A hiperinflação acabou e a economia volta a crescer. Governo e oposição dialogam. Mas a desigualdade avança, a miséria e a repressão persistem e a economia foi dolarizada. Um trunfo: o Estado segue permeável aos de baixo
Por: Gabriel Hetland | Tradução: Rôney Rodrigues
Na última década, a Venezuela sofreu a pior crise da história moderna da América Latina. Esta crise está longe de terminar, mas há sinais crescentes de que o país pode estar entrando em uma nova fase. Os indicadores econômicos são os mais positivos em anos. A situação política parece estar se estabilizando, com o desastre de Juan Guaidó chegando ao fim e as negociações com a oposição do governo sendo retomadas após uma pausa de um ano. Embora as relações com os Estados Unidos permaneçam congeladas, há indícios de que um degelo pode estar a caminho. Está pouco claro o que tudo isso significa para a vida dos venezuelanos comuns, para as perspectivas de um retorno à democracia eleitoral ou quanto a possibilidade de uma renovação genuína da política de esquerda. Um grau de otimismo cauteloso pode ser justificado, embora a medida em que o país esteja entrando em um “novo normal” (e o que isso implica) ainda permaneçam incertas.
Se uma nova era está começando, decididamente não é socialista. Nos últimos anos, o presidente Nicolás Maduro implementou uma série de reformas de livre mercado. Em 2019, Maduro acabou com o sistema cambial da Venezuela e permitiu que um processo de dolarização se desenvolvesse. Economistas, inclusive de esquerda, há muito tempo pedem a eliminação deste regime monetário bizantino da Venezuela, que facilitou níveis incrivelmente altos de corrupção e é um dos fatores determinantes para a crise econômica. O governo também estabeleceu zonas econômicas especiais (a mais infame delas é o Arco Mineiro do Orinoco), vendeu ações de empresas estatais na bolsa de valores, cortejou agressivamente o capital privado e concedeu às empresas o direito de importar mercadorias com isenção de impostos. Um efeito disso foi estimular a formação de novos negócios, como os bodegones: lojas que vendem produtos importados de alta qualidade, geralmente pagos em dólares – e que proliferaram em Caracas.
Os bodegones apontam para uma das principais consequências da liberalização econômica: o aumento da desigualdade. Isso foi exacerbado pela dolarização desnivelada. Segundo a Reuters, em maio pelo menos 63% dos funcionários do setor privado eram pagos em dólares, o que lhes dava maior poder de compra. Os funcionários do setor público, por outro lado, ainda são pagos em bolívares. A situação é ainda mais difícil para o grande número de pessoas que trabalham no setor informal, que continuam lutando para sobreviver. A extensa e contínua deterioração da capacidade do Estado, devido em grande medida à devastação causada pelas sanções dos EUA, significa que os pobres são cada vez mais deixados à própria sorte. E isso sem falar nos milhões que deixaram a Venezuela nos últimos anos e vivem em condições precárias em outros países.
Maduro pode, no entanto, se orgulhar da retomada do crescimento econômico. O ano de 2021 registrou um crescimento de 1,9%, segundo a Bloomberg News. Embora modesto, isso reverteu uma contração de sete anos que eliminou cumulativamente 80% do PIB da Venezuela. A Bloomberg estima que o crescimento chegará a 8% em 2022. A Venezuela, portanto, fez progressos significativos, embora irregulares, na redução da inflação. A hiperinflação (entendida como inflação mensal acima de 50%) terminou em 2021 e a inflação caiu significativamente durante grande parte de 2022. Embora permaneça alta em termos comparativos e históricos, e a Bloomberg reporte um aumento acentuado e preocupante nos últimos meses, os números atuais representam ordens de magnitude melhor do que a hiperinflação gerada entre o final de 2016 e 2020.
A produção de petróleo também aumentou e, agora, está em quase 700 mil barris por dia, o dobro de dois anos atrás. A produção, porém, permanece inferior: um terço dos quase 2,5 milhões de barris por dia que a Venezuela produziu até 2016 — e menos de um quarto da alta histórica de quase 3 milhões de barris diários em 2002. Uma das principais razões pelas quais a produção de petróleo não se recuperou mais desde sua queda em 2016 é que as sanções dos EUA ainda persistem.
O efeito geral do regime de sanções foi simplesmente catastrófico. Um relatório de 2019 do Centro de Pesquisa Econômica e Política dos Estados Unidos argumenta que as sanções levaram a 40 mil mortes adicionais em 2017-2018. E isso foi antes de o governo Trump impor um embargo quase total de petróleo à Venezuela, em 2019, como parte de sua campanha de pressão máxima para remover Maduro. Houve um imenso custo adicional para a economia da Venezuela por parte de empresas e governos estrangeiros que “cumpriram” as sanções, por medo de entrar em conflito com o governo dos Estados Unidos e perder o acesso aos mercados globais. Como já argumentou Mark Weisbrot, isso é anterior a Trump, com sanções impostas por Obama a partir de 2015, o que serviu para isolar a Venezuela da economia global. O governo dos EUA também pressionou diretamente as empresas para não fazerem negócios com a Venezuela.
O acordo firmado em 26 de novembro para aliviar parcialmente as sanções dos EUA é, portanto, bastante significativo. Ele concede às Nações Unidas o controle de cerca de US$ 3 bilhões em fundos apreendidos pelo governo dos EUA, que serão usados para pagar remédios e outras ajudas humanitárias tão necessários. Após o acordo, o Departamento do Tesouro dos EUA anunciou que permitirá que a Chevron retome algumas operações no país. Há grandes limitações: o contrato é de apenas 6 meses; não fornecerá receita direta ao governo venezuelano; a quantidade de ajuda que fornecerá é uma pequena fração do que é necessário. A ajuda será, no entanto, significativa. E o acordo promete uma flexibilização maior das sanções no futuro.
A disposição de Biden em mudar a política dos EUA decorre, pelo menos em parte, do controle cada vez mais firme do Partido Republicano sobre a política da Flórida. Isso enfraqueceu a influência dos expatriados venezuelanos e cubanos de direita sobre o Partido Democrata. Com a Flórida parecendo estar fora do alcance do partido, os democratas parecem dispostos a adotar políticas menos extremas em relação aos dois países, embora ainda haja muito a ser visto. O movimento regional para a esquerda na América Latina, em países como Bolívia, Chile, Colômbia e, mais recentemente, no Brasil, também criou um clima mais propício ao envolvimento positivo dos EUA com a Venezuela, com o colombiano Gustavo Petro desempenhando um papel particularmente importante. A guerra na Ucrânia é outro fator significativo. Washington iniciou suas primeiras conversas de alto nível com Maduro em março, poucos dias após a invasão da Rússia; a necessidade de garantir fontes adicionais de petróleo estava claramente estimulando o governo Biden.
Do lado venezuelano, o acordo de 26 de novembro e a retomada das negociações entre o governo e a oposição feita a ele são indicativos de uma mudança política em andamento. Os líderes da oposição têm se distanciado cada vez mais de Juan Guaidó e seu “governo interino”. Vários dos principais partidos da oposição indicaram que não apoiarão a renovação do (duvidoso) mandato de Guaidó por mais um ano, movendo-se para destituí-lo do controle sobre a Citgo [o texto é anterior a destituição do presidente autoproclamado pela Assembleia Nacional paralela, no final de 2022]. Líderes da oposição, incluindo Henrique Capriles, estão pressionando pela união em torno de um único candidato para as eleições presidenciais marcadas para 2024, com planos para uma primária a ser realizada em 2023. Isso marca uma grande alteração na estratégia: retornar ao eleitoralismo que prevaleceu entre a maioria da oposição entre 2006 e 2015. Os Estados Unidos continuam a reconhecer oficialmente Guaidó como o presidente legítimo da Venezuela, mas isso não impediu o governo Biden de se envolver com Maduro [no começo do ano, os Estados Unidos reconheceram a decisão do parlamento paralelo, deixando, portanto, de reconhecer Guaidó como “presidente interino”]. Biden enviou vários enviados a Caracas este ano e há apelos crescentes para que os Estados Unidos reconheçam a realidade de que Maduro é o único presidente da Venezuela.
Esses movimentos levantam uma série de questões, incluindo como os pobres, que constituem a grande maioria do país, estão vivendo. Relatos anedóticos sugerem que eles geraram esperanças crescentes. Mas a realidade nesta seara continua imensamente difícil. Como escreve Pablo Stefanoni, diante da grande diminuição dos serviços estatais e das contínuas dificuldades econômicas, os trabalhadores mal pagos foram forçados a se tornar cada vez mais inventivos para sobreviver, engajando-se em uma variedade de atividades secundárias ou “matando um tigre por dia”. A bodegonização da Venezuela pode ser uma benção para as elites que buscam bens de luxo, mas tem utilidade limitada para os mais pobres. No entanto, como observa Jessica dos Santos , “a situação era tão crítica que um pouco de ar já é um grande alívio”. Como em tantas outras coisas, acabar com as sanções é fundamental para melhorar a vida dos venezuelanos comuns. Embora de alguma forma iminente, as perspectivas de acabar com o regime de sanções parecem mais esperançosas do que era em anos.
Isso nos leva à questão de como e quando a democracia eleitoral pode retornar à Venezuela. Os Estados Unidos fizeram com que tal flexibilização dependesse de fazer com que Maduro concordasse em realizar eleições presidenciais que fossem “livres e justas”. Maduro, por sua vez, declarou que realizará tais eleições somente depois que as sanções dos Estados Unidos forem totalmente suspensas. Apesar de todas as suas falhas, Maduro tem razão no ponto de que eleições genuinamente livres e justas não podem ocorrer sem isso. Caso contrário, a situação será semelhante à da Nicarágua em 1990, quando os cidadãos entenderam – e, de fato, foram levados a entender – que a eliminação dos sandinistas era a única maneira de trazer a paz. A suspensão das sanções também removeria uma das muletas de Maduro: sua capacidade de apontar, com certo fundamento, os Estados Unidos como o principal obstáculo à paz e à estabilidade na Venezuela. Se as sanções terminassem, os apelos de Maduro para uma unidade em torno da bandeira nacional perderiam muito de sua substância. E a realidade de seu governo se tornaria ainda mais evidente, assim como a necessidade de transformação total das instituições eleitorais e judiciárias do país.
A Venezuela continua sendo um Estado altamente repressivo. Em seu mais recente relatório – divulgado em setembro deste ano – sobre os direitos humanos na Venezuela, o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos argumenta que o governo de Maduro é culpado de crimes contra a humanidade. O relatório também condena abusos no Arco Mineiro do Orinoco, detalhando como atores estatais e não estatais cometeram violência contra comunidades indígenas. Ali também é dada atenção à violência sexual e de gênero. Michelle Bachelet, que encerrou seu mandato como alta comissária em agosto, apresentou uma visão modestamente mais otimista em junho. Condenando as contínuas violações de direitos, ela elogiou o governo por algumas reformas, incluindo o fechamento das notórias Forças de Ação Especial (Faes) em maio (embora os críticos argumentem que isso equivale a pouco mais do que um reposicionamento de marca). Bachelet também observou que eles registraram “menos mortes no contexto de operações de segurança” do que nos anos anteriores. Deve-se notar que o trabalho da ONU fez menção limitada às sanções dos EUA, um ponto que gerou críticas dos mais apoiadores do governo Maduro.
A repressão dentro da Venezuela foi dirigida não apenas contra a direita, mas também contra a esquerda. Partidos de esquerda que se opõem a Maduro, como o Marea Socialista, foram impedidos de se registrar para as eleições. Em maio de 2021, o coletivo esquerdista de direitos humanos Surgentes divulgou um relatório intitulado Giro a la derecha y represión a la izquierda, que detalha as recentes políticas econômicas de Maduro e a repressão aos trabalhadores, camponeses e setores da esquerda. Cita, por exemplo, o caso do site aporrea.org, durante anos um espaço de debate da esquerda, que foi amplamente bloqueado pela agência estatal de comunicação, CANTV, desde 2019; o fechamento em 2020 da Rádio Comunitária Jirahara em Yaracuy; o despejo em 2020 das Residencias Estudiantiles Livia Gouverneur em Caracas, que abrigava estudantes universitários chavistas, e a detenção de líderes estudantis que se opunham ao despejo; e a detenção e intimidação de militantes da Alternativa Popular Revolucionária, que agrupava partidos de esquerda que se identificavam como chavistas, mas se opunham a Maduro antes das eleições parlamentares de 2020.
A repressão do Estado, juntamente com os efeitos contínuos da crise econômica, é uma das principais razões pelas quais as perspectivas imediatas da esquerda são assustadoras. Há, no entanto, pelo menos algumas razões para otimismo cauteloso aqui também. Uma delas é que, apesar de seu caráter repressivo, o Estado venezuelano continua respondendo às pressões vindas de baixo. Por exemplo, durante o verão, os trabalhadores da educação do setor público se mobilizaram repetidamente contra a decisão do governo de pagar seu bônus anual em parcelas e calculá-lo com uma fórmula que teria resultado em um pagamento muito menor. Em agosto, o governo concordou com suas demandas. Deve-se notar também que ainda há uma corrente de esquerda dentro do PSUV , partido no poder, que continua pressionando os líderes partidários, apesar dos enormes obstáculos. Maduro há muito usa o conflito com a oposição e os Estados Unidos para se esquivasr das críticas da esquerda, retratando-a como fogo-amigo. Na medida em que o degelo das tensões continuar neste ano, deve haver mais espaço para a dissidência esquerdista.
Veja em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/na-venezuela-recuperacao-sem-socialismo/
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