À DW, indigenista assassinado no Vale do Javari descreveu violência crescente da qual seria vítima dois anos depois. Ele via cenário como reflexo de “discurso anti-indígena” e “política genocida” de Bolsonaro.
Por: Nádia Pontes |Créditos da foto: Ueslei Marcelino/REUTERS. Manifestante cobra informações sobre o desaparecimento de Bruno Pereira, que aparece no cartaz, em 15 de junho de 2022
Era um sábado de manhã quando Bruno Pereira, ex-coordenador-geral do departamento que cuidava de indígenas isolados e de recente contato com a Fundação Nacional do Índio [Funai], teve a conversa redigida abaixo com a DW Brasil, por telefone. Ele acabara de se licenciar do órgão, após ser destituído da coordenação como provável consequência de uma fiscalização que destruiu balsas de garimpo em terras indígenas.
Naquele 1º de fevereiro de 2020, Pereira se mostrava indignado com os acontecimentos do dia anterior. O posto do qual ele havia sido exonerado seria ocupado por Ricardo Lopes Dias, ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização missionária fundada nos Estados Unidos e conhecida entre organizações indígenas por forçar o contato com grupos que escolheram viver em isolamento e tentar evangelizá-los.
O conteúdo da conversa entre Pereira a DW Brasil, que transcorreu por cerca de 16 minutos, foi citado numa reportagem publicada naquele sábado mesmo, repercutindo a reação de entidades depois da nomeação de Dias. A pedido de Pereira, que já recebia ameaças de morte pelo trabalho de proteção aos isolados que fazia na Funai, o nome dele não foi revelado.
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Na entrevista, Pereira falou sobre os bastidores da política anti-indígena do governo do presidente Jair Bolsonaro e do papel de Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no avanço sobre o território dos isolados na Amazônia.
“Tem um embate, uma disputa nos bastidores, com certeza com o avanço da ministra Damares, ministra extremamente, horrorosamente evangélica, como eles gostam de falar. E claro que os isolados… além da disputa espiritual, vamos dizer assim, porque é isso que está em jogo, eu sei quem é esse cara que está assumindo o cargo, é uma disputa fundiária. Não é só terra, mas minério, madeira, tudo”, afirmou.
Pereira contou sobre a intimidação sofrida por servidores da Funai, relatou o adoecimento de vários colegas e o aumento da violência contra quem atua na fiscalização ambiental e de direitos indígenas após as eleições de 2018.
“De repente, a gente percebeu que os caras estavam atirando em base nossa, metendo tiro, coisa que não faziam antes. Depois os caras diziam: ‘Acabou o tempo, a Terra Indígena é nossa de novo.’ A gente escutou isso na eleição, ainda em junho de 2018, já com o crescimento desse discurso anti-indígena do Bolsonaro. O reflexo é automático”, detalhou. “Virou tipo: quer derrubar floresta, botar gado, o momento é agora. E aí houve uma escalada muito grande de violência.”
Dois anos e quatro meses após essa entrevista gravada por telefone, Bruno Pereira foi assassinado no Vale do Javari. Em 5 de junho, enquanto navegava pelo rio Itaquaí, onde já havia trabalhado pela Funai, Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, que escrevia um livro sobre a Amazônia, foram mortos.
DW Brasil: Qual é a sua situação no momento dentro da Funai?
Bruno Pereira: Eu estou licenciado desde a última quarta-feira (29/01/2020), mas continuo servidor. Eu entrei no concurso de 2010.
Como era o seu trabalho de proteção junto aos indígenas isolados?
Eu trabalhava no Vale do Javari [Amazonas] na unidade de indígenas isolados. Existem 11 unidades que a gente chama de frente de proteção, que são coordenações de indígenas isolados da Amazônia. Eu trabalhava numa dessas no Vale do Javari, na fronteira entre Brasil e Peru.
Eu fazia expedições de índios isolados, ficava muito tempo na mata, andando, procurando vestígios, elementos que comprovassem a presença de índios isolados, ou atacando, legalmente, claro, o avanço sobre o território dos isolados – combatendo o garimpo, madeireiros, e assim vai…
Eu passei oito anos no Vale do Javari e vim a Brasília assumir a coordenação geral de índios isolados do país, em julho, agosto de 2018. Fiquei até outubro do ano passado [2019], quando fui exonerado por esta gestão da Funai.
Aparelharam tudo. Depois de 30 anos da criação do departamento, da política de isolados, desde 1987 existe esse departamento. Foram mudando algumas coisas, mas é ele [departamento], sempre foi respeitado o conceito técnico. É um negócio muito sensível, sabe? A gente lida com situações de contato com índios isolados, longos períodos na floresta, proteção, saber dialogar com povos de recente contato. É um setor super sensível, e é preciso ter experiência com floresta, mato, relações interétnicas.
É a primeira vez que esses caras [atual gestão da Funai] arrebentam tudo de um vez. [Eles] me tiraram. Deu uma repercussão na época, em outubro do ano passado. Ficou uma substituta minha, que era uma funcionária nossa, de confiança nossa, antropóloga, que trabalha mais na área administrativa, mas entende de antropologia de índios isolados. Menos mal, tudo bem não mexer nos coordenadores de índios isolados na Amazônia, vamos passar esse temporal.
Mas agora transpareceu, eles botaram as vísceras para fora de toda a estratégia deles de avançar sobre a política de índios isolados brasileiros.
Tem um embate, uma disputa nos bastidores com certeza do avanço da Damares [Alves], ministra extremamente, horrorosamente evangélica, como eles gostam de falar. E claro que os isolados… além da disputa espiritual, vamos dizer assim, porque é isso que está em jogo, eu sei quem é esse cara que está assumindo o cargo, é uma disputa fundiária. Não é só terra, mas minério, madeira, tudo.
São muito simbólicos e emblemáticos para o mundo os índios isolados, sobretudo para a comunidade internacional. É um absurdo você mexer com isolados para tirar petróleo, ouro embaixo da terra. E o governo sabe disso. Esses caras vão arrebentar tudo, a começar pela evangelização, lentamente e gradual.
Você acha que eles [atual administração da Funai] não irão respeitar o isolamento? Eles irão forçar um contato?
Eles vão criar elementos para isso. Esses caras são ruins de serviço, mas eles vão criar [interrompe a frase]. Olha, tem uma matéria que saiu ontem no O Globo, é a segunda ou terceira, eles soltaram várias ontem, entrevistaram o cara lá.
Tem uma pergunta muito clara do jornalista Leandro Prazeres: “Você vai mexer na política de não contato?” [O missionário respondeu:] “Tenho que ver ainda, em time que está ganhando não se mexe.”
Ele não sabe do que está falando?
Exatamente. Qualquer noviço, qualquer pessoa que trabalha nesse meio nosso começa a discutir isolado e não contato. O cara não soube nem responder. Ele não sabe onde está pisando. Ele está por outros interesses ali dentro. E quem está por trás dele é gente da pesada, proselitista.
Isso tem que ficar muito claro para a sociedade: quem é essa missão [Missão Novas Tribos do Brasil], como ela atua na Amazônia, no Brasil, fazendo contato com grupos [inaudível]. É isso que esse cara representa. Eu acho que ele não vai sentar amanhã e dizer: “Agora está revogado”, acho que não. Mas ele vai tirar um coordenador, vai começar a abrir espaço para nomear “figuras”, vai deixar a coisa correr…
Numa situação de conflito em que índios isolados estão lá, [eles vão dizer] que os [isolados] precisam de ajuda, fazer o contato… Eles vão mudando de forma diferente. Eu acho que atuação deles vai ser mais forte nos índios de recente contato.
A gente está para estourar outras situações que estão acontecendo na Amazônia, do avanço dos missionários em grupos de recente contato desde o início [do ministério] da Damares. É uma confusão. Eu acho que [o que vai acontecer] é as igrejas aturarem com esses povos de recente contato e eles vão destruindo a política do não contato.
[Nota do editor: O Serviço de Proteção para Índios Isolados e de Recente Contato foi criado originalmente em 1987 como estrutura administrativa destinada à proteção física, patrimonial e cultural desses grupos. O serviço evoluiu com o passar das décadas e desde 2007 é chamado de Sistema de Proteção e Promoção de Direitos para Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC). Segundo sua lógica, a situação de isolamento dos indígenas é voluntária, e é preciso “respeitar a autodeterminação desses povos”].
Durante os seus anos de Amazônia, quais são as principais transformações que você viu? Você acha que o cerco dos garimpeiros aumentou nos últimos anos ou a situação era relativamente tranquila no seu trabalho?
Não, não tem tranquilidade nenhuma. É sempre guerra. A gente sempre teve. A Amazônia é um lugar meio esquecido por todos, sobretudo os brasileiros.
Nunca foi fácil. Ela [a Amazônia] tem várias realidades. Eu atuava numa região em que os problemas são alguns, então no Mato Grosso já é bem diferente – o arco do desmatamento, grilagem. Cada região tem algumas peculiaridades.
O que é meio novo, foi retomado desde o governo de Lula e Dilma, foram os empreendimentos avançando para a Amazônia: hidrelétricas, estradas, e assim vai. O capitalismo avançando sobre a floresta.
Eu estou há oito anos na Funai lá. Mas eu estou há 18 anos na Amazônia. Sou de Recife, Pernambuco. Agora estou há um ano e pouco aqui em Brasília. Fiquei 18 anos da minha vida lá, e vi isso paulatinamente avançando em cima de direitos, do meio ambiente, das reservas. Sendo que, nessa angústia da eleição de 2018, a coisa foi uma escalada muito rápida de violência. A gente monitorou isso muito rápido.
A gente tinha problema com madeireiro, garimpeiro… Sempre atuei, sou ameaçado de morte. Mataram um amigo meu, funcionário da Funai, no ano passado lá. Eu estou indo para a região até na próxima semana… Eu fui ameaçado porque destruí 60 balsas de garimpo junto com o Ibama e a Polícia Federal.
A coisa ganhou um discurso. De repente, a gente percebeu que os caras estavam atirando em base nossa, metendo tiro, coisa que não faziam antes. Depois os caras diziam: “Acabou o tempo, a Terra Indígena é nossa de novo.” A gente escutou isso na eleição, ainda em junho de 2018, já com o crescimento desse discurso anti-indígena do Bolsonaro.
O reflexo é automático. Os garimpeiros nos yanomami filmando a gente: “Eu vou mandar isso aqui para o presidente” [, diziam]. Várias vezes isso ocorreu.
Prefeitos, o poder público constituído… Virou tipo: “Velho, avança. Quer derrubar floresta, botar gado, o momento é agora.” E aí houve uma escalada muito grande de violência.
Eu estava vendo agora em uma matéria do G1 de ontem que uma equipe do Ibama matou uma cara lá em Roraima numa operação. São coisas que não são muito normais. A gente tem situações sinistras que ocorrem: violência, é muito perigoso fazer as operações… Agora, matar, são os sinais destes tempos.
Sequestram equipe do Ibama no Pará, queimam a ponte, daí o ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles, à época], vai lá e senta com os madeireiros, sabe… Os garimpeiros fecham a estrada e vêm se reunir com o presidente da República na frente do portão…. Ou seja, a violência retorna pra gente, que está ali pra proteger.
Ano passado a gente fez as maiores operações de garimpo do ano, foi em Terra Indígena. O Grupo Especial de Fiscalização do Ibama, o GEF, operou em setembro lá no Jutaí, no Javari. Destruíram 60 balsas de garimpo. A gente teve que ir quase escondido do governo. E o Bolsonaro ficou puto depois.
Foi a primeira operação do ano do GEF, entende. Na verdade, foi a segunda, eles tinham acabado de vir dos kayapó e foram para o Javari. Ou seja, eles estão proibidos de atuar porque Bolsonaro tinha dado uma live que não podia queimar as coisas [em operações de fiscalização contra garimpo ilegal].
Então esse é o nível. De lá a gente saiu para os yanomami e pipocamos garimpo, general segurando a onda, e os coronéis e generais em Brasília com medo na reunião: “O garimpo não vai ser resolvido assim” [eles diziam na reunião].
Está horrível o cenário. É um cenário escatológico. Não sei onde a gente vai terminar com tudo isso… Com Bolsonaro botando mineração em terra indígena, sabe? É doideira. É guerra do fim do mundo. É sinistro.
Tem servidor adoecendo. Não é todo mundo que está preparado para esse enfrentamento político e psicológico. A gente faz um concurso público, está com seu filho indo para a escola, eu tenho dois pequenininhos, mas ameaçado de morte e ameaçado pelo presidente da Funai que quer me processar. Sabe o terror?
Isso vai te destituindo, vai aviltando nossas resistências. Estão matando amigos nossos. Isso tudo é reflexo desses caras, dessa política genocida. A gente já sentia na eleição. Eu avisei na transição de governo aqui… […] Os militares são aliados antigos na Amazônia – alguns deles, pelo menos. A gente já falava: “Ou muda esse discurso ou vamos tomar tiro, eles [criminosos que agem na Amazônia] vão queimar as terras, eles vão queimar as bases da gente.” É o que está acontecendo.
Eu me lembro do ministro Santos Cruz [Carlos Alberto Santos Cruz, general da reserva do Exército, ministro-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro de janeiro a junho de 2019], do Heleno [Augusto Heleno Ribeiro Pereira, general da reserva do Exército e ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência] dizendo que era coisa de campanha, que eles fariam uma Funai mais forte. Papo tonto.
Estão ameaçando equipes nossas. Já têm três boletins de ocorrência que a gente registrou na Polícia Federal de ameaça de morte de três coordenadores nossos. É troca de tiros, morre gente…
E agora avançaram sobre os índios isolados. É surreal. Tem que dar esse destaque, a sociedade internacional tem que entrar, a pressão tem que existir. A gente queria os espaços para pautar dentro das Nações Unidas, da Comissão Europeia para chamar o Brasil. Evangelizar índios isolados? Parem.
Como eu posso identificar você na minha reportagem?
Cita a fonte como servidor da Funai que atua na política de isolados e que não quer se identificar. A melhor forma é essa. Eles sabem que sou eu, mas é mais seguro assim. Até os advogados estão falando isso.
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