Para pesquisador, lei em vigor há dez anos é “fundamental”, mas tem falhas quanto à subcota racial, incluindo permitir a autodeclaração como critério de acesso. Cenário político é desfavorável para uma revisão, diz.
Por: Ana Paula Lisboa |Créditos da foto: Raquel Aviani/UnB. Corredores da Universidade de Brasília: política de cotas aproximou a escola pública da universidade pública
Há dez anos, por força da chamada Lei de Cotas (Lei 12.711/2012), metade das vagas em universidades e institutos federais passou a ser reservada para quem cursou o ensino médio em escolas públicas. Dentro dessa reserva, 50% devem ser exclusivas para alunos de famílias com renda de até 1,5 salário-mínimo per capita. A lei prevê ainda subcota para pessoas autodeclaradas pretas, pardas, indígenas e com deficiência; em quantidade proporcional à presença dessas populações na unidade federativa de cada instituição.
A lei, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff, previa que a norma deveria passar por uma revisão após uma década. Inicialmente, a avaliação seria feita pelo Poder Executivo, mas uma edição, com a Lei n° 13.409/2016, manteve a revisão, sem informar, no entanto, como ou quem faria isso. Por enquanto, não houve propostas por parte do governo. As cotas, contudo, não vão parar de valer caso esse balanço não seja feito.
Para Nelson Inocencio, integrante e ex-coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), um eventual atraso na avaliação da medida pode ser até positivo: “Com o governo Bolsonaro, estamos num momento desafiador. Acho que a revisão não pode acontecer agora. Se acontecer, a política poderia até se esgotar.”
Professor e pesquisador do Instituto de Artes da UnB e membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Inocencio aponta problemas graves em relação à subcota para negros definida na lei, entre eles “o silêncio do texto com relação a processos de heteroidentificação”.
“Prever somente a autodeclaração para que a pessoa negra seja inserida no sistema se tornou um grave problema. Teve muita gente se autodeclarando negra ciente de que não haveria nenhum processo de verificação”, critica.
Apesar das falhas, ele considera a lei fundamental. “Um país desigual precisa de políticas diferenciadas para, no mínimo, aproximar os segmentos que tiveram vantagem dos que não tiveram vantagem nenhuma”, afirma em entrevista à DW Brasil.
DW Brasil: A Lei de Cotas previa que a norma passasse por uma revisão dez anos depois. Por enquanto, não houve movimentações nesse sentido. Ela deveria ser avaliada agora?
Nelson Inocencio: Com o governo Bolsonaro, estamos num momento desafiador. Acho que a revisão não pode acontecer agora. Se acontecer, a política poderia até se esgotar. Depois, tem pesquisas como a da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) [segundo a qual, de 2003 a 2018, o percentual de pretos e pardos no ensino superior público subiu de 34,2% para 51,2%], que diz que a população negra é maioria nas universidades porque tomou como referência a autodeclaração, o que é discutível. De acordo única e exclusivamente com esse critério, a Andifes está certa. Mas é prejudicial uma pesquisa que afirma algo que não se confirma nos campi. Andando pelo campus de uma universidade federal, isso não se constata. Quando você usa unicamente a autodeclaração, está sujeito a cometer esses erros. A Andifes deveria considerar que não houve banca de heteroidentificação. E, na maioria das universidades, há processos judiciais por causa de fraudes por ingresso de alunos baseado apenas na autodeclaração, sem bancas de heteroidentificação. É uma coisa muito delicada. Então, se acontece uma avaliação da lei num cenário político desfavorável e levando em conta números assim, vão dizer que não tem mais necessidade das cotas porque está equiparada a quantidade de negros e não negros.
Dez anos depois, o senhor avalia que as cotas para alunos de escolas públicas funcionaram para o que se propuseram?
Sim e não. Essa política foi fundamental para aproximar a escola pública da universidade pública. A lei contribuiu para o acesso da população de baixa renda e para o acesso da população negra, mas com uma série de limitações.
Quais são os principais problemas da Lei de Cotas?
A Lei 12.711 de 2012 tem dois aspectos muito graves. O primeiro é subordinar raça à classe social, definindo o ingresso, por meio dela, apenas de negros egressos da escola pública. O segundo é o silêncio do texto da lei com relação a processos de heteroidentificação. Prever somente a autodeclaração para que a pessoa negra seja inserida no sistema se tornou um grave problema. Teve muita gente se autodeclarando negra ciente de que não haveria nenhum processo de verificação.
E por que o senhor considera grave definir subcotas para negros dentro de uma cota para alunos de escolas públicas?
A lei subordina a questão racial à questão de classe quando entende que somente negros egressos de escolas públicas podem participar. Classe é uma categoria fundamental, mas raça também. Antes dessa legislação, a UnB, por exemplo, já tinha cotas raciais [desde 2003], sem estipular orientação com base em classe social. Nesse caso, importa o combate ao racismo. Há setores da sociedade que pensam que a questão racial é superada quando existe condição econômica — mas vários estudos mostram que não —, o que é uma tentativa de desqualificar o debate de combate ao racismo.
Como a questão da autodeclaração prejudicou a inserção de negros nas universidades públicas?
Usar a autodeclaração como único critério é um erro que fez com que o número de fraudes crescesse absurdamente. Na maioria das universidades, tem processos judiciais por causa disso. A UnB mesmo suspendeu matrículas e cancelou diplomas a partir de denúncias. O mesmo aconteceu em outras.
Como isso pode ser resolvido?
A lei não proíbe a heteroidentificação, ela apenas foi muda sobre o assunto. E, nas universidades, temos o recurso da autonomia universitária. Elas poderiam ter feito uso disso e, por conta própria, adotado bancas de heteroidentificação. Mas é questão de bom senso e vontade política, e envolve trabalho, recurso financeiro e, se não existe a obrigação, tem universidade que vai empurrar com a barriga. A UnB, que tem uma cota exclusivamente racial, já contava com uma banca de heteroidentificação, formada por três membros, e registro audiovisual.
Por que as bancas de heteroidentificação ainda causam controvérsia com relação aos critérios para definir quem é ou não negro?
As bancas já foram muito criticadas e rotuladas de tribunal racial, mas, na verdade, estamos falando de algo para evitar fraudes. E é um sistema que foi sendo aperfeiçoado com o tempo. Em famílias inter-raciais, tem irmãos que fazem jus à política e outros, não. A questão não é genética, é fenotípica. Todo negro é afrodescendente, mas nem todo afrodescendente é negro. O racismo é muito direto, ou o seu fenótipo é alvo de discriminação racial ou não é. A política de cotas é para atender as pessoas cujos fenótipos são alvos diariamente e cotidianamente de discriminação. São para as pessoas que não tem escapatória e, independentemente do contexto, serão vistas como negras e serão alvo de discriminação racial.
E como fica a identificação dos pardos?
Os ativistas do movimento negro mais consequentes entendem que tem negros de tez clara e negros de tez escura. A pessoa não precisa ter tez escura para ser negra, e o fato de a pessoa ter tez clara não vai necessariamente eliminá-la da banca de heteroidentificação. Só que o conceito de pardo não colabora para avançarmos. O Censo do IBGE insiste na categoria pardo. Numa banca de heteroidentificação, a pessoa muitas vezes diz que se declarou parda, um termo genérico e arriscado. Qualquer pessoa não branca caberia nesse conceito, que serve para múltiplos grupos étnico-raciais e pode incluir quem não tem nenhuma ascendência negra. Incluir o pardo nas cotas é uma armadilha que permite que muita gente acabe entrando na política sem ser negra: você vê que a pessoa não é branca, mas também não é negra, nem sofre racismo.
Quando as cotas para alunos de escolas públicas foram instituídas, falava-se que mais estudantes chegariam com defasagens educacionais, o que poderia impactar questões como o desempenho acadêmico e a evasão. Anos depois, estudos demonstram que o desempenho de estudantes cotistas é equivalente ao de quem entrou pelo sistema universal, mas ainda hoje a temática é mencionada. O que o senhor pensa do assunto?
A evasão é um problema histórico a ser combatido, há cursos com evasão altíssima, e isso não diz respeito a alunos cotistas, mas ao conjunto do corpo discente. Já com relação ao desempenho acadêmico, esse é um argumento tão falacioso. Tem professor que dizia que faria prova do tipo A e prova do tipo B. Isso é uma caricatura que fizeram. Sim, alunos da escola pública podem chegar com mais defasagem e, quando precisam de ajuda, as universidades devem ter programas de apoio. E há processos que estabelecem a manutenção dos estudantes, seja o IRA (Índice de Rendimento Acadêmico), sejam outros critérios. Todo aluno que não se mantiver dentro do aceitável é desligado. A universidade certamente não abre mão da qualidade da produção, pois disso dependem os recursos financeiros que recebe. A cota, sempre, só vale para o acesso. No momento em que as pessoas estão vinculadas à universidade, as condições são as mesmas.
Em dez anos, as cotas passaram a ser bem aceitas dentro e fora da universidade? Mudou o pensamento sobre ações afirmativas?
Ao longo da aplicação da política, a gente vê maior adesão, mas unanimidade não existe. O argumento problemático da meritocracia persiste. O mérito é da pessoa que, tendo muito pouco e com lutas imensas, chegou a um patamar improvável. Já a meritocracia é um argumento da lógica burguesa e precisa ser combatido. Há situações em que jovens dizem: “Eu sou contra a cota porque está roubando minha vaga”. A presunção, a empáfia é tamanha que a pessoa acha que por mérito a vaga seria dela. A gente tem que superar esses equívocos. Um país desigual precisa de políticas diferenciadas para, no mínimo, aproximar os segmentos que tiveram vantagem dos que não tiveram vantagem nenhuma. Até porque, quando a gente fala de políticas de ações afirmativas, tem que voltar ao século 19, quando o Estado brasileiro desenvolveu políticas de assentamento e escolarização para imigrantes italianos e alemães. Políticas de ações afirmativas já existiam, a diferença é que nunca tinham vindo para os alunos de escolas públicas, nem para negros e indígenas.
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