Mesmo com a excepcional vitória de Lula, o país segue em guerra. Conciliar não é o caminho. Falta derrotar a linguagem individualista e mercantil, camuflada na “inclusão pelo consumo” – e que corrói o tecido da sociedade. Mas como fazê-lo?
Por: Coletivo Desmedida do Possível
1. Sufoco
O governo Bolsonaro asfixiou o Brasil. Sua gestão não estava interessada em gerir um país, mas em abrir caminho para uma revolução, como ele mesmo disse. Devemos entender o período Bolsonaro não apenas como uma mudança de governo – como a que ocorre a cada quatro anos. Mas como um movimento em direção a formas muito elementares do exercício do poder: uma capilarização da violência, no sentido oposto da sua monopolização pelo Estado. Um autoritarismo.
Como acontece em uma revolução, este movimento implica uma guerra, que está em andamento. Teria a vitória de Lula interrompido momentaneamente a revolução fascistizante bolsonarista?
2. Validação da destruição
O pleito realizado em dois turnos garante a visualização do tamanho do problema que enfrentaremos. Lula cresceu menos da metade do que Bolsonaro entre o primeiro e o segundo turno. Bolsonaro conseguiu mais votos do que em 2018. Foi a eleição presidencial mais apertada da nossa história. Considerando que votos nulos, brancos e abstenções juntos variaram muito pouco entre primeiro e segundo turno, é possível supor que Bolsonaro teve mais força para angariar votos. A política de Bolsonaro foi desastrosa do ponto de vista sanitário e econômico. Apesar disso, teve uma adesão eleitoral altíssima nas eleições de 2022: um desempenho surpreendente com muitos candidatos eleitos para senadores, deputados federais e estaduais e governadores.
3. Sensibilidades paralelas
Muitos choraram aliviados com a vitória de Lula. E teriam chorado com a derrota também.
Os eleitores de Bolsonaro parecem ter vivido o pleito com uma sensibilidade diferente: sua derrota não incitou tristeza ou preocupação, mas desejo de vingança — o mesmo que foi mobilizado em sua vitória. Como esquecer o discurso da vitória do capitão, em 2018?
Estaremos nos aproximando de sensibilidades diferentes? Uma diferença entre quem goza com a asfixia e quem se sente asfixiado?
4. A destruição interrompida
O alívio sentido é o da destruição interrompida. Esta agenda nunca foi disfarçada por Bolsonaro, que enunciou no começo do seu mandato: “Nós temos é que desconstruir muita coisa”.
Os brasileiros descobriram uma forma política que se alimenta das crises em vez de geri-las.
Que acelera a destruição, em lugar de contê-la. Se havia dúvidas quanto a isso, a pandemia as dirimiu.
5. Controle narrativo
E, no entanto, o desastre econômico e o crime sanitário não colaram como se esperava. Em que condições se produz semelhante descolamento entre o que um presidente faz e a sua popularidade? Será que o êxito desta forma política não está em resolver problemas, mas em controlar a pauta? Por que Lula é ladrão, mas Bolsonaro não é genocida?
Lula venceu as eleições. Mas, no dia seguinte, o assunto continuava sendo Bolsonaro.
6. Normalização
Ou será que Bolsonaro é popular por causa destas políticas e não apesar delas?
O presidente governou os quatro anos de seu mandato, sobrevivendo a mais de 140 pedidos de impeachment. Nenhum deles avançou. Isso não se explica apenas pela blindagem construída junto ao “centrão”, mas pela incapacidade de criar as condições políticas na sociedade brasileira para pressionar pelo impeachment, corroborada pela abstenção do ex-presidente-recém-eleito. É preciso militância para que a sociedade reconheça um genocida, como foi necessário para construir um ladrão. Podemos dizer com segurança qual foi mais eficiente politicamente.
7. Mutações culturais
Mas qual a efetividade de formas consagradas da militância diante das mudanças políticas e culturais em curso? Entre o primeiro e o segundo turno houve uma mobilização significativa do campo antibolsonarista e muitos saíram às ruas. Enquanto isso, a campanha de Bolsonaro parecia focada nas redes sociais. Em um pleito polarizado, em que havia poucos votos em disputa, o corpo-a-corpo levaria vantagem sobre a virtualidade?
Há indícios de que uma mutação cultural, que incide na sensibilidade, na cognição, mas também nas referências dos eleitores, está em curso.
O que significa o apoio de Chico, Caetano, Gil e Gal a Lula, diante dos youtubers que estão massivamente com Bolsonaro? A questão não é só que a indústria cultural, que ontem fagocitou a MPB, hoje produz os sertanejos que apoiam o ex-capitão, mas que a arte está ameaçada tanto quanto a natureza.
8. Não pensar
As afinidades eletivas entre o bolsonarismo e a cultura youtuber radicam na forma neoliberal. Artista e mercadoria se fundem na indústria cultural, assim como celebridade e empreendedorismo no youtuber. Ambos são avessos à crítica, pois a forma condiciona o conteúdo. É difícil decifrar Marx em vídeos amenos, ao passo que é simples lacrar um Lula-ladrão.
A forma breve e espetacular favorece o não pensar. “Lula-ladrão” é antes uma imagem do que o produto de um pensamento, como é a regra nas redes sociais. Em outras palavras, as redes sociais podem estar modulando não apenas o conteúdo, mas também a forma do pensar. E do não pensar. Neste mundo, as diferentes formas de reflexão podem estar ameaçadas.
9. Qual
Dois dias depois da eleição, bolsonaristas bloquearam estradas em todos os estados do Brasil, menos um, atingindo um pico de quase 900 bloqueios ou manifestações. Naquele cenário tenso, a esquerda tornou célebre o vídeo de um caminhoneiro que furou o bloqueio levando um bolsonarista no parachoque.
Poucos se deram conta de que aquele episódio incorporava a gramática da aceleração, da vertigem e da morte, que caracteriza o bolsonarismo. Esta forma política desperta o pior deles, mas também de nós. Mas acima de tudo, a esquerda se debruçava sobre um vídeo caseiro circulado em whatsapp. A extrema-direita parece definir o terreno do debate (vídeo caseiro), as armas (o gozo da aceleração) e o meio de circulação (as redes sociais). Será que esta guerra vale a pena vencer?
10. Contenção e aceleração
De um lado, a perda de musculatura dos movimentos sociais organizados que são incorporados à dinâmica de gestão da contenção da desagregação. Apesar de todas as dificuldades objetivas que já se manifestam, a promessa corrente é produzir dispositivos para frear o colapso em curso.
De outro, a radicalização dos grupos bolsonaristas, agora amplamente armados pela política de flexibilização de porte e posse de armas de fogo. O período de campanha eleitoral já foi uma amostra de que esse conflito continua (e continuará) correndo. Os CACs, além das forças regulares do Estado, se tornarão agentes do autoritarismo descentralizado que seguirá junto com o novo consenso democrático.
11. Um mundo novo irrompe
No andar de cima, Lula-ladrão pode refletir um preconceito de classe que o metalúrgico e seu partido nunca superarão. Os banqueiros do Plano Real estavam com Lula, mas o mundo que eles pariram na Faria Lima não estava.
No andar de baixo, Lula-ladrão pode traduzir um temor popular genuíno, de quem se virou para conseguir o que tem, e enxerga políticas sociais como uma injustiça ou uma ameaça. Igualdade, neste caso, significa a universalização da concorrência e do desamparo. Por esta via, faria-limers e empreendedores populares convergem.
A lealdade dos muitos que estão de fora pode ser selada por programas de renda mínima. Foi assim que a política que mais orgulhou o lulismo virou peça fundamental da campanha bolsonarista.
12. Inclusão corroída
O breve momento de prosperidade vivido por uma parte significativa da população, atingida pela chamada “inclusão pelo consumo” e pelos programas sociais dos anos lulistas, chegou ao seu fim, mas não sem deixar cicatrizes profundas. Uma massa de pessoas historicamente vistas como descartáveis e atomizadas encontraram pontos de coesão nas promessas de autonomia do empreendedorismo popular. Além disso, a tímida mobilidade social do período foi concomitante a outro fenômeno de imensas proporções e igualmente desprezado pela cultura de elite: o crescimento do pentecostalismo. Juntos, esses fenômenos formam o caldo de cultura popular no qual o bolsonarismo joga sua rede.
Nesta realidade, em que tudo é mercado e concorrência, o que se corrói é o tecido social. Bolsa família e inclusão pelo consumo podem criar consumidores, mas não criam sociedade. Esta sociabilidade que coloca todos contra todos é o caldo de cultura da política do ódio no Brasil e no mundo.
13. O jogo da guerra
Esta dinâmica social autofágica é encenada em narrativas imersivas descoladas do real, em que se criam inimigos mas também lealdades espúrias. Este pode ser o caso de um game, ou do Brasil Paralelo. Visto por este ângulo, será que os bolsonaristas perderam um jogo?
Mas o jogo, se jogo for, é vivido como uma guerra. E a linguagem da guerra é a da eliminação, como em um reality show.
Para o bolsonarismo, a eleição é uma batalha perdida, mas não a guerra. Para os seus inimigos, a vitória é uma trégua.
14. Aliados?
Sessenta milhões de votos não é pouca coisa. Nesse universo político híbrido e múltiplo reorganizado pela luta antifascista genérica antibolsonaro estão abrigados socialistas anticapitalistas, autonomistas anarquistas, até ontem antipetistas, liberais cosmopolitas inconformados com a grosseria antiglobalista da direita sem mundo do Brasil, neoliberais que se tornam neokeynesianos, neokeynesianos que flertam com o mercado e tucanos de todas as plumagens que perderam qualquer relevância com a ascensão da extrema direita. Além da aparelhagem partidária e burocrática que vem de diferentes lados, ansiosa para voltar ao controle do Estado. Democracia, interesses in extremis e novas oportunidades de velhos negócios se coadunam com o anseio impreciso de civilidade, sociedade integrada e reparação social. Um último guarda-chuva geral de Estado, sociedade e vida digna se organiza ao redor do líder mítico, a que todos emprestam poder, antes de todos voltarem inevitavelmente à competição geral.
Não seria o caso, justamente, de questionarmos essa competição geral ancorada na forma mercadoria que dilacera a sociedade e que reforça a retórica da extrema direita?
15. Trégua para que?
Se a força motriz do bolsonarismo está na forma concorrencial, que joga todos contra todos, outra forma social precisa ser criada. Esta engrenagem autofágica instila o desejo de uma ordem social e moral violenta, como compensação pela impotência diante dela. Este desejo é ornado por narrativas fantasiosas, que servem como defesa perante a impotência real. O desejo autoritário vira um fenômeno de massa, em uma sociedade impotente para pensar, e se transformar.
Daí a alta adesão a candidatos a senadores, deputados federais, estaduais e governadores que emulam o bolsonarismo. Qual é a força da vitória de Lula diante do processo de decomposição social que está em curso?
16. Depois de outubro a paz será total
Não foi eleito um governo de esquerda, mas um governo de salvação nacional. É este o tom da frente ampla construída na campanha. A questão é: salvar o quê, e como?
O modo lulista de governo opera a partir do acolhimento de diversas demandas para o seu interior. O cenário econômico não dará muita margem para reeditar essa estratégia. A pacificação pela imposição do consenso democrático virá de cima para baixo. É previsível que vozes dissonantes da suposta refundação democrática serão difamadas, em nome do risco de golpe e da ameaça do bolsonarismo. A interdição da crítica não vem só da direita. Enquanto isso, o neoliberalismo seguirá seu curso.
17. Ou não
Mas este não será um governo de salvação nacional depois de uma guerra vencida ou perdida. Porque a guerra está em curso.
Um número considerável de eleitores de Bolsonaro já demonstrou que não está disposto a seguir o roteiro da pacificação. Também revelaram ampla capacidade de mobilização. Muitos deles defendem pautas “anti-democráticas” e estão armados. Esse outro lado não quer conciliação, mas deseja a guerra – e guerra é eliminação do inimigo.
Será certo que quando um não quer, dois não brigam?
18. Lutas culturais
Desde logo, não se trata de uma luta de classes. Mas de trincheiras para salvar a sociabilidade burguesa de si mesma. Como na campanha, os alinhamentos são em torno de valores básicos. Talvez esta polarização dê lastro a imaginações políticas binárias de fundo messiânico, retratando uma batalha do bem contra o mal.
É de se esperar que qualquer criminalização do governo que sai seja interpretada como uma perseguição, alimentando os circuitos da política do ódio. A polarização se aguçará, e esse não é o jogo do lulismo.
Por outro lado, a impunidade consagrará a normalização desta política, enquanto seus artífices não deixarão de conspirar a céu aberto. O julgamento dos criminosos é uma maneira de constrangê-los no presente e no futuro.
Mas também é um modo de politizar a disputa narrativa, conectando-a ao princípio de realidade. O bolsonarismo fez da justiça instrumento de uma luta cultural, que construiu um Lula-ladrão e seus antípodas. Não será desejável o seu contrário, desafiando as anistias do passado e do presente?
A batalha está armada. Quem fechar os olhos a ela, provavelmente será engolido.
19. O passado deste futuro
O Brasil que se vislumbra parece ter um enorme passado pela frente. O Partido dos Trabalhadores, seus militantes e base eleitoral só podem prometer uma imagem dos anos de 2003 a 2010, quando o partido governou o país apoiado numa nova rodada extrativa do capitalismo latino-americano, compensando a extração violenta de recursos, com políticas sociais focalizadas.
Diante da impossibilidade imediata de propor outros futuros, será possível evitar a repetição de passados, que voltam como um sintoma?
A impunidade do terrorismo de Estado na ditadura viabilizou o bolsonarismo. Para evitar sua repetição, é necessário julgar os milicianos e criminalizar os genocidas.
Será possível condenar os criminosos da guerra em curso? Ou o Brasil viverá outra anistia?
Veja em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/2023-o-que-significa-reconstruir-o-brasil/
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