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Sistema econômico: igual ao que sempre foi?

Vivemos um capitalismo hiperconcentrado ou uma formação “tecnofeudal” se impôs? Segundo texto de nossa série lança provocação: um novo avassalamento recorre a meios políticos para sujeitar trabalhadores e capturar riqueza coletiva

Por: Jodi Dean | Créditos da foto: Eleutério Prado. | Imagem: O Triunfo da Morte (Napoli), autor desconhecido (detalhe)

Decifrar a natureza do sistema econômico e social em que estamos imersos tornou-se crucial, à medida em que as formas de luta contra o antigo capitalismo perdem eficácia. Em 14/1, Outras Palavras publicou o primeiro de três textos que examinam o tema. Nele, o cientista político Evgeni Morozov, pesquisador das implicações políticas e sociais do progresso tecnológico e digital, repele a ideia de que estamos transitando para um “tecnofeudalismo”. Os que imaginam uma ruptura arriscam-se a subestimar a riquíssima tradição teórica da crítica ao capitalismo, sugere ele – e a diluir a responsabilidade deste sistema pela miséria das sociedades contemporâneas.

No artigo que publicamos a seguir, outra cientista política – a norte-americana Jodi Dean – sustenta, ao contrário, que não reconhecer a transição conduz a reduzir a potência das lutas sociais. Estão de volta (e podem se tornar predominantes), ela argumenta, formas de captura da riqueza coletiva que vão muito além da velha extração de mais-valor. Elas se dão tanto na relação entre trabalhadores e empregados (vide a uberização) quanto no poder político inédito – análogo ao dos senhores feudais – que as megacorporações adquirem diante dos Estados. Veja-se, por exemplo, a capacidade de evitar impostos, por meio de paraísos fiscais. Ou os acordos de “livre” comércio, que dão às transnacionais direito de indenização, sempre que novas leis soberanas prejudicam seus lucros (ao assegurar direitos trabalhistas ou proteção ambiental).

Muito mais importante que as diferenças de conceituação é o esforço necessário para enfrentar um sistema transformada, seja qual for o nome que se dê a ele. Outras Palavras espera que as reflexões desta série de artigos – publicada originalmente na Monthly Review e traduzida por Eleutério Prado – estimule tal esforço. (Antonio Martins)


A crítica da razão tecno-feudal, feita por Evgeny Morozov e publicada nos últimos números (133/134) da New Left Review (NLR), tem como alvo a crescente lista de pensadores que viram homologias entre o feudalismo e as tendências atuais no sistema capitalista – estagnação prolongada, redistribuição ascendente da renda por meios políticos, um setor digital em que alguns “barões” se beneficiam de uma massa de usuários “vinculados” a seus domínios algorítmicos e do crescimento de um setor de serviços ou de servidores.

Entre os acusados proponentes da “tese feudal” estão Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Robert Kuttner, Michael Hudson e eu. Morozov descarta a analogia com o feudalismo ao caracterizá-la como decorrente de uma busca de atenção intelectual faminta de memes e mesmo uma falha em entender o capitalismo digital. Recusa o insight sobre a possibilidade de que esse sistema possa estar se transformando em algo que não pode ser mais adequadamente descrito como capitalismo. Estaria ele certo?

Ao definir em que consiste o capitalismo, Morozov contrasta certas conceituações de marxistas como Robert Brenner com a do principal teórico do sistema-mundo, Immanuel Wallerstein. Como observa, os marxistas geralmente concebem o processo de extração de excedentes sob o feudalismo como uma “expropriação” impulsionada por meios coercitivos ou políticos extraeconômicos: os senhores expropriam a produção dos camponeses sobre os quais exercem poder político e jurídico soberano.

O capitalismo, por outro lado, depende da “exploração” – extração de excedentes por meios puramente econômicos: os trabalhadores nominalmente livres, privados dos meios de subsistência, são obrigados a vender sua força de trabalho por um salário rebaixado para sobreviver em uma economia monetária. Para Wallerstein, em adição, o capitalismo também evolve centralmente por meio de processos de expropriação da periferia pelo centro. Morozov aponta esse papel contínuo de “coerção extraeconômica” como a principal diferença entre o que ocorre nesses dois mundos.

Morozov fica do lado de Wallerstein, argumentando que “despossessão e expropriação foram constitutivas da acumulação ao longo da história”. Mas essa dissolução da diferença entre feudalismo e capitalismo – com base na noção de expropriação eterna – não atenta para as mudanças nas formas de exploração. Naturaliza o capitalismo de uma forma que foi efetivamente criticada por Ellen M. Wood em The Origin of Capitalism (2017), abandonando assim qualquer esforço para reconhecer e qualificar a atual mudança.

Além disso, como Marx, Lenin e Luxemburgo enfatizaram, a coerção extraeconômica não é simplesmente substituída pela exploração, mas a acompanha no processo de acumulação; o capital se sobrepõe, incorpora e usa as formas sociais anteriores. Marx julgou a coação sobre o trabalho como não exclusiva do capitalismo. As formações econômicas pré-capitalistas também obrigavam o trabalho a produzir um excedente, o que era expropriado pelo senhor ou pelo lorde. Mas o capitalismo muda a forma dessa compulsão: o que era uma forma direta e pessoal de dominação torna-se impessoal; passa a ser mediada pelas forças do mercado de tal modo que o econômico é separado do político.

Nos Grundrisse, Marx discute uma unidade de produção originária: na antiga forma comunal, os produtores formam uma comunidade de proprietários, que supõem que a terra está lá para eles trabalharem para viver. Eles produzem para si mesmos e para a sua comunidade por meio de processos criativos e destrutivos. O aumento da população implica que a região selvagem precisa ser desmatada e a terra cultivada. A necessidade de terra impulsiona a conquista e a colonização. O surgimento das cidades, do trabalho artesanal e da propriedade dos instrumentos de trabalho provoca um afrouxamento, uma separação, na comunidade. A comunidade começa a aparecer não mais como decorrente de uma relação natural e espontânea mediada pelo trabalho, mas como um produto do trabalho.

O capitalismo pressupõe que o todo se dissolveu em partes. O proprietário da terra não trabalha mais e os que trabalham na terra não mais a possuem. Os artesãos também deixam de possuir os instrumentos de trabalho. São as ferramentas que os empregam agora. Tudo o que estava presente na unidade originária ainda está lá, mas de uma forma diferente. Sob essa nova ordem, as condições separadas de produção se unem pela mediação do mercado. Ao contrário da suposição de Morozov de uma história linear contínua, os Grundrisse iluminam os processos pelos quais a reprodução contínua pode gerar mudanças fundamentais.

Há evidência de uma mudança nos elementos que constituem o capitalismo contemporâneo? Um exame do Uber – a empresa e o aplicativo de compartilhamento de viagens – ajuda a colocar foco no problema. Primeiro, a relação trabalhista.

Os motoristas da Uber são contratados ou funcionários independentes? Por um lado, a empresa descreve seu aparato tecnológico como uma ferramenta para ajudar as pessoas a acessarem “oportunidades de ganhos flexíveis”, isto é, ganhar dinheiro extra dirigindo em seu tempo livre. Os motoristas são empresários independentes que usam o aplicativo da Uber para fornecer “carona” a quem precisa e, assim, ganhar algum dinheiro. A Uber conecta os ofertantes e demandantes e cobra uma taxa pelo serviço.

Por outro lado, as decisões judiciais e as organizações de trabalhadores argumentam que os motoristas do Uber são funcionários. Em fevereiro de 2021, um tribunal trabalhista de Londres rejeitou a alegação da Uber de que seus motoristas eram contratados independentes, observando que a empresa de compartilhamento controlava suas condições de trabalho e remuneração. Os motoristas não têm voz na negociação de seus contratos. A Uber controla as informações que recebe e monitora as tarifas de passageiros, penalizando-os caso não estejam de acordo com seus padrões.

Para alguns analistas, o sistema Uber é o exemplo do modo de exploração por gerenciamento algorítmico, um taylorismo digitalmente turbinado. Para outros, é uma versão moderna da empresa citadina que provê serviços “sob demanda”, a qual é financiada por bilhões em capital de risco. Em After the Gig (2020), a socióloga econômica Juliet Schor descreve as novas plataformas de trabalho online como uma recriação moderna de uma forma econômica baseada na servidão.

À primeira vista, essas interpretações parecem se contradizer: plataformas como o Uber são manifestações do capitalismo sem freios ou uma nova servidão feudal? Para os defensores do emprego como condição social, tais motoristas devem ser considerados como empregados com condições legalmente regulamentadas, as quais foram conquistadas por décadas de luta da classe trabalhadora. Já os defensores da condição social “contratado independente” – no que incluem os motoristas do Uber – não veem a condição de empregado como uma situação particularmente libertadora. Os trabalhadores temporários costumam dizer que valorizam a sua liberdade de definir seus próprios horários, mesmo se detestam a maneira como as plataformas manipulam os aplicativos. Por outro, os capitalistas do Uber não querem mais investir em meios de produção e comprar força de trabalho por períodos determinados.

O relato dos Grundrisse da separação que o capitalismo pressupõe fornece uma maneira de resolver essa inversão binária que envolve servidão e “liberdade”. Marx descreve a massa de trabalho vivo lançada no mercado como “livre em um duplo sentido, livre das velhas relações de dependência, escravidão e servidão e, em segundo lugar, livre de todos os pertences e posses, das formas objetivas e materiais de ser, livre de toda propriedade”. Nessa perspectiva, faz sentido pensar os motoristas do Uber como contratados “gratuitos” – não pelo que ganham em flexibilidade, mas pelo que perdem: forma “libertados” dos direitos dos trabalhadores a terem jornadas garantidas, licença remunerada, benefícios de saúde e assim por diante.

Eles também estão “libertos”, em certo sentido, da relação de propriedade. Na discussão sobre o transporte nas Teorias do mais-valor, Marx observa que “a relação entre comprador e vendedor desse serviço nada tem a ver com a relação do trabalhador produtivo com o capital”. O comprador do serviço de “taxi” não está empregando o motorista, não o coloca para trabalhar, para acumular capital. O instrumento de trabalho, o carro, pertence ostensivamente ao motorista – assim como o artesão pré-capitalista possuía suas ferramentas.

E, no entanto, algo muda na relação do motorista com seu carro: de um item de consumo – algo comprado com o seu próprio “fundo de consumo”, como o salário que recebia por seu trabalho – o carro se torna agora um meio de acumulação de capital, mas não para ele, para o Uber. Em vez da empresa Uber pagar e manter uma frota de carros, ela usa os veículos dos motoristas, fazendo com que os carros deles empreguem os seus proprietários. Por serem avaliados pelos clientes, muitos motoristas se sentem pressionados a manter seus carros limpos e cheirosos. O objetivo de ter um carro agora é menos por prazer pessoal, mas para a geração de renda. Assim, ele se destaca de seu proprietário, como um valor independente. O carro se torna capital.

A dívida que muitos motoristas de Uber acumulam para adquirir um carro sinaliza essa mudança de forma. Os motoristas de táxi tradicionais que trabalham para uma empresa podem mudar para outros empregos se estiverem insatisfeitos, mas os motoristas do Uber geralmente estão presos à obrigações financeiras da quais eles tem muita dificuldade de sair. A dívida que fizeram para adquirir os “seus” carros, prende-os à plataforma.

Ao mesmo tempo, o ônus da manutenção do carro é transformado em custo de produção, um custo que os motoristas têm que assumir. Os motoristas precisam dirigir para pagar pelos reparos e manter os pagamentos do carro – o que significa ganhar tanto para o Uber quanto para eles mesmos. A dupla liberdade dos motoristas – do status de empregado e da posse de um carro para lazer – inaugura uma dupla dependência: dependência do mercado e do sistema Uber para ter acesso ao próprio mercado. O Uber se insere entre motorista e passageiro: eles não podem se encontrar sem a sua “ajuda”.

A inserção do Uber como intermediário entre comprador e vendedor lembra superficialmente a discussão de Marx sobre como, sob a intervenção de comerciantes, os fiandeiros e tecelões independentes são transformados em trabalhadores dependentes. Mas o sistema Uber difere do comerciante porque não está comprando força de trabalho, tal como o faziam os comerciantes intermediários.

A crítica de Morozov ao tecno-feudalismo insiste que os novos “senhores digitais” não são “rentistas ociosos”. Tomando o Google como o seu principal exemplo, ele vê tais capitalistas como inovadores que investem dinheiro em pesquisa e desenvolvimento e que, como resultado dessa atividade, se engajam na produção de novas mercadorias.

Mas o impulso para maximizar os lucros pode também impedir o reinvestimento dos excedentes na produção, direcionando-os para a destruição. As próprias leis do capitalismo podem minar o capitalismo, gerando o pior. Assim, por exemplo, o Uber prejudica e perturba o setor de transporte urbano, reduzindo os salários e impossibilitando que os taxistas ganhem um salário digno. O Airbnb também levou a declínios na receita de hotéis e a demissões de funcionários. A DoorDash está prejudicando o setor de restaurantes na Inglaterra por meio de suas cozinhas não licenciadas e não inspecionadas que reproduzem os menus de restaurantes reais para entrega.

O trabalhar por meio dos sistemas baseados em plataforma informáticas realiza esse tipo de destruição onde quer que aconteça. Como escreveu Alexis Madrigal, as empresas como Uber, Lyft, Grubhub, Doordash e Instacart “ligaram os trabalhadores das indústrias locais – aqueles fazem tudo, faxineiros, passeadores de cães, lavanderias etc. – à economia global rica em tecnologia e em capital. Essas pessoas agora estão se submetendo a um novo intermediário. Elas sabem que eles controlam o relacionamento com o cliente, permitindo apenas que ganhem uma fatia da receita. Se antes os ganhos desses trabalhadores eram próprios, agora há um intermediário que cobra uma taxa e que, assim, obtém uma renda baseada no controle do acesso ao mercado.

O processo de separação que fragmentara a unidade originária, pré-capitalista, de produção reaparece aqui na medida em que intermediários, isto é, as plataformas, se inserem nas relações de troca, desarticulando mercados e destruindo setores. A inserção, a criação de novas dependências baseadas no poder de monopólio, não sai barato. A dominação do mercado custa bilhões, os quais são levantados por meio de capital de risco e “private equity”. A acumulação de riqueza se multiplica por meio de investimentos destrutivos em vez de produtivos.

A estratégia da Uber – que consiste em empregar enormes quantias de capital para cooptar motoristas e subsidiar inicialmente os passageiros até que a empresa se estabeleça em uma cidade e, assim, possa começar a aumentar as taxas cobradas – não é única. Táticas como “escalagem rápida” (blitzscaling) ou “crescimento relâmpago” (lightning growth) são práticas “bíblicas” do Vale do Silício. De acordo com Reid Hoffman, cofundador do LinkedIn e autor do livro Blitzscaling: The Lightning-Fast Path to Building Massively Valuable Companies (2018), trata-se de “fazer propositalmente e intencionalmente coisas que não fazem sentido de acordo com o pensamento empresarial tradicional”.

A WeWork, que opera no setor de aluguel de escritórios, é outro exemplo de escalagem rápida. Armada com bilhões de capital de investimento do SoftBank’s Vision Fund, a WeWork tentou dominar tais mercados usando reservas de dinheiro para destruir ou comprar concorrentes, pagando grandes incentivos aos primeiros locatários e assim por diante. O que faz essa técnica de ganhar mercado parecer viável é a enorme quantidade de capital de risco que busca ganhos descomunais, especialmente o tipo que pode advir de um IPO [N.T.: lançamento de ações para abrir o capital de uma empresa antes fechada] bem-sucedido.

Muitos bilhões são canalizados para uma empresa assaltante que tem por tarefa destruir de modo rápido todos os concorrentes em potencial, em vez de competir diretamente com eles por meio de melhorias de eficiência. Uma vez que os concorrentes são eliminados e as regulamentações contornadas, o vencedor pode aumentar a pressão sobre trabalhadores e clientes. As leis do movimento aqui não são os imperativos do capital de competição de mercado e de maximização do lucro. O capital se torna agora uma arma de conquista e de destruição em massa.

O neoliberalismo transforma-se em neofeudalismo porque efetua uma mudança nas relações sociais de propriedade ao destruir os “grilhões” do Estado ou as restrições institucionais aos mercados – tais como as redes de segurança dos empregados, impostos corporativos, disposições de bem-estar social etc. Os enormes estoques de riqueza capitalista que se acumulam nas mãos de poucos os tornam capazes de exercer um poder político e econômico. Esse poder protege os detentores do capital, ao mesmo tempo que intensifica a miséria de quase todos os demais.

Detentores de riqueza que buscam altos retornos confiam em fundos de hedge, “private equity”, fundos de capital de risco e similares para farejar atividades de alto risco e alta recompensa do tipo encontrado no Vale do Silício – plataformas destrutivas que se inserem nas relações de troca, ao invés de fazê-lo na esfera da produção. Atualmente, a indústria não é mais capaz de gerar superlucros; as plataformas estão se tornando indispensáveis para acessar o mercado com a finalidade de extrair rendas, seja de novas maneiras seja de maneiras mais promissoras.

Note-se: os aumentos da precariedade e ansiedade dos trabalhadores sob o neoliberalismo; note-se as práticas associadas à privatização, austeridade e declínio da classe trabalhadora organizada; tudo isso criou uma base de consumidores gratos por obterem preços mais módicos de mercadorias ao lado de uma oferta de mão de obra sempre em busca de trabalho. Dependentes do mercado para acesso aos meios de subsistência, eles se tornam dependentes das plataformas para acesso ao mercado de trabalho. Se se trabalha e ganha, uma plataforma recebe a sua parte; se se consome, a plataforma também coleta o seu quinhão.

À medida que surgem novas relações de propriedade social, novos tipos de intermediários e novas leis de movimento, os processos de extração em curso não consistem num “retorno” ao feudalismo histórico, tal como a ele se refere Morozov, mas numa reflexão societária, de tal forma que os processos de emprego do capital excedente que, no passado, dirigiam-se para fora – por meio do colonialismo e do imperialismo – voltam-se agora para dentro de si mesmos.

Com os avanços na produção de valor se encontram aparentemente num beco sem saída, o capital é acumulado e usado como arma de destruição; os seus possuidores são os novos lordes, o resto todo são dependentes, serviçais e servos proletarizados. Se o feudalismo foi caracterizado por relações de dependência pessoal, então o neofeudalismo é caracterizado pela dependência abstrata e algorítmica das plataformas que fazem as mediações em nossas vidas cotidianas.

E sobre o papel do Estado, que Morozov descreve como fraco ou quase inexistente sob a antiga forma feudal, parcelada, de soberania, mas agora bem “constitutivo” na economia do Vale do Silício? Logicamente, é claro, o envolvimento do Estado na consolidação de um setor econômico não nos diz nada sobre sua força ou fraqueza; também poderia ser a ferramenta de interesses especiais. Mas Morozov deturpa a discussão da soberania nos debates contemporâneos sobre o feudalismo e sobre a neofeudalização.

Os processos-chave aqui são a fragmentação e a expropriação extraeconômica. Assim como os senhores feudais exploravam os camponeses e tinham autoridade jurídica sobre eles, hoje os grandes atores econômicos exercem o poder político com base nos termos e nas condições que eles mesmo estabeleceram.

Os interesses comerciais privados estão deslocando o direito público por meio de acordos de confidencialidade, regras de não concorrência, arbitragem compulsória e desmantelamento de agências reguladoras públicas, criando assim uma forma fragmentada de “jurisprudência privada legalmente sancionada”.

Com o parcelamento privatizado da soberania, a autoridade política e o poder econômico se misturam. A lei não se aplica a bilionários poderosos já que eles podem evitá-la. Corporações como Apple, Amazon, Microsoft, Facebook e Alphabet são tratadas pelos governos como estados soberanos. A riqueza imensamente concentrada tem seu próprio poder constituinte, determinando as regras que seguirá – ou não.

A contrarrevolução produzida pelo neoliberalismo tem consistido num processo de privatização, fragmentação e separação, em nome de uma liberdade hiperindividual que se assemelha ao “isolamento pontual” do trabalhador “livre” referido por vezes nos Grundrisse.

Os proletários de hoje estão presos em um novo tipo de servidão; são dependentes de redes e práticas por meio das quais as rendas são extraídas a cada passo econômico que dão na sociedade. Quando a produção é insuficientemente lucrativa para a acumulação, os detentores de capital buscam retornos em outros lugares. No processo, eles promovem uma dinâmica de separação, criam também novas formas de dependência, as quais exigem um novo nome: neofeudalismo – eis uma denominação que aponta para tudo isso.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/sistema-economico-igual-ao-que-sempre-foi/

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