Relatório da FAO alerta para crise da segurança alimentar nos países latino-americanos e caribenhos em contexto de crise e pós-pandemia. Alta de preços de alimentos ficou 3 pontos percentuais acima da inflação na região.
Por: Edison Veiga | Créditos da foto: Florian Kopp/ImageBroker/picture-alliance. Comer saudável: um luxo para latino-americanos e caribenhos?
Muitas vezes os números servem para dar a dimensão exata daquilo que é naturalmente inexplicável. No caso da dor de quem tem fome porque não pode pagar pelo mínimo, relatório divulgado nesta quarta-feira (18/01) pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mostra o tamanho do drama dos latino-americanos e caribenhos mais pobres nos últimos tempos.
Em análise de 12 meses até junho de 2022, o levantamento confirmou que a inflação geral de todos os países da América Latina e do Caribe foi alta, refletindo a tendência mundial: 8,9%. Mas se isso, por si só, dificulta a vida dos habitantes, a realidade refletida no fundo do prato vazio das populações vulneráveis desses países é ainda pior. Porque, no mesmo período, o preço dos alimentos subiu 11,9%, ou seja, três pontos percentuais a mais do que a inflação.
O relatório lembra que o peso da alimentação no bolso das famílias de baixa renda é ainda maior porque o valor proporcionalmente gasto com comida pelos mais pobres é maior do que pelos mais ricos. Por isso, a chamada “inflação alimentar” dói mais no bolso (e no estômago) daqueles que ganham menos.
O documento Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe 2022 foi divulgado às 12h30 (horário de Brasília) desta quarta-feira no escritório da FAO em Santiago, Chile. O trabalho envolveu outras quatro entidades, além da FAO: o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS), o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP) e o Fundo das Nações Unidas Unidas para a Infância (Unicef).
O levantamento concluiu que atualmente são 131 milhões de indivíduos de toda a América Latina e o Caribe que não podem pagar por uma dieta saudável. Isso equivale a 22,5% da população total de toda a região: 52% do Caribe, 27,8% da América Central e 18,4% da América do Sul.
O número de famintos também teve um aumento de 30% entre 2019 e 2021, saltando de 43,3 milhões para 56,5 milhões. E, reflexo da alimentação pouco ou nada saudável, a obesidade é uma epidemia cada vez mais presente nesses países, atingindo um quarto dos adultos e um total de 3,9 milhões de crianças até os cinco anos de idade.
A crise alimentar, portanto, como aponta o relatório, não causa apenas fome: também traz problemas como obesidade, anemia, atrasos no desenvolvimento infantil e desnutrição.
Preço do colonialismo
Segundo a FAO, a América Latina-Caribe é, hoje, o lugar mais caro do planeta alguém comer de forma saudável: o custo é de, no mínimo, 3,89 dólares por pessoa, enquanto a média mundial é de 3,54 dólares.
Para o sociólogo e cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a América Latina ainda paga o preço do período colonial.
“Desde então, historicamente, boa parte da produção agrícola da região é direcionada para o mercado internacional. Os preços são taxados em euros ou dólar, e como essas commodities têm uma variação atrelada ao cenário internacional, os alimentos se tornam mais caros nos países ‘colônia’.”
Em outras palavras; o produtor de alimento no Brasil acaba enxergando mais vantagem na exportação, em detrimento do mercado local. E este cenário tem sido especialmente intenso nos últimos anos, quando o real se desvalorizou frente a moedas fortes do mercado internacional, como o dólar e euro. Segundo levantamento realizado em 2022 pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o real perdeu quase 50% de seu valor e poder de compra em uma década.
Esse privilégio do mercado externo em detrimento do interno tem duas consequências diretas nos insumos básicos: a escassez e o aumento dos preços. Ramirez defende que o governo federal tenha um programa de silagem de grãos e cereais, como forma de criar um controle entre oferta e demanda que proteja o bolso do consumidor brasileiro, sobretudo no tocante à alimentação básica.
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o sociólogo Rogério Baptistini Mendes argumenta que “criar estoques reguladores de grãos básicos” é necessário para não “ficar refém de sazonalidades e externalidades”.
“O grande desafio do [presidente] Lula será negociar com o setor agrário brasileiro e convencê-lo de que, embora seja importante manter as exportações, o fundamental é garantir o mínimo necessário para que a população possa se alimentar”, afirma o sociólogo Ramirez.
O levantamento concluiu que atualmente são 131 milhões de indivíduos de toda a América Latina e o Caribe que não podem pagar por uma dieta saudável. Isso equivale a 22,5% da população total de toda a região: 52% do Caribe, 27,8% da América Central e 18,4% da América do Sul.
O número de famintos também teve um aumento de 30% entre 2019 e 2021, saltando de 43,3 milhões para 56,5 milhões. E, reflexo da alimentação pouco ou nada saudável, a obesidade é uma epidemia cada vez mais presente nesses países, atingindo um quarto dos adultos e um total de 3,9 milhões de crianças até os cinco anos de idade.
A crise alimentar, portanto, como aponta o relatório, não causa apenas fome: também traz problemas como obesidade, anemia, atrasos no desenvolvimento infantil e desnutrição.
Preço do colonialismo
Segundo a FAO, a América Latina-Caribe é, hoje, o lugar mais caro do planeta alguém comer de forma saudável: o custo é de, no mínimo, 3,89 dólares por pessoa, enquanto a média mundial é de 3,54 dólares.
Para o sociólogo e cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a América Latina ainda paga o preço do período colonial.
“Desde então, historicamente, boa parte da produção agrícola da região é direcionada para o mercado internacional. Os preços são taxados em euros ou dólar, e como essas commodities têm uma variação atrelada ao cenário internacional, os alimentos se tornam mais caros nos países ‘colônia’.”
Em outras palavras; o produtor de alimento no Brasil acaba enxergando mais vantagem na exportação, em detrimento do mercado local. E este cenário tem sido especialmente intenso nos últimos anos, quando o real se desvalorizou frente a moedas fortes do mercado internacional, como o dólar e euro. Segundo levantamento realizado em 2022 pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o real perdeu quase 50% de seu valor e poder de compra em uma década.
Esse privilégio do mercado externo em detrimento do interno tem duas consequências diretas nos insumos básicos: a escassez e o aumento dos preços. Ramirez defende que o governo federal tenha um programa de silagem de grãos e cereais, como forma de criar um controle entre oferta e demanda que proteja o bolso do consumidor brasileiro, sobretudo no tocante à alimentação básica.
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o sociólogo Rogério Baptistini Mendes argumenta que “criar estoques reguladores de grãos básicos” é necessário para não “ficar refém de sazonalidades e externalidades”.
“O grande desafio do [presidente] Lula será negociar com o setor agrário brasileiro e convencê-lo de que, embora seja importante manter as exportações, o fundamental é garantir o mínimo necessário para que a população possa se alimentar”, afirma o sociólogo Ramirez.
Propostas
No relatório, as entidades apresentam propostas para os países afetados melhorarem a situação e garantirem maior segurança alimentar. Elas apontam a necessidade de programas de apoio a pequenos produtores e incentivo à agricultura familiar, com foco na produção de alimentos saudáveis, e ajudando esses agricultores a se conectarem com o sistema, inclusive privilegiando-os em eventuais compras realizadas por órgãos públicos.
“No curto prazo, em países como o Brasil, o incentivo à agricultura familiar é uma saída”, concorda o sociólogo Mendes. “Mas deve ser acompanhada de políticas de médio e longo prazo, voltadas para a recuperação do rendimento dos salários e transformação sociocultural, com a criação de uma cultura alimentar e de saúde.”
Também apresentou-se no documento a sugestão de que sejam criadas plataformas de monitoramento de preços e trocas de informações, proporcionando uma maior transparência da cadeia produtiva. Por fim, as instituições cobram maior investimento em programas de alimentação escolar, com cardápios mais bem preparados, além de campanhas para o incentivo de alimentos saudáveis e políticas fiscais para reduzir o consumo de alimentos altamente processados.
Segundo o relatório, a atual situação enfrentada pela América Latina e Caribe explica-se por uma combinação de fatores, que vão das sucessivas crises econômicas atravessadas nos últimos 15 anos à maneira como a guerra entre Rússia e Ucrânia afeta o setor agrícola, passando pelos impactos econômicos da pandemia de covid-19. As perdas agrícolas causadas pelo aquecimento global também estão no cerne do problema, de acordo com o documento.
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