Série de textos expõe impactos dos cinco anos de contrarreforma trabalhista no país. Primeiro artigo mostra: empregos de até um salário mínimo explodem no país desde 2018. E, com sindicatos enfraquecidos, reajustes salariais ficaram abaixo da inflação
Por: Vitor Filgueiras e Renata Dutra
A queda dos salários recebidos no momento de admissão no emprego formal no Brasil tem obtido destaque na grande mídia[1] nas últimas semanas. Contudo, o rebaixamento dos rendimentos dos trabalhadores com carteira assinada não se resume ao momento da contratação e não tem origem na pandemia.
Desde o final de 2021, segundo a PNAD (IBGE), os salários médios habitualmente recebidos pelos empregados com carteira assinada (setor privado) têm se mantido abaixo de qualquer outro período da série histórica da pesquisa, que permite comparações a partir de 2012. No último trimestre pesquisado (terminado em maio de 2022), por exemplo, os salários reais tinham caído 6,1% em relação ao trimestre imediatamente anterior à pandemia (dezembro de 2019 a fevereiro de 2020).
Os dados sobre o emprego formal tendem a ser mais bem captados pela RAIS, já que baseados no universo dos vínculos com carteira assinada (a PNAD é amostral) e nas próprias folhas de pagamento das empresas. A partir dos dados da RAIS, nota-se que a queda dos salários médios dos empregados (CLT) tem início em 2018, coincidindo com o período imediatamente posterior à entrada em vigor da reforma trabalhista de 2017.
Como demonstra o gráfico a seguir (elaborado com base na RAIS e no IPCA), entre 2003 e 2017, os salários médios reais caíram em apenas 2 anos[2]. O período contempla anos em que houve crescimento econômico e incremento do emprego, mas também períodos de estagnação e crise. Nesse intervalo não homogêneo, os salários médios não superaram a inflação somente nos anos de 2004 e 2015, justamente quando os reajustes de preços estiveram acima da média.
Em todos os três anos posteriores à reforma trabalhista (2018-2020), os salários médios dos empregados com carteira tiveram reajuste abaixo da inflação. No acumulado, entre 2018 e 2020, os salários médios caíram, em termos reais, cerca de 10%.
Desde 2021, a PNAD indica que essa trajetória tem piorado. Na comparação do último trimestre de 2020 com o último de 2021, o salário médio real do trabalhador com carteira assinada, habitualmente recebido, caiu 8,5%. Como nos anos anteriores, a PNAD não conseguiu captar a queda do salário médio da mesma forma que a RAIS (que tende a ser mais precisa), o que possivelmente revelará que a situação atual é ainda pior.
Quando o foco é na dinâmica dos salários divididos por faixas, o processo de pauperização do emprego formal parece ganhar contornos extremos, atingindo mais as faixas com renda mais baixa (trabalhadores que recebem um salário-mínimo ou menos).
O gráfico abaixo mostra como o período posterior à reforma trabalhista coincide com a elevação substancial de vagas (RAIS – vínculo CLT, salários de dezembro) que pagam um salário-mínimo (SM) ou menos, e a queda do emprego na faixa que percebe mais de 1 até 3 SM. Mesmo com a estagnação do valor do salário-mínimo nos últimos anos, inverteu-se a dinâmica do período compreendido entre 2003 e 2014.
Entre 2003 e 2014, o emprego com remuneração maior do que 1 e de até 3 SM cresceu em todos os anos. Em 9 desses 12 anos, essa faixa salarial cresce mais do que o emprego total, ampliando, portanto, sua participação no mercado formal. No acumulado desse mesmo período, as ocupações com 1 SM ou menos perdem participação – sofrem queda absoluta em 4 anos e perdem participação em 6 anos.
Os anos de 2015 a 2017, somados, têm saldo negativo para todas as faixas e no total do emprego. A partir de 2018, há descolamento entre as curvas: o emprego total tem baixa oscilação, o emprego com mais de 1 até 3 SM cai, e emprego com 1 SM ou menos cresce acentuadamente.
Assim, chamam a atenção duas tendências opostas apontadas pela RAIS:
1- Entre 2003 e 2014, no acumulado, o salário-mínimo real cresceu quase 60%, mas, ainda assim, houve aumento da participação de quem recebe mais de 1 e até 3 SM no total dos empregos (que atinge 67,8% do total dos postos formais em 2014, contra 57% em 2002). Ou seja, mesmo com a forte elevação do valor do SM, uma maior proporção das ocupações alcançava rendimentos superiores ao do mínimo.
2- No acumulado de 2018 a 2020, o valor real do salário-mínimo cresceu menos que 1%, ou seja, praticamente não houve variação real. Isso deveria facilitar a participação de postos que recebem acima de 1 SM. Entretanto, aconteceu precisamente o contrário, com o incremento da participação dos vínculos de que recebem 1 SM ou menos no total da ocupação, que passa de 4,8% para 8,2%.
Os microdados da PNAD[3] corroboram a continuidade dessa tendência. Entre o primeiro trimestre de 2021 e o primeiro trimestre de 2022, quase 60% do saldo do emprego formal foi formado por postos de trabalho com 1 salário mínimo ou menos, que saltaram de 6,4 para 8,3 milhões. Como resultado, no primeiro trimestre de 2022, quase 1 em cada 4 empregos com carteira assinada tinha rendimento habitual de, no máximo, um salário-mínimo.
Em média, o rendimento habitual desses 8,3 milhões de trabalhadores foi de R$ 1.158,00 no primeiro trimestre deste ano, segundo a PNAD. De acordo com o DIEESE, pessoas que ganham um salário-mínimo (R$ 1212,00) gastaram, em junho de 2022, na média dos locais pesquisados, 59,68% do seu rendimento para adquirir uma cesta básica[4].
Estamos tratando, portanto, de um processo de pauperização extremo do trabalho formal, visto que submete milhões de pessoas que têm carteira assinada – portanto, que trabalham e fariam parte do que alguns consideram “incluídos” ou “privilegiados” dentro de um universo de relações de trabalho marcadas pela informalidade e sonegação de direitos – a condições de completa vulnerabilidade e insegurança, inclusive alimentar.
Em suma, desde 2018, os pontos formais de trabalho que recebem 1 salário mínimo ou menos cresceram muito, mesmo com o valor do salário mínimo permanecendo quase estagnado.
Seria uma coincidência esse processo de pauperização do trabalho formal acontecer exatamente após a reforma trabalhista?
Inicialmente, vale apontar que, se desde o ano passado a redução dos salários tem sido acompanhada pela alta da inflação, entre 2018 e 2020 houve queda do valor dos salários médios e ampliação das vagas que pagam 1 SM ou menos mesmo em um cenário de inflação reduzida. Vale também ressaltar que essa tendência de queda dos salários tem se preservado mesmo diante de dinâmicas distintas da ocupação formal e do produto: seja com baixo crescimento (2018-19), queda (2020) ou recuperação (2021), os salários se deterioram em todos os cenários.
Ademais, há formas de demonstração da relação direta e indireta entre a reforma trabalhista e a queda dos salários:
1) A reforma ampliou formas precárias de contratação, como o contrato de trabalho intermitente, o contrato a tempo parcial e a contratação terceirizada, cujos rendimentos são inferiores à média das ocupações.
2)A alteração legal também contribuiu para o enfraquecimento dos sindicatos, que não têm sido capazes, na maioria dos casos, de impedir práticas precarizantes e sequer de repor as perdas inflacionárias. Segundo a última apuração do DIEESE, a variação real dos reajustes previstos em negociação coletiva foi negativa em todas as últimas 16 datas-bases[5].
3) A reforma suprimiu explicitamente ou permitiu a supressão do pagamento de parcelas salariais (como horas extras) por meio: da ampliação dos sistemas de compensação e do banco de horas, da limitação da obrigação de pagar pelos intervalos intrajornadas parcialmente suprimidos, da supressão do direito à remuneração pelas horas de trajeto, entre outros pontos que reduzem, de fato, os salários.
4) Não bastasse, as restrições ao acesso à justiça por parte dos trabalhadores, que prevaleceram entre 2018 e 2021[6], incentivam a burla aos direitos trabalhistas como o não pagamento de horas extraordinárias e o desrespeito aos pisos salariais. A prevalência do negociado sobre o legislado também concorre para medidas de flexibilização do salário e da jornada que impactam os rendimentos.
Com o atual governo, o abandono da política de valorização do salário-mínimo é mais um fator que tem contribuído para a deterioração dos salários.
Portanto, o triste retorno do Brasil ao mapa da fome em 2021[7] é um cenário do qual os trabalhadores brasileiros com vínculos de emprego formal não estão protegidos. Para além das desastradas políticas públicas (a começar da econômica) adotadas pelo atual governo, parece que a reforma trabalhista tem contribuído, direta e indiretamente, para o terrível cotidiano de pobreza extrema que milhões de pessoas têm enfrentado no país.
Passados 5 anos da reforma trabalhista, as comemorações se restringem aos representantes do governo, da mídia corporativa e dos grandes interesses econômicos. Eles parecem unidos pelo “terraplanismo” da destruição dos patamares de dignidade mínimos, seja por meio da apologia aberta à eliminação de direitos, seja, no caso as forças que se apresentam como liberais ilustradas, pela utopia do “livre” mercado e pela suposta crença de que é possível alguma espécie de desenvolvimento sem direitos sociais.
Iniciamos, neste texto, uma série de artigos que detalharão os impactos da reforma trabalhista nos salários e na própria dinâmica do nosso desenvolvimento. Como visto, a partir das fontes oficiais disponíveis, os resultados corroboram as previsões e análises mais pessimistas sobre os potenciais efeitos da desconstrução da tela pública de proteção ao trabalho[8].
No próximo texto, discutiremos e problematizaremos inconsistências e mistérios que rondam os dados do emprego formal no Brasil desde 2019. Eles não alteram a direção das trajetórias apresentadas no presente artigo, mas podem ajudar a entender, dentre outros, a disjuntiva na apuração do emprego formal entre PNAD e o “novo” CAGED.
Veja em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/brasil-a-precarizacao-da-carteira-assinada/
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