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Nancy Fraser encara o capitalismo canibal

Em seu próximo livro, filósofa feminista sugere: enfrentar sistema, em sua fase mais brutal, exige atualizar o marxismo e rever as concepções de trabalho produtivo. Recriação de sujeitos coletivos, proposta pelo populismo de esquerda, é caminho

Por: Martin Mosquera | Entrevista com: Nancy Fraser |Tradução: Vitor Costa

Durante décadas, a teórica norte-americana Nancy Fraser ofereceu ideias poderosas para a esquerda. Em alguns momentos, essas ideias são abertamente políticas, como quando Fraser pede que o feminismo corte seus laços com a elite econômica e adote políticas de classe que possam atacar a opressão em suas raízes. Outras vezes, são conceitos teóricos importantes, como sua discussão sobre a interação entre o capitalismo e as “condições de fundo” das quais o sistema depende.

Capitalismo Canibal, a ser lançado pela Verso Books (em inglês), em setembro

 

 

Em seus últimos trabalhos, Fraser defende uma síntese entre o prático e o teórico, a fim de evitar o desastre iminente que ela chama, em seu próximo livro, de “capitalismo canibal”: a visão de que o capitalismo, ao invadir todas as esferas da vida, pode destruir própris suas condições de sobrevivência – e, mais importante, as nossas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Martín Mosquera, da Jacobin América Latina, conversou com Fraser sobre os cenários futuros que surgirão no horizonte se não agirmos decisivamente para minar o poder do capital. Também abordou os desafios envolvidos na construção de uma frente comum na luta política.

Seus trabalhos mais recentes desenvolvem um “conceito ampliado de capitalismo”. Trata-se de questionar a definição tradicional que se concentra estritamente no capitalismo como um sistema econômico, certo?

Sim, a concepção ampliada de capitalismo é uma tentativa de abandonar as interpretações inadequadas e grosseiras de um certo marxismo que pensa em termos de infraestrutura e superestrutura, ou seja, que afirma que o verdadeiro fundamento da sociedade é o sistema econômico e que tudo o mais é uma superestrutura. Nesse modelo, a causalidade flui unidirecionalmente da base econômica para a superestrutura jurídico-política. Mas se falarmos da relação entre o subsistema econômico da sociedade capitalista e as condições de possibilidade que constituem seu pano de fundo necessário, a imagem da base e da superestrutura se complica. Afirmar que algo é uma condição necessária da economia implica que as atividades que fazem o funcionamento do sistema econômico capitalista – a produção de mercadorias, a possibilidade de vendê-las com lucro e acumular capital, a compra de força de trabalho e seu uso – não podem se desenvolver a menos que outros elementos, às vezes considerados fora da economia, estejam presentes.

Nesse sentido, por exemplo, são necessárias as relações de parentesco que organizam os nascimentos, os cuidados, a socialização e a educação das novas gerações, que reabastecem as forças dos trabalhadores adultos a quem alimentam, banham, vestem e descansam para voltar ao trabalho no dia seguinte. Acho que esse é um argumento bem conhecido dos leitores da Jacobin e que foi desenvolvido em detalhes por feministas que trabalham dentro dessa variante do feminismo marxista chamada Teoria da Reprodução Social. Se tomarmos o exemplo da reprodução social, percebemos imediatamente que, se essa condição de fundo não for devidamente realizada, a produção desorganiza-se. Isso implica que as possibilidades de acumulação de capital por meio do sistema econômico são limitadas por algumas características das relações de parentesco, como as taxas de natalidade ou mortalidade. Portanto, as condições de fundo têm consequências importantes em todo o processo. Desta forma, podemos construir um quadro de causalidade mais complexo.

Poderíamos dizer algo semelhante sobre as chamadas condições estruturais “naturais” ou “ecológicas”. A produção capitalista e a acumulação de capital pressupõem que todas as coisas materiais de que o sistema precisa estão disponíveis sem limites na natureza, o que basta para envolvê-las no processo produtivo. Mas as matérias-primas, as fontes de energia e a possibilidade de descarte de resíduos – todas condições estruturais indispensáveis – não são ilimitadas. Ao mesmo tempo, é claro que falhas em ecossistemas essenciais (por exemplo, esgotamento de fontes de energia ou poluição excessiva) também podem paralisar as indústrias. O covid-19, que é, pelo menos em um nível, o resultado da disfunção ecológica, nos fornece um exemplo particularmente interessante de tudo isso agora. Trata-se de um vazamento zoonótico, ou seja, a transmissão de um vírus que, por meio de algumas espécies intermediárias – provavelmente pangolins – passa de morcegos para humanos e faz com que todo o sistema econômico encolha e se desligue. Nesse sentido, podemos dizer que o covid-19 é um excelente exemplo de causalidade que corre na direção oposta ao esquema de infraestrutura e superestrutura.

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Gostaria de me concentrar no seu conceito de “lutas de fronteira”. São as lutas para definir as fronteiras entre economia e sociedade, produção e reprodução etc., ou seja, entre o “primeiro plano” e suas “condições de fundo”. Em algum momento, parece que essas lutas de fronteira são sinônimos de luta de classes.

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Para explicar as lutas de fronteira, costumo me referir à perspectiva de Karl Polanyi. Sem usar o termo, Polanyi estava muito interessado nas lutas fronteiriças entre o que ele chamou de mercado autorregulado – poderíamos dizer simplesmente a economia – e a sociedade. Essa abordagem também enfrenta múltiplos problemas sobre os quais não vou me deter neste caso, mas o que é interessante e frutífero é a ideia de que a luta não se desenvolve simplesmente em torno da distribuição da mais-valia. Em vez disso, desenvolve-se em torno daqueles elementos que definirão a gramática da vida. Em uma determinada comunidade, o capital terá carta branca ou não? Isso levanta questões muito profundas sobre o poder e quem tem o poder de moldar a gramática da vida em uma sociedade. Todas essas são questões que, nas sociedades capitalistas, são sub-repticiamente retiradas da agenda política e delegadas sem nosso consentimento ao capital e aos responsáveis ​​pela acumulação de capital.

Falar de lutas fronteiriças nesse sentido nos aproxima da questão que você coloca. Não se trata apenas de distribuição, mas da gramática da vida social. O conceito de classe tende a nos fazer pensar que se trata de “quem ganha quanto” e isso não é totalmente apropriado. O que eu digo também soa um pouco populista. A noção de lutas de fronteira nos diz que há um problema fundamental em traçar a linha entre sociedade e natureza, e isso nos traz de volta ao coronavírus e ao vazamento zoonótico. Essas perguntas se tornaram inevitáveis ​​hoje e acho que a situação atual deve ser suficiente para deixar para trás qualquer tipo de ingenuidade sobre isso.

Problemas muito sérios surgem quando se pensa na relação entre o trabalho remunerado – que presumo que existirá, de alguma forma, em uma sociedade socialista – e as demais atividades que fazemos em nossas comunidades, relações familiares, criação dos filhos, etc. Esses problemas não vão desaparecer e são precisamente a eles que me refiro quando falo de lutas de fronteira. É provável que, no momento em que nos envolvemos nessas lutas, os interesses não sejam totalmente claros. Como socialista democrática, suponho que em uma sociedade socialista deve haver algum tipo de mercado. Acho que não podemos continuar falando sobre economias burocraticamente planificadas. Mas os problemas surgem quando perguntamos quais são as fronteiras legítimas dentro das quais os mercados devem funcionar ou quais coisas são legítimas para comprar e vender. Acho que falar de lutas de fronteira implica assumir que devemos disputar tudo isso nas sociedades capitalistas. Não é apenas que as lutas de fronteira sejam uma alternativa às lutas de classes. É que as lutas de classes às vezes assumem a forma de lutas de fronteira, e as lutas de fronteira – quando bem conduzidas – às vezes assumem a forma de lutas de classes.

Em sua conversa com Rahel Jaeggi você rejeitou a ideia de um capitalismo “pós-racista” ou “pós-sexista”, mas em “O capitalismo é necessariamente racista?”, sua conclusão é que talvez estejamos caminhando para uma forma de acumulação capitalista que diluirá “a base estrutural do racismo”, porque a expropriação (que era a base da opressão racista) não estará mais nitidamente separada da exploração. Poderíamos dizer o mesmo da reprodução social e do patriarcado?

Pessoalmente, evito usar o termo patriarcado porque tem um significado técnico que se refere ao domínio de homens mais velhos e uma ideia de dependência que inclui tanto homens quanto mulheres. Prefiro falar das formas especificamente capitalistas de dominação masculina. E acho que essas formas de dominação referem-se a algo que – até onde posso entender – é específico das sociedades capitalistas na medida em que se opõem às sociedades pré-capitalistas. O que é específico das sociedades capitalistas é a nítida diferenciação entre a produção de mercadorias, que depende do trabalho assalariado e da acumulação de capital, e a reprodução social, que depende fortemente do trabalho não assalariado, da família e de certos membros das comunidades, especialmente as mulheres. Acredito que a separação dessas duas funções essenciais da sociedade baseada no gênero é específica do capitalismo, e se existe um eixo estrutural das formas de dominação masculina, é esse.

Agora, eu diria que não é possível superar completamente a dominação masculina sem mudar essa separação. Devemos imaginar a relação entre produção e reprodução de uma maneira completamente nova, uma maneira que as torne muito mais porosas uma à outra. A verdade é que essas esferas não podem ser categoricamente diferenciadas, tanto em sua relação com a acumulação de capital quanto nas formas como se relacionam com o gênero. É como a mudança climática e a ideia de que a descarbonização é realmente impossível. Uma sociedade sustentável não pode ser construída sem descarbonização. Você não pode ter uma sociedade verdadeiramente justa no campo do gênero sem mexer com essa divisão. Em certo sentido, esses são argumentos paralelos. E eu acrescentaria que onde a raça está em jogo, é impossível alcançar a justiça racial sem mexer na distinção entre exploração e expropriação, trabalho livre e trabalho injusto ou forçado, que acredito ser o fundamento da questão racial.

Mas eu também acrescentaria o que Hester Eisenstein chama de “relações perigosas” entre feminismo – ou formas liberais burguesas de feminismo – e capitalismo. Tem a ver com o fato de que muitas forças que promovem o capitalismo também querem desmantelar essas relações tradicionais de gênero, essas tradicionais hierarquias que podem representar obstáculos à mercantilização, capitalização e financeirização das coisas em grande escala. Se não percebermos isso, continuaremos imaginando o capitalismo como um sistema conservador, aristocrático e paternalista. É também por isso que há uma estranha hostilidade entre as elites liberais (que inclui feministas liberais, Wall Street, Hollywood, Vale do Silício e em todos os lugares onde o capitalismo neoliberal progressista existe) e as comunidades evangélicas e aqueles setores do que poderíamos chamar de “mundo de Donald Trump” que são a favor da família tradicional.

Como você mencionou, a crise do covid-19 é um exemplo impressionante de como as externalidades interagem com o capitalismo de maneiras complexas e podem levar ao tipo de crise capitalista que você define como “multidimensional”. Em outro lugar você também afirmou que, pelo menos desde 2008, o atual estágio do capitalismo financeirizado e neoliberal está passando por uma crise – talvez terminal – que poderia eventualmente implicar uma mudança para uma forma diferente de acumulação capitalista. O que pode ser dito sobre a crise atual?

Eu gostaria de apontar alguns elementos na maneira como você coloca a questão. Uma é que devemos distinguir entre crises setoriais e crises gerais. Uma crise setorial implica que, em um regime capitalista de acumulação ou em uma fase de desenvolvimento capitalista, uma área importante começa a ser disfuncional, enfrenta algum obstáculo intransponível, desestabiliza o sistema etc. Tendemos a pensar nas crises econômicas dessa maneira. Os historiadores podem dar exemplos dessas crises em uma esfera ou setor da sociedade, neste caso, a economia.

Não é o mesmo que uma crise geral de toda a ordem social. Os historiadores também usam esse conceito de crise geral: uma espécie de sobredeterminação de obstáculos e disfunções. Na verdade, acho que é isso que estamos vivendo agora. É verdade que vivemos formas periódicas de crise econômica, como a de 2007-2008, que estava prestes a se tornar um colapso financeiro, embora aparentemente nossos governantes tenham encontrado uma maneira de resolver o problema. Mas acho que agora podemos entender que esse impulso para a financeirização é uma bomba-relógio que está sempre prestes a explodir e que, nesse sentido, a crise não foi resolvida.

Ao mesmo tempo, temos o problema do aquecimento global e uma crise ecológica muito séria, talvez catastrófica, que vem se formando há muito tempo e agora se tornou aparente. Cada vez mais setores da população mundial, mesmo aqueles que conseguiram permanecer relativamente isolados dos efeitos mais danosos, estão começando a entender a magnitude da crise. Temos também uma crise de reprodução social, ou seja, de todas aquelas atividades essenciais ligadas ao nascimento e ao cuidado do ser humano, que nem sempre são comercializadas diretamente: educação, saúde, trabalho doméstico, trabalho de cuidado, etc. Este setor também está em crise. É muito interessante ver o ativismo gerado em torno desses setores, que em alguns casos abrigam mais atividade sindical do que certas áreas da indústria.

Até agora temos uma crise de reprodução social e uma crise ecológica. Mas acho que também estamos passando por uma grave crise política. E a eleição de Joe Biden nos Estados Unidos está longe de ser uma solução. Isso é em parte uma crise de governo, com isso quero dizer que mesmo os países mais poderosos, como os Estados Unidos, atualmente carecem de capacidade de gestão para resolver os problemas que enfrentam. O poder corporativo os domina. Eles são incapazes de lidar com uma questão como as mudanças climáticas, que não podem ser contidas dentro dos limites de uma fronteira jurisdicional.

No entanto, há também uma crise de hegemonia no sentido gramsciano, um abandono geral da “normalidade” política. As pessoas estão se afastando dos partidos políticos tradicionais e das elites associadas (e deve-se acrescentar: deslegitimadas ou manchadas por) políticas neoliberais. Todos esses elementos se somam e resultam em uma crise geral. Uma boa metáfora para pensar a crise é a metástase: é possível forçar um câncer que surge em determinado lugar a regredir, mas depois pode irromper em outro. No nosso caso, pode ser tanto uma localização geográfica quanto setorial. Acho que essa crise está se tornando palpável e óbvia para muitas pessoas. No entanto, isso não significa que estamos nos aproximando de algum ponto de colapso total ou resolução revolucionária que nos levará a assumir o Palácio de Inverno ou qualquer coisa do tipo. Infelizmente, as crises podem se desenvolver por muito tempo.

O fato de esta crise ser particularmente aguda, multidimensional, sobredeterminada ou metastática não significa que possamos saber qual será o resultado do jogo ou quando ele terminará. Na história do capitalismo houve crises gerais que se desenvolveram ao longo de décadas. Poderíamos dizer que todo o século XX, até a derrota do fascismo e o fim da Segunda Guerra Mundial, foi apenas o desdobramento da crise geral do capitalismo colonial liberal ou laissez faire. Talvez haja um longo caminho a percorrer.

 

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