Clipping

Caminhos para uma ética e política do Cuidado

Este âmbito da vida humana pesa sobre as mulheres, mas transmuta-se conforme a classe social. Requer outras masculinidades, mas só o Estado pode assegurá-lo de maneira democrática. Por isso, ele é a antítese das políticas de “ajuste fiscal”

Por: Juliana Martinez Franzoni | Tradução: Rôney Rodrigues | Imagem: Araquém Alcântara

Quais são os cuidados

Por “cuidado” entende-se coisas muito diferentes. As mães, os sistemas de saúde, as redes comunitárias cuidam de nós… Se passarmos deste conceito abrangente para um mais preciso, o cuidado é o conjunto de atividades que nos permite dedicar-nos a tudo o que não é cuidar: estudar , trabalhar ou aproveitar a vida requer atenção ao preparo da alimentação, lavanderia, limpeza da casa, mas também necessidades afetivas e emocionais… Estamos diante de aspectos materiais, econômicos e psicológicos fortemente entrelaçados (1). O cuidado é a “rodovia” física, afetiva e emocional por onde circula a vida. Como todas as estradas, não é construída por uma pessoa ou uma família; é construída a partir e com o Estado. A partir de política pública asfalta-se, contrata-se terceiros, ordena-se o trânsito… O equivalente em relação ao cuidado é uma política pública que garanta remuneração para atendimento de partos e serviços públicos de qualidade nas fases posteriores da vida.

A todo momento, boa parte da sociedade necessita de terceiros para atender aos seus cuidados. Existem pessoas dependentes de cuidados e existem prestadores de cuidados. Os dependentes de cuidados são geralmente meninos, meninas, idosos, pessoas com diferentes tipos de deficiência ou com algum grau de dependência. Também são, como mostram as pesquisas domiciliares, boa parte, se não a maioria, dos homens adultos. Os prestadores de cuidados são principalmente mulheres.

Eles cuidam, eles não

Uma parte dos cuidados é oferecida por meio de trabalho remunerado; outra, através dos não remunerado. O cuidado remunerado dá origem a um importante setor da economia, geralmente mal pago. As trabalhadoras domésticas, um quarto de toda a força de trabalho feminina, são um exemplo claro. São indispensáveis e, ao mesmo tempo, ganham salários muito baixos. No final de 2019, em média, os cuidados não remunerados representavam 46% de todas as horas trabalhadas na América Latina, 76 em 100, nas mãos das mulheres: 8 horas por dia contra 2,4 horas por dia que os homens contribuem (2).

O uso do tempo masculino dedicado ao cuidado é um recurso distribuído “democraticamente” entre as classes sociais: cuida-se pouco tanto na base quanto no topo da distribuição de renda, e não importa a presença de filhos e filhas, os anos de estudo ou a renda (3). Quanto às mulheres, a história é outra: sua dedicação ao cuidado é profundamente desigual entre as classes sociais. Enquanto as mulheres no topo da pirâmide social gastam menos de quatro horas por dia em trabalho de cuidado não remunerado, as da base, empobrecidas, gastam em média oito horas por dia (4).

Nos anos 2000, quando as economias e os salários cresciam, a expansão da força de trabalho feminina estagnou. Isso foi surpreendente porque havia trabalho disponível e porque a estagnação também era maior entre as mulheres de menor renda que mais precisavam de empregos remunerados (5). A responsabilidade do cuidado foi a principal causa de estagnação: enquanto as mulheres com renda mais alta compravam o cuidado, as de renda mais baixa só tinham a si mesmas, suas mães, irmãs e filhas. Porque enquanto os mercados de trabalho se tornaram feminilizados, a divisão sexual do trabalho permaneceu inalterada (6).

Estado cuida pouco

Os cuidados são o componente menos desenvolvido nos sistemas de proteção social na América Latina. O fato de os governos não abordarem ou apenas os abordarem ou apenas de forma escassa as responsabilidades sobre o cuidado limita o alcance da proteção social, acentua o papel das famílias e limita a capacidade de geração de renda para as mulheres em todos os níveis. Enquanto para os homens as principais razões para deixar a força de trabalho são estudos, doença ou invalidez, para as mulheres são as responsabilidades familiares (7).

Durante os 15 anos de expansão de políticas sociais ocorridos entre 2000 e 2015, acadêmicas e ativistas feministas e alguns governos impulsionaram avanços para reorganizar o cuidado (8). Além disso, os cuidados chegaram ao Direito e às regulamentações nacionais e regionais (9). Assim, a hora remunerada para cuidar do recém-nascido deixou de ser apenas para assalariadas , sendo estendida para trabalhadoras autônomas, temporárias e domésticas. No auge do período de expansão do emprego formal e de reformas na política social, por volta de 2013, a proporção de trabalhadoras assalariadas latino-americanas com direito à licença-maternidade era de 41%, mas subia para 48% quando contabilizadas as trabalhadoras autônomas e doméstica (10). Mesmo assim, muitas mulheres permaneceram excluídas. Em 2022, das mais de 18 milhões de trabalhadoras domésticas da região, em sua maioria mulheres, indígenas e imigrantes, 77,5% eram informais e menos de 11% tinham previdência social, licença maternidade ou outros benefícios (11).

Além disso, o papel atribuído aos homens continuou sendo limitado. Metade dos países latino-americanos não possui licença paternidade remunerada e, quando existe, dura apenas três a cinco dias (12). Os três países que adotaram medidas para superar o maternalismo são Chile, Cuba e Uruguai, com licenças parentais potencialmente utilizáveis pelos pais. No entanto, até o momento, nenhum destes países introduziu uma “cota para papai” que tornaria a licença não opcional e intransferível dos pais para as mães (13).

Em segundo lugar, durante a segunda metade dos anos 2000, o trabalho de cuidado entrou na agenda pública como uma questão que requer esforços do Estado, em grande parte como resultado de agências internacionais, atores estatais e reivindicações feministas (14). A demanda era por tempo remunerado para cuidar, por maior quantidade e qualidade de serviços de cuidados e por atendimento desde o nascimento até a velhice. Em resposta, vários países criaram sistemas (Uruguai), redes (Costa Rica) ou programas de cuidado (Chile) (15).

Apesar dessas medidas, o trabalho de cuidado ainda é visto principalmente como um assunto familiar e feminino. Depois de duas décadas de uma Rede Nacional de Atenção e Desenvolvimento Infantil definida como universal até 12 anos de idade, a Costa Rica, um dos países com políticas sociais mais desenvolvidas na região, cobre apenas duas em cada dez crianças que vivem em situação de pobreza (16). Além disso, a licença paternidade remunerada no país data apenas de 2022.

O Uruguai é um raro bom exemplo de um Estado que reconhece os pais como cuidadores como um direito paterno, não decorrente da condição de parceiro da mãe. Nesse país, a concessão da licença maternidade é definida como uma medida que ajuda a fortalecer os vínculos entre pai e filho e promover a paternidade cuidadora (17). Ao mesmo tempo, é o país da região que conseguiu implementar simultaneamente mais medidas destinadas a vincular as masculinidades cuidadoras, ampliar os serviços e melhorar os salários.

A pandemia abriu espaço para narrativas transformadoras

Os problemas de políticas públicas não são realidades objetivas à margem de como os definimos. As ideias são importantes recursos de poder para definir a realidade social e não há política pública sem construções discursivas relacionadas aos problemas que puxam o Estado para enfrentá-los (18). A forma como um problema é construído pode definir como ele é resolvido e, mesmo que uma questão seja considerada de intervenção pública (19), a forma como problematizamos as responsabilidades de cuidados e a necessidade de sua reorganização se refletirá nas demandas por políticas públicas que atendam a essa problemática.

Como examinamos com Diego Sánchez-Ancochea, no início da pandemia de covid-19 afirmou-se repetidamente que o mundo enfrentava a oportunidade de reinterpretar muitos problemas sociais e as soluções a eles (20). Assim sugeriu, por exemplo, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antonio Guterres, e a então secretária-executiva da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Alicia Bárcena (21). Era preciso atacar os arranjos sociais e de políticas públicas para enfrentar não só o vírus, mas as crises e os choques socioeconômicos subsequentes (22). Para isso, frequentemente convocaram novos pactos que atentassem menos para o espaço fiscal – ou seja, a margem de manobra existente para responder às demandas populacionais determinadas pelos níveis de déficit fiscal e dívida pública – e/ou que apostassem mais em aumentar a receita pública do que cortar gastos.

Nesse contexto, diversas organizações internacionais, nacionais e locais promoveram narrativas que buscavam dar uma “virada interpretativa”: da normalização da invisibilidade, desvalorização e pouca ou nenhuma compensação, ao reconhecimento, compensação e reorganização dos cuidados (23). Essas ideias não eram novas; circulavam em pesquisas acadêmicas e nos ativismos feministas há décadas. A novidade foi sua ampliação para além dos feminismos e o que parecia ser sua afirmação em agendas ligadas ao mundo corporativo (24) e financeiro (25).

A pandemia criou um contexto favorável para dar novo impulso a ideias que sustentam a necessidade de masculinidades cuidadoras e serviços públicos ampliados. A emergência sanitária contribuiu para lançar luz sobre o que em tempos normais fica relegado ao “quarto dos fundos” da vida em sociedade (26). As medidas de distanciamento social e os lares transformados em escolas, espaço de trabalho e locais de acolhimento, todos juntos e o tempo inteiro, acentuaram e provocaram curtos-circuitos na organização familiar e feminina dos cuidados. Em termos de práticas, no entanto, as condições não foram dadas. Primeiro, porque durante a emergência sanitária os serviços não essenciais foram suspensos, ao invés de ampliados, e o cuidado, mesmo sendo essencial para a sustentabilidade da vida, não foi definido nos mesmos termos do acesso à alimentação e aos serviços de saúde. Em segundo lugar, porque aconteceu tão rapidamente que não foi suficiente para alterar legados institucionais e sociais profundamente enraizados no Estado e na sociedade.

No fim da pandemia, a austeridade

Muito rapidamente, a passagem da pandemia promoveu, em boa parte dos governos, ideias de austeridade segundo as quais a redução dos déficits é uma prioridade que deve ser concretizada, sobretudo, pela redução da despesa pública (27). Essas ideias reapareceram pelas mãos das instituições financeiras internacionais em geral e do Fundo Monetário Internacional (FMI) em particular. Sob o conceito de “consolidação fiscal”, o FMI está atualmente promovendo uma nova onda de ajuste estrutural. A ampliação do espaço tributário por meio de impostos progressivos é considerada perigosa porque, por exemplo, o capital irá ser investido em outro lugar. A responsabilidade fiscal a priori é equiparada à redução do Estado (28).

Assim, a austeridade é tautológica: o investimento social não pode ser ampliado porque o Estado carece de recursos suficientes, mas ao mesmo tempo a arrecadação progressiva de recursos não pode ser ampliada porque essa opção simplesmente não faz parte do cardápio de opções políticas. Em sociedades altamente desiguais e severamente afetadas pela pandemia, a ampliação dos recursos públicos é condição necessária para que haja ações redistributivas de longo prazo. Em marcado contraponto, a austeridade ameaça repetidamente a possibilidade de garantir a redistribuição de recursos em sociedades desiguais (29).

A proteção do espaço fiscal por meio da redução de gastos é considerada, inclusive, em termos morais, como condição para preservar a credibilidade e/ou a estabilidade do país (30). Pessoas, empresas e também governos, em tempos difíceis, devem apertar o cinto (31). Esta forma de pensar afeta todas as áreas da proteção social, desde os serviços de saúde até à proteção da velhice, incluindo os cuidados. No entanto, é particularmente ameaçador para um componente incipiente ou totalmente novo dos sistemas de proteção social, como o cuidado.

Por isso, qualquer abordagem que pretenda fortalecer o papel do Estado nas questões sociais em geral, e do cuidado em particular, deve necessariamente desafiar o argumento da austeridade fiscal (32). Não há alternativa: garantir a responsabilidade fiscal sem abrir mão dos gastos sociais necessários, diante de um alto nível de endividamento, passa necessariamente pela construção de amplo consenso político para a criação de novos impostos progressivos.

Ideias, atores e pressão

É difícil pensar em uma maior e melhor intervenção estatal na questão do cuidado, seja por meio de programas, políticas e/ou sistemas, sem uma profunda redefinição das políticas macroeconômicas e da narrativa em torno do Estado. Para que a “virada interpretativa” em relação aos cuidados prospere, os feminismos e suas diversas expressões organizadas necessitam, hoje, muito mais do que em outros momentos, disputar a visão macroeconômica e colocá-la para circular nas ruas, nos congressos, nos encontros de mulheres… em todas as partes.

Isso significa cidadanizar algumas questões: primeiro, separar o espaço fiscal do espaço tributário de forma clara e simples; segundo, especificar os termos da expansão do espaço tributário por meio de mecanismos progressivos como a implementação de impostos sobre grandes fortunas, impostos especiais sobre indústrias que geram impacto ambiental ou impostos sobre substâncias nocivas, como o tabaco; terceiro, mostrar claramente para que servem os recursos e a potencialidade de seu uso para a sociedade e as economias (33).

Se os governos vincularem o financiamento do investimento social em assistência à tributação progressiva, terão mais chances de sucesso em ambos os empreendimentos. Ao colocar o espaço fiscal e tributário em diálogo, os cidadãos terão melhores ferramentas para monitorar o uso dos recursos do Estado e para exigir uma utilização mais transparente e voltada para as necessidades da população. Além disso, construir esse vínculo ajuda a combater a retórica de que o Estado é apenas corrupto e/ou sem importância. A tarefa é árdua e, no final das contas, vai depender muito de quantas pessoas se mobilizarem para as mudanças e com qual força.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/feminismos/caminhos-para-uma-etica-e-politica-do-cuidado/

Comente aqui