Relatório da ONU aponta: indígenas garantem a preservação de 80% das espécies no planeta, apesar de serem 5% da população mundial. Mas aqui, são acossados pelo agrofascismo. Frear devastação requer ir além da visão eurocêntrica
Por: Susana Prizendt
Estamos nos despedindo do desgoverno Bolsonaro. Certamente não nos livraremos tão cedo das consequências dramáticas que uma administração genocida e ecocida gerou em nosso território – e
além dele, dada a influência que o Brasil exerce no planeta -, mas começaremos a mandar embora uma boa parte dos desmandos que foram responsáveis pelos recordes de fome, violência e destruição ambiental que tivemos nos últimos tempos.
Reconhecemos que as feridas acumuladas nos últimos quatro anos são profundas, vão exigir imensos cuidados para serem curadas e muitas delas irão deixar cicatrizes. Mas há uma imensa disposição por parte de todxs nós, que integramos os movimentos sociais e resistimos bravamente às pauladas que o país sofreu, em trabalhar nesse processo de reconstrução.
Se o agrofascismo que se instalou durante a atual legislatura se empenhou para eliminar a imensa diversidade biológica, étnica e sociocultural que compõem nossa nação, tentando impor padrões rígidos à paisagem dos territórios e ao comportamento do povo, através da perseguição, da intolerância e da violência em relação às instituições, pessoas e natureza, é hora de fazer com que essa mesma diversidade dê a resposta e mostre sua potência.
Sim, ainda somos o país da diversidade. A interação entre os inúmeros elementos naturais, étnicos, sociais e culturais que formam nossa identidade plural e extremamente rica precisa voltar a ser cultivada, dando um chega prá lá na invasão das monoculturas, em todos os sentidos simbólicos que esta palavra pode ter.
A Convenção da Diversidade Biológica da ONU (COP15 da Biodiversidade), realizada no Canadá, para tratar da urgência da preservação e da recuperação da variedade – ainda nem totalmente conhecida – de espécies animais e vegetais do planeta, foi um evento em que o Brasil deveria ter tido um papel fundamental. Estima-se que um quinto da biodiversidade mundial esteja em nosso território, o que significa que existem centenas de milhares de espécies, entre animais e vegetais, distribuídas pelos nossos seis biomas. Porém, em boa parte de nossas paisagens, é comum avistarmos imensos desertos verdes de monocultivos criados e mantidos, às custas de muitas injustiças, pelo agronegócio.
Sim, a soja, o milho, a cana-de-açúcar, o algodão e as florestas uniformes da indústria da celulose vêm ocupando parcelas cada vez maiores das terras do nosso país. Onde essas poucas espécies, a maior parte delas transgênicas, são cultivadas, as outras milhares de espécies animais e vegetais entram em rápido declínio e até mesmo em extinção. E o Brasil, nação recorde em biodiversidade, vai se tornando um imenso fazendão de monoculturas, perdendo um patrimônio biológico inestimável.
Mas ainda há locais que seguem sendo verdadeiros oásis biodiversos em várias regiões do país. E é justamente aqui que nosso patrimônio biológico se encontra com nosso patrimônio étnico e cultural. De fato, são os territórios das populações tradicionais, sobretudo indígenas e quilombolas, que preservam a vida em convívio de milhares de espécies animais e vegetais, garantindo a sobrevivência dos nossos biomas – muitos deles, únicos no mundo. Segundo o próprio Banco Mundial, os povos indígenas são responsáveis por garantir a existência de cerca de 80% das espécies de seres vivos no planeta, embora eles sejam apenas em torno de 5 % da população do globo terrestre. Em outras palavras, podemos dizer que são justamente esses povos que brecam a exploração desenfreada que a dita civilização eurocêntrica vem praticando há séculos nos quatro cantos do mundo.
É por isso que o agrofascismo combate tão cruelmente àqueles que não se enquadram nos padrões sociais da cultura branca ocidental, caracterizada pelo machismo, pelo culto à mercadoria, pela defesa do cristianismo como única forma de religiosidade possível e pela falácia da meritocracia, como se a sociedade em que vivemos oferecesse oportunidades iguais para quem nasce em uma família branca e quem é descendente de indígenas ou afrobrasileiros.
Aqui vale abrir espaço para uma outra constatação sobre os recordes obtidos por nosso país. Além de uma das mais biodiversas regiões da Terra, também somos uma das nações mais desiguais, do ponto de vista socioeconômico, de todo o planeta. O abismo entre pobres e ricos é tão grande que podemos dizer que eles vivem em realidades diferentes. Talvez isso ajude a explicar a existência da tal realidade paralela em que, ultimamente, muitas pessoas vêm mergulhando – como revela a crença que elas manifestam em relação à Terra ser plana e a outras aberrações disseminadas pelas redes (anti)sociais. Só que esses surtos de alucinação coletiva não são algo espontâneo, são algo cultivado para manipular parcelas da população, que já são predispostas às teorias da conspiração e ao preconceito, em nome da manutenção de privilégios injustificáveis concedidos a uma elite insaciável. É o cultivo da intolerância a favor da desunião e da conivência com a falta de medidas que possam reduzir as desigualdades.
Nosso passado escravocrata e nosso presente de subserviência aos poderes imperialistas do norte global geraram um cenário em que reformas básicas – como a reforma agrária – nunca foram realizadas. O resultado é que uma minoria se julga no direito de usufruir, imediata e ilimitadamente, dos bens que o país possui, mesmo que isso signifique um colapso socioambiental num futuro (cada vez mais) próximo. E, para essas pessoas, a existência de uma biodiversidade pulsante em nosso território é considerada um inconveniente a ser transposto, assim como a existência da sociodiversidade é tida como algo a ser neutralizado, mesmo que seja preciso usar de violência física e/ou psíquica; condenando quem pensa e vive de forma diferente – em relação aos padrões sociais, econômicos, culturais, religiosos e sexuais pregados – a se enquadrar ou ser destruído.
Voltando à COP15 e aos seus possíveis desdobramentos, há uma disputa de narrativas em jogo e o discurso do uso sustentável do patrimônio biológico, a ser regido pelas forças político-econômicas através de uma estrutura burocrática estatal (sempre sujeita às mudanças de governo e às pressões do lobby corporativo) está em franca oposição à luta dos povos tradicionais e de ambientalistas para que o planeta seja reconhecido como um organismo vivo, que precisa ter sua autorregulação respeitada, a partir de modos de existência humana que não o tratem como um amontoado de recursos a serem utilizados e descartados pela humanidade.
Se em relação à proteção à biodiversidade, a luta das organizações sociais tem sido para tentar ampliar a meta da área planetária – a ser protegida até 2030 – dos 30% que já foram definidos pelo documento, aprovado no último dia 19, para os 50% necessários para que a natureza consiga se regenerar, a luta pela proteção à diversidade étnica e cultural precisa ter como meta inquestionável o índice de 100%! Não podemos aceitar que os povos tradicionais – que ainda resistem às agressões por parte dos detentores do poder político-econômico – e as pessoas que não se enquadram nos padrões sociais dominantes sofram nenhuma perda de direitos. Pelo contrário, é preciso garantir que recuperem o que já foi perdido para que tenham plenas condições de viver com dignidade.
É nesse sentido que as organizações sociais vêm questionando a forma como as conferências e tratados internacionais têm sido realizados. A prova da ineficácia desses modelos pode ser vista quando constatamos que a própria Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), objeto de debate da COP15, já está fazendo 30 anos de existência e não implementou nenhuma das 20 metas que foram acordadas há 12 anos. O Brasil poderia e deveria ter sido um dos protagonistas nesse processo, mas, com recordes de destruição na Amazônia e no Cerrado, fica difícil os representantes do governo brasileiro exigirem compromissos dos países que detém as chaves dos cofres internacionais; portanto, são as vozes não oficiais de nosso país, através dos próprios representantes dos povos tradicionais e de movimentos ativistas, que têm buscado assumir esse protagonismo, explicitando que não vão abrir mão de seus direitos de decidir como seus territórios ancestrais serão conduzidos em possíveis acordos a serem firmados.
A sociedade, sobretudo seus setores que lutam mais diretamente pela preservação e regeneração da teia da vida, reivindica participação ativa nos processos de decisão. E, no plano nacional, o questionamento à condução das políticas socioambientais tem sido tão profundo quanto ignorado nos últimos seis anos. Agora, no finalzinho do último ano de desgoverno, o Ministério do Meio Ambiente resolveu soltar uma nova portaria, a de n° 299/2022, que institui o Programa Nacional de Conservação da Biodiversidade – CONSERVA+. E o documento, responsável pela definição das “estratégias políticas de reconhecimento, avaliação e gestão das espécies nativas em relação ao uso sustentável e aos riscos e ameaças de extinção, com vistas a assegurar a proteção, a conservação e o manejo da diversidade biológica brasileira”, não apenas não foi debatido com a sociedade, como não promoveu “as devidas consultas, estudos técnicos ou participação das áreas técnicas de biodiversidade do Ibama, ICMBio e Ministério do Meio Ambiente e podem reduzir a coordenação e o protagonismo desses órgãos e a de conservação da biodiversidade”, segundo nota da ASCEMA – Associação Nacional dos Servidores de Meio Ambiente.
Não, para quem luta pela defesa dos direitos humanos e da natureza, o ano ainda não acabou e é preciso estar “atento e forte” em relação aos últimos dias que ainda temos antes da virada de ano e de governo. Mas já temos um horizonte se abrindo e muita bagagem acumulada para lidar com os desafios (e para não cometer os mesmos erros), sabendo que eles foram agravados nos últimos anos. Agora é somar esforços para promover um duplo movimento: nutrir todas as nossas diversidades – que não se restringem ao campo da biologia, mas que se entrelaçam com os campos étnico e cultural – e reduzir as desigualdades, sabendo que, justamente, estas últimas estão intensamente associadas às primeiras, já que negrxs, indígenas, mulheres, população LGBTI+ e todxs que não fazem parte da elite branca e masculina não recebem as mesmas oportunidades que esta, tendo que sobreviver em condições muito mais hostis e desafiadoras.
Mais diversidade, menos desigualdade: esses são nossos votos para o novo ano. Que ele traga também os brotos (não monoculturais!) de um novo país, em que todos os seres vivos possam coexistir em equilíbrio.
Que 2023 seja um ponto de inflexão no percurso suicida que uma pequena parte de seres – todos eles humanos – vêm tentando impor aos demais.
Veja em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/o-brasil-diante-da-convencao-sobre-biodiversidade/
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