano, em meio ao intenso avanço da quarta onda de contaminações. No nível internacional, a média móvel semanal de novos casos expandiu-se de forma exponencial, com variação de 350% entre outubro de 2021 (400 mil) e janeiro de 2022 (1,8 milhão). Já as mortes seguem em queda, com uma média diária de 6,0 mil (04/01/2011), que é menos da metade dos casos de um ano atrás (14 mil/dia). Conforme evidenciado em artigo anterior, as dificuldades em avançar na imunização ocorrem tanto em países de renda baixa e média, usualmente por restrições financeiras e de infraestrutura na distribuição das vacinas; quanto nos países de alta renda, pela resistência de parte da população em aderir às campanhas de prevenção (uso de máscaras, isolamento social etc.) e de vacinação. Dificilmente haverá uma recuperação robusta e sustentável do ambiente econômico, sem que os desafios sanitários criados pela pandemia da Covid-19 sejam enfrentados com efetividade em todos os países, e não somente nos de renda média e alta. Ademais, as restrições culturais e políticas não podem ser minimizadas neste esforço internacional.
Os destinos da economia global em 2022 e nos anos subsequentes estão intrinsecamente ligados às formas mais ou menos cooperativas com que os problemas sanitários (e outros) serão enfrentados. Para além da pandemia, o mesmo diagnóstico se aplica aos desdobramentos da crise climática, do maior endividamento global e das tensões geopolíticas, especialmente entre EUA e China. As dificuldades para enfrentar coletivamente desafios que são internacionais por definição pode ampliar as possibilidades de que sejamos conduzidos a cenários de menor dinamismo econômico e de maior instabilidade social e política.
Conforme enfatiza o economista-chefe do Morgan Stanley, Seth Carpenter, “… as coisas estão se normalizando, mas não estão normais”. A incerteza que caracteriza as projeções econômicas tornou-se ainda maior. A leitura dos diversos relatórios de bancos e agências oficiais sugere que há a percepção majoritária de que a trajetória em curso das principais economias será de recuperação moderada, mas fortemente desequilibrada. Os riscos de deterioração deste cenário benigno não são negligenciáveis. Problemas prévios – distributivos, políticos, setoriais, etc. – aparentemente se agravaram, o que reforça a nossa percepção de esgotamento do padrão de globalização com domínio de políticas neoliberais. Ademais, a crise sanitária e a maior ocorrência de episódios climáticos extremos nos lembram que a humanidade não controla plenamente aspectos centrais de sua própria existência. Pelo contrário, conflitos sociais, culturais, econômicos e políticos parecem aprofundar os desequilíbrios inerentes às forças da natureza, bem como tendem a dificultar a construção racional e coletiva de caminhos mais sustentáveis. Como sugeriu Gramsci, crises sociais mais amplas (“orgânicas”) se caracterizam pelo fato de que “… o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”. A convergência de crises (sanitária, ambiental, “da democracia”, geopolítica, econômica etc.) que se retroalimentam deixou de ser um evento isolado ou passageiro na realidade social do século XXI. Neste sentido, 2022 não será muito diferente de 2021, pois possivelmente vamos seguir presos em um interregno gramsciano.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/dez-pontos-para-pensar-a-economia-global-em-2022/
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