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Por que não explorar petróleo na foz do Amazonas

Reportagem esmiúça o plano da Petrobrás para explorar a região. Uma licença do Ibama basta para abrir esta “nova fronteira” petrolífera. Vazamento poderia causar uma catástrofe. Lula e Marina Silva podem barrar iniciativa perigosíssima

Por: Claudia Antunes | Crédito Foto: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA. Mapa da posição do bloco 59 da Petrobras. Infográfico

A margem equatorial do litoral brasileiro, que tem esse nome por sua localização na linha do Equador, é riquíssima em peixes, abriga 80% dos mangues do país e suas correntes e leitos, especialmente na bacia da foz do rio Amazonas, ainda são pouco estudados pela ciência. É nesse ambiente de extrema sensibilidade e incertezas sobre as consequências de um acidente que a Petrobras pretende perfurar um poço em busca de petróleo, no chamado bloco 59, a 159 quilômetros da região do Oiapoque, no extremo norte da costa do Brasil. Por contrapor interesses dentro do próprio governo, o empreendimento da estatal testa de maneira única a força do compromisso ambiental do presidente Lula e de Marina Silva, sua ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Os autos do processo no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), examinados por SUMAÚMA, mostram que o licenciamento da operação está perto do ponto de não retorno. A Petrobras intensificou a pressão nos estertores do governo Bolsonaro, ignorando um antecedente seu na foz do Amazonas, onde teve um navio-sonda arrastado ao tentar uma perfuração, há 11 anos. Uma licença do Ibama basta para que um empreendimento seja iniciado, mas ao mesmo tempo o instituto tem poder limitado, já que examina estritamente o impacto direto de um projeto em sua área imediata, como se estivesse isolado do meio socioambiental mais amplo. Com frequência, é necessária uma decisão de política ambiental do governo. É por isso que o projeto da Petrobras representa um desafio direto para Lula e Marina, no momento em que prometem correr para salvar a floresta amazônica da própria degradação sem volta – e depois de o presidente se comprometer, desde antes da posse, a cumprir os compromissos que preveem a substituição dos combustíveis fósseis para impedir que o aquecimento do planeta chegue a um nível catastrófico.

Questionados por SUMAÚMA sobre o projeto na foz do Amazonas, a Petrobras e o Ministério do Meio Ambiente enviaram, por meio de suas assessorias de imprensa, respostas que indicam a configuração de um embate entre os dois lados.

A estatal diz que, sob a nova gestão de Jean Paul Prates, apontado por Lula, não pretende abrir mão de perfurar aquela área: “A exploração de novas reservas é essencial para a manutenção dos negócios em petróleo e gás, mesmo num panorama de transição energética, que naturalmente conduzirá à priorização de fontes de energia limpa. Essas atividades de exploração e produção são realizadas sob protocolos rigorosos de responsabilidade social e ambiental, em linha com o Planejamento Estratégico da companhia, e submetidos ao controle externo dos órgãos fiscalizadores”, afirma a empresa.

Já o ministério de Marina Silva, em resposta conjunta com o Ibama, destacou um trecho do último parecer técnico do instituto sobre o projeto, publicado em 31 de janeiro, no qual se afirma que “a ausência de avaliação ambiental estratégica, como a AAAS, e de outros instrumentos de gestão ambiental, dificulta expressivamente a tomada de decisão a respeito da viabilidade ambiental da atividade, inserida em uma área de notória sensibilidade socioambiental e de nova fronteira para a indústria do petróleo”. AAAS, sigla de Avaliação Ambiental de Área Sedimentar, é um instrumento criado em 2012 que permitiria justamente uma avaliação mais ampla de toda a região afetada pelo empreendimento petrolífero.

Caso a Petrobras perfure o bloco 59, chegando a até estimados 2,8 quilômetros de profundidade, isso poderá representar a abertura de uma “nova fronteira” petrolífera pela estatal. A decisão de conceder ou não a licença, que potencialmente abriria uma enxurrada de autorizações em efeito cascata, está no centro do futuro da região, do destino da floresta e também do rumo da própria Petrobras: se continuará sendo uma companhia concentrada na exploração de petróleo para ganhos de curto prazo dos acionistas e do Tesouro – o que um especialista que fez parte da equipe de transição do governo Lula chamou de “estratégia kamikaze” – ou se usará sua capacidade técnica para virar uma empresa de energia voltada para os combustíveis verdes que vão predominar depois de 2030, como biomassa, hidrogênio verde e parques eólicos implantados no oceano.

Suely Araújo, que presidiu o Ibama entre junho de 2016 e dezembro de 2018 e hoje é especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, diz que qualquer vazamento de petróleo na foz do Amazonas causaria uma tragédia. “A Petrobras deveria usar as áreas que já estão abertas, e não ficar investindo em novas explorações em áreas ecologicamente frágeis”, afirma. “No governo Bolsonaro, tentaram licitar perto de Abrolhos, do lado de Fernando de Noronha e no Atol das Rocas. A foz do Amazonas é uma região não estudada, ninguém sabe na verdade o que tem ali de biodiversidade, é única no mundo com essas características, com a quantidade de sedimentos que vêm do rio. O que tem lá de verdade? Tem indícios, mas não sabemos.”

Um derrame de óleo na região do bloco 59 colocaria em risco sistemas naturais como os recifes amazônicos e os manguezais da Guiana Francesa e do Brasil. Foto: Elsa Palito/Greenpeace

O grande sistema de recifes

Edmilson dos Santos Oliveira, do povo Karipuna, é coordenador do Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque, que tem 67 integrantes. Ele, assim como outros parentes, pescadores, ambientalistas e procuradores que atuam no meio ambiente, sente angústia e insegurança pelo que pode acontecer com o Oiapoque, uma região de mangues e campos alagados que abriga três terras indígenas e dois parques nacionais de proteção ambiental.

“A projeção que foi feita pela Petrobras não mostra a mancha de óleo vindo para a terra indígena, só mostra indo para o lado francês. E isso é inacreditável, porque a gente sabe que, a partir do momento que a maré dobrar, a maré encher, essa corrente vai vir em direção aos rios e vai entrar. Para nós, a preocupação é muito grande, porque nossos rios são cheios de várzeas, muitos açaizais de onde a gente tira o sustento, muitos lagos. Caso aconteça um acidente, a gente vai perder muita coisa”, diz ele. “Tudo isso é nossa vida. Sem o rio, a gente não existe.”

Edmilson se refere a um dos itens mais controvertidos do processo de licenciamento ambiental em curso no Ibama: os cenários de um eventual derrame de petróleo apresentados pela Petrobras não preveem sua chegada à costa do Oiapoque. Eles se baseiam na força da corrente Norte do Brasil, que tende a levar o óleo derramado para o mar da Guiana Francesa, do Suriname e da Guiana, chegando até a ilhas do Caribe como Martinica, Trinidad e Tobago e Granada – uma possibilidade muito grave por si só.

Cenários de dispersão de óleo, segundo a Petrobras. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Embora reconheçam as premissas dessa hipótese, pessoas da região como Edmilson e o oceanógrafo Ricardo Motta Pires, chefe do Parque Nacional do Cabo Orange, que protege o ecossistema da foz do rio Oiapoque, têm muitas dúvidas, que se baseiam em sua experiência no terreno. “No Cabo Orange, a amplitude da maré é, em média, de 4 metros e meio. Tem uma ilha ao sul, Maracá-Jipioca, que também é uma área de proteção integral, em que a maré chega a 11 metros. No Sudeste, para comparação, é de cerca de 1 metro. É um terreno de lama mole, que vai acima do joelho. A vegetação é de siriúba, que respira por milhões de tubinhos que ficam na superfície. Se uma mancha chegar ao litoral na maré alta, ela vai entrar mais de 1 quilômetro dentro da costa. Quando assentar, será o fim do mangue. Não tem como limpar esses tubinhos, como recuperar nada”, diz Ricardo, que comanda o parque há 20 anos.

Por causa dessa e de outras dúvidas, o licenciamento, iniciado pela companhia britânica BP, que até 2020 capitaneava a operação do bloco 59, se arrasta há nove anos. A Petrobras, que assumiu a operação em seguida, embora a BP continue como sócia, buscou apressar o processo no segundo semestre do ano passado. Num assunto em que é inevitável trafegar por muitas siglas, neste exato momento o Ibama – responsável pelo licenciamento de todos os projetos petrolíferos na costa brasileira – está muito perto de marcar a data da chamada Avaliação Pré-Operacional (APO) do Plano de Emergência Individual (PEI) apresentado pela empresa, momento em que ela deve demonstrar sua capacidade de gerenciar acidentes. Se a simulação passar no teste, a aprovação do PEI será quase automática, abrindo caminho para a emissão da Licença de Operação. Recentemente, numa reunião entre os dois lados em 31 de janeiro, a Petrobras propôs marcar a APO para antes do Carnaval, mas o Ibama disse considerar o prazo “inviável”, uma vez que a proposta do PEI feita pela companhia ainda não foi aprovada.

A margem equatorial é dividida em cinco bacias, começando no Rio Grande do Norte e chegando à foz do Amazonas. Das cinco, só há exploração de petróleo no litoral do Rio Grande do Norte. Na foz do Amazonas, perfurações anteriores em águas mais rasas não encontraram petróleo. Em 2011, num alerta sobre os riscos da exploração na região, uma sonda da Petrobras foi levada pela correnteza quando tentava achar petróleo a 110 quilômetros do litoral do Oiapoque. A estatal acabou abandonando o poço.

Bacias da margem equatorial do Brasil. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Em 2013, apenas dois anos depois do acidente, nove blocos na bacia da foz do Amazonas foram concedidos pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Até agora, nenhum obteve a Licença de Operação. Em 2018, a empresa francesa Total se retirou da bacia, onde pleiteava fazer perfurações em blocos próximos ao 59, depois de fracassar na obtenção da licença do Ibama por ter sido incapaz de demonstrar que poderia conter um vazamento de petróleo numa área em que os ventos são sempre fortes e a corrente Norte é muito veloz. Na época, a Total estava sob grande pressão de grupos ambientalistas, além de enfrentar novas diretrizes da União Europeia para a redução do uso de combustíveis fósseis.

Foi também em 2018 que uma expedição do Greenpeace fez imagens inéditas do que cientistas chamam de “grande sistema de recifes amazônicos”. A cerca de 200 quilômetros da costa, a formação foi descrita pela primeira vez em detalhes em 2016. Tem bancos de esponjas e presença de corais de águas profundas, onde a “pluma do Amazonas”, como é chamada a área em formato de pena dos sedimentos lançados pelo rio, permite a chegada de luz. Com tamanho e estrutura que ainda são objeto de divergências na comunidade científica, esse sistema de recifes é outra grande preocupação de ambientalistas, que apontam a necessidade de mais estudos sobre a região.

O grande sistema de recifes amazônicos. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Ouriços brancos e rodolitos (algas calcárias) encontrados no sistema de recifes amazônicos na costa do Amapá. Foto: Greenpeace

“A piscosidade da área se deve à combinação do estuário amazônico com o grande sistema de recifes amazônicos. A captura de carbono por esse ecossistema ainda está no âmbito da fronteira acadêmica”, diz o biólogo Vinicius Nora, analista de conservação sênior do WWF-Brasil. “Com esse cenário de inúmeras lacunas do conhecimento, de inúmeros fatores de importância socioambiental, podemos questionar se é o lugar para o avanço da fronteira de exploração do petróleo no final de sua era.”

No segundo semestre de 2022, quando apresentou seu plano estratégico para o período de 2023 a 2027, a Petrobras previu gastar na margem equatorial metade dos 6 bilhões de dólares (cerca de 30 bilhões de reais) destinados à descoberta de jazidas petrolíferas. A ideia exposta no plano era perfurar 16 poços na área, um número alto se comparado aos 24 previstos para a região já produtora do pré-sal.

O que motivou a cobiça pelo litoral norte do Brasil foi o caso da Guiana, país de 800 mil habitantes vizinho à Venezuela onde grandes jazidas foram descobertas no mar pela americana ExxonMobil a partir de 2015. No Suriname, também foram encontradas reservas, mas não na escala guianense, e o início da exploração de petróleo no mar foi adiado para 2027. Já na Guiana Francesa houve uma sequência de perfurações fracassadas, e a Total suspendeu sua operação em 2019. O plano de descarbonização da França baniu a exploração de combustíveis fósseis a partir de 2040 – o país já usa amplamente a energia nuclear, que tem suas próprias controvérsias.

À parte os cálculos financeiros e logísticos, a Petrobras costuma alegar que tem expertise na prevenção de desastres. Só que, quando se trata de petróleo, um único acidente traz consequências duradouras e causa a intoxicação de peixes, aves e plantas. Para citar apenas um exemplo, no ano 2000 o vazamento de 1,3 milhão de litros de um duto da Refinaria Duque de Caxias se espalhou por 40 quilômetros quadrados e contaminou todo o mangue do fundo da Baía de Guanabara. Apesar do mutirão para recuperar a área, quase 20 anos depois ainda havia depósitos de óleo na lama.

Restos de foguete encontrados no Parque Nacional do Cabo Orange, na região do Oiapoque: indício de que corrente poderia trazer mancha de óleo para o Brasil. Foto: divulgação/ICMBio

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