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Na Colômbia: uma nova gramática do poder

Em poucos meses, Petro acelera reformas estruturais, como a tributária e a agrária. Histórico cessar-fogo com as guerrilhas e fim da guerra às drogas marcam sua estratégia de “paz total”. Com Lula, pode projetar uma América Latina soberana

Por: Álvaro Jiménez Millán | Tradução: Maurício Ayer. O presidente Gustavo Petro fala à Convenção Nacional Camponesa, na Universidade: Reforma Agrária para enfrentar a mentalidade feudal, democratizar a propriedade e industrializar o país

Cinco meses após a chegada do ex-guerrilheiro, deputado e ex-prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, à Casa de Nariño, sede do Poder Executivo, após uma histórica vitória eleitoral da esquerda colombiana, o país vive uma série de mudanças que seriam inimagináveis até pouco tempo atrás. Petro sabe que cada dia que passa é um dia a menos para o seu governo, e torna isso visível. O ritmo autoimposto desde o primeiro dia de seu governo, somado ao fato de colocar no centro de sua ação os interesses, a mobilização e a participação de indígenas, camponeses, cocaleiros, jovens, negros, ativistas sociais, defensores dos direitos humanos e ambientalistas, setores tradicionalmente excluídos do poder e da agenda dos governos do país, constroem uma nova gramática do poder na Colômbia do século XXI. Mas, paralelamente, Petro e seu governo desenvolvem e incentivam o diálogo com aqueles que representam os velhos poderes, como pode ser observado no diálogo com seu principal adversário, o ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, e inclusive adotam algumas das antigas formas de exercício do governo e administração pública, o que lhes permitiu formar uma coalizão para garantir a maioria no Congresso. Petro incomoda seus críticos, mas também muitos dentro de seu próprio campo.

Desde 7 de agosto de 2022, o presidente colombiano avançou com sua agenda de “paz total” e com a reforma tributária, anunciou mudanças estruturais na legislação trabalhista, de saúde e educação e anunciou modificações no sistema previdenciário, que foram acompanhadas de um bem-sucedido acordo de salário mínimo com empresários e trabalhadores. Petro colocou a vida como eixo da política de segurança e defesa, instalou atores sociais em instâncias de poder e iniciou a aquisição de 3 milhões de hectares para promover a reforma agrária1; já havia legalizado, nos primeiros 100 dias de governo, títulos de propriedade de quase 700 mil hectares2, avançando assim uma resposta a um dos maiores e mais anacrônicos problemas sem solução da história do país. Por último, mas não menos importante, o novo governo está tentando deixar para trás o paradigma da guerra às drogas ao decidir não combater o cultivo de coca por pequenos agricultores e focar nos embarques de cocaína e na investigação de contas e investimentos de narcotraficantes. Nesse aspecto, promove-se um acordo com os Estados Unidos para estimular um debate regional sobre a migração e a questão das drogas.

Tudo isso em um contexto em que se observam na economia colombiana os efeitos de dinâmicas de ordem global, como a invasão russa da Ucrânia e as consequências ainda atuais da crise gerada pela pandemia de covid-19: a inflação de 13,12% no final de 2022 é a mais elevada das últimas duas décadas, o que reduz o valor real dos salários e poupanças dos cidadãos e soma-se à redução do investimento que vários analistas preveem para 2023, consequência da falta de experiência administrativa e liderança pública de alguns dos ministros nomeados para pastas importantes do governo. Este é o cenário de ameaças que enfrentará o chamado “governo da mudança” em 2023, que pretende transformar a Colômbia em uma “potência mundial da vida”.

Os objetivos de Petro são ambiciosos em um contexto cheio de dificuldades, mas podem ser transformados em oportunidades para mostrar que o primeiro governo de esquerda da Colômbia não é fogo de palha, mas o início de um profundo processo de democratização do poder nacional, que transforma o país em uma referência positiva para a região e o mundo.

Em 31 de dezembro, Petro conquistou a agenda pública ao anunciar um acordo de cessar-fogo bilateral com os cinco grupos armados não estatais que mais afetam a vida das comunidades em territórios que o Estado colombiano não conseguiu controlar em seus mais de dois séculos de existência.

O anúncio da cessação das hostilidades inclui o Exército de Libertação Nacional (ELN); o chamado Estado-Maior Central e o segundo Marquetalia, ambos dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC); as Autodefesas Gaitanistas da Colômbia (ou Clã do Golfo) – poderosos herdeiros dos grupos paramilitares do norte do país, senhores da fronteira terrestre e marítima com o Panamá no estratégico Golfo de Urabá – e os Conquistadores Forças de Autodefesa da Serra Nevada. Um anúncio desse tipo não tem precedentes na história da Colômbia.

As diferentes organizações armadas reagiram aceitando o cessar-fogo, exceto o ELN, que manifestou sua vontade de discutir o assunto imediatamente em uma mesa de negociações que teria sua sede em algum lugar do território mexicano. Com isso, e apesar das críticas do governo pelo apuro no anúncio, o cessar-fogo se instalou como tarefa imediata na estratégia de “paz total” com a qual o Petro busca estender os Acordos de Paz de 2016 com as FARC, que enfrentou forte rejeição da direita e foram derrotados no plebiscito daquele ano, sendo reativados após algumas modificações.

Petro também conseguiu, nesses cinco meses de governo, modificar a política internacional: por um lado, decidiu reabrir a fronteira com a Venezuela e restabelecer com ela as relações diplomáticas e de cooperação rompidas por sete anos e, por outro, reorientou e estreitou as relações diplomáticas com os Estados Unidos, num exercício interessante de aproveitar o atual contexto geopolítico, que obriga Washington a adotar uma política cuidadosa para a América Latina, com o objetivo de não ceder espaço e vantagens à China, que sobretudo nas últimas duas décadas aumentou sua presença na região, e também na Colômbia.

O governo de Petro se caracteriza por uma sequência ininterrupta de decisões que alimenta as expectativas de sua base popular, enquanto as históricas elites colombianas, que detinham o poder desde os tempos coloniais, não conseguem construir uma estratégia de oposição ao primeiro presidente de esquerda da história nacional, ex-guerrilheiro do Movimento 19 de Abril (m-19). Essas elites, na verdade, não estão apenas divididas, mas sim fraturadas. Suas pontes de comunicação estão quebradas em muitos casos, e reinam as desconfianças e desavenças, que se aprofundaram na última década. Elas expressam antigos confrontos entre as elites de Bogotá e as elites regionais; diferentes concepções de gestão do Estado entre elites urbanas e rurais; e também um confronto entre velhas potências econômicas e setores econômicos emergentes, cujas origens estão em circuitos derivados da lavagem de dinheiro do narcotráfico e outros mercados ilícitos (ouro, tráfico humano, combustível, madeira, carvão, coltan, etc.). Nesse cenário de fratura das elites, Petro obtém grandes percentuais de aceitação popular: o grupo de cidadãos que acham que as coisas no país estão melhorando aumentou de 64% para 66% entre outubro e dezembro de 20223.

Na Colômbia atual, os atores sociais e comunitários se converteram ao poder, transformando a face institucional do país e causando furor entre os velhos poderes e seus antigos representantes. A juventude – especialmente nos setores populares, mas também entre as classes médias – é abertamente a favor da mudança. Regiões historicamente afetadas pela violência armada participam ativamente de processos de diálogo em busca de novas perspectivas para suas vidas, e camponeses, incluindo cocaleiros, já são interlocutores válidos para os funcionários do governo no setor agrário, para discutir a transição de cultivos ilícitos para produções legais e incentivos à formação de pequenas unidades produtivas camponesas para garantir a soberania alimentar4. Numerosos grupos aspiram a se beneficiar de um acordo impensável meses atrás: aquele que está sendo negociado entre o governo e a entidade que reúne pecuaristas em todo o território nacional, a poderosa Federação Nacional dos Pecuaristas (opositora ao governo e acusada de ter apoiado grupos paramilitares por mais de quatro décadas), para a referida compra e distribuição de terras pelo Estado.

As mudanças estão em processo, iniciam sua marcha após os anúncios presidenciais e o trabalho que vem realizando a coalizão legislativa que no Congresso favorece as iniciativas apresentadas pelo Poder Executivo.

Cabe destacar que, por não ter maioria parlamentar, o governo Petro teve de formar uma coligação com várias forças de centro-direita, como os partidos Conservador, Liberal e U, bem como de centro-esquerda e esquerda. Essa coalizão é liderada pelos presidentes do Senado, Roy Barreras, e da Câmara dos Deputados, David Racero. Enquanto Racero é um jovem do campo de Petro, Barreras é um operador político experiente, que fez parte da equipe de negociação com as FARC em Cuba e vem do campo político do ex-presidente Juan Manuel Santos, que expressou seu apoio a Petro na busca por “paz total”5. Apenas o Centro Democrático, liderado pelo ex-presidente Uribe, e a Liga dos Governantes Anticorrupção, liderada pelo ex-candidato à presidência Rodolfo Hernández, permanecem na oposição, com pouca representação parlamentar6. A oposição a Petro é hoje muito fraca e alimentada pelo medo de setores da classe média urbana, que os faz oscilar entre a desconfiança no futuro e a ambição de que as mudanças tragam estabilidade à economia.

Essa ampla coalizão parlamentar permitiu ao novo governo realizar a reforma tributária promovida pelo ministro da Economia, José Antonio Ocampo. Esta reforma, com a qual o governo espera arrecadar mais US$ 4,14 bilhões em 2023, faz parte do discurso oficial em torno da melhoria da equidade social. “Aprovar uma reforma tributária não é fácil, nunca foi; como deputado, participei de umas 15 que sempre giraram em torno dos mesmos eixos, que consistiam em estender o IVA [imposto sobre valor agregado] à cesta básica, fazendo com que as reformas tributárias nunca melhorassem as circunstâncias de desigualdade social na Colômbia”, disse Petro na Casa de Nariño ao promulgar a lei7. Embora a reforma tenha sido negociada, suas linhas básicas foram mantidas, vinculadas ao discurso social e ambiental do novo presidente, que tem como um de seus eixos a transição energética para superar os combustíveis fósseis.

Entre outros pontos, foi estabelecida uma sobretaxa para a extração de carvão e petróleo que dependerá dos preços internacionais8. A reforma, como o próprio Petro admitiu, deve ser implementada em meio às turbulências econômicas globais que se projetam para o próximo ano. Em contraste com esta reforma, a de seu antecessor, Iván Duque, considerada regressiva, havia provocado uma onda de protestos em todo o país.

Nessa onda de profundas mudanças nos primeiros cinco meses do governo Petro, vale destacar também a mudança de paradigma e missão nas Forças Armadas, focadas por mais de seis décadas na tarefa de destruir o inimigo interno: as insurgências armadas. Hoje, Petro propõe a essas Forças Armadas o desenvolvimento de ações de proteção à comunidade como sua principal tarefa, usando como indicador o número de vidas protegidas e salvas, e não o número de baixas ou neutralizações, eufemismo usado para indicar números de inimigos mortos. Da mesma forma, Petro pediu que o Ministério da Defesa aproveite as capacidades militares e policiais, meios logísticos e tecnologias em uma nova abordagem que permita defender a Amazônia da depredação ilegal e desenvolver a infraestrutura rodoviária e de transporte fluvial necessária em áreas onde o conflito armado este presente por mais de meio século, como os departamentos de Chocó, Nariño e Putumayo. A estes objetivos da autoridade presidencial soma-se ainda a exigência de maior disciplina, do combate à corrupção e de disposições que visem à melhoria da qualidade de vida e dignidade dos militares, policiais e suas famílias.

Quanto à nova concepção institucional implementada para os cultivos de coca e o tráfico de cocaína, Petro pediu à comunidade internacional que assuma uma nova visão em relação a este mercado e a fracassada “guerra às drogas”. Da Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente colombiano lançou um apelo enfático e perguntou desafiadoramente: “O que é mais venenoso para a humanidade, a cocaína, o carvão ou o petróleo?” Ele destacou que “a decisão do poder tem ordenado que a cocaína é o veneno e deve ser perseguida, mesmo que cause apenas um número mínimo de mortes por overdose, e sobretudo por conta das misturas em consequência de sua clandestinidade, mas, em vez disso, carvão e petróleo devem ser protegidos, para que seu uso possa extinguir toda a humanidade”. E responsabilizou os países consumidores: “Nós servimos como desculpa para o vazio e a solidão de suas sociedades que as levam a viver em meio às bolhas das drogas. Servimos para ocultar os próprios problemas que se negam a encarar.” Ele insistiu na necessidade de mudar o paradigma da luta contra as drogas, “que nos últimos 40 anos deixou milhões de mortos na América Latina, sem grandes êxitos visíveis”9.

A aposta do Petro é construir uma visão regional, uma liderança enquanto região perante o mundo e, claro, uma nova forma de relacionamento com as diversas potências, principalmente os EUA e a Europa. A volta ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil configura o cenário desejado pelo presidente colombiano. A defesa da Amazônia pode unir energias, já que Lula da Silva fez dela um dos eixos que diferencia sua gestão da de Jair Bolsonaro e seu negacionismo climático. A nova ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, pode ser uma aliada das políticas ambientais de Petro; será preciso ver como isso se articula com os interesses da estatal brasileira Petrobras e os objetivos da transição ecológica. Com o apoio de novas gerações de jovens, que fazem sua a causa ambiental, Petro busca transformar sua liderança pessoal em uma liderança da Colômbia na região.

Como será tratada essa disputa de liderança com um Lula e um Brasil que querem ressurgir na região e no debate global? Tudo indica que dependerá muito da estabilidade interna alcançada pelo presidente brasileiro, em meio à polarização política e à radicalização de um setor do bolsonarismo.

No caso de Petro e do Pacto Histórico, sua força política será posta à prova nas eleições regionais de outubro de 2023. Até agora, o presidente colombiano tem mostrado habilidade e audácia política. Com um governo diverso do ponto de vista ideológico, Petro se depara diariamente com a cobrança por resultados de uma opinião pública que até agora tem apoiado majoritariamente sua gestão. Nesses cinco meses, conseguiu dominar a discussão nacional, mostrar resultados e se projetar fora da Colômbia. Os Estados Unidos e a Europa apoiam plenamente sua política de paz e se mostram abertos a novas visões na discussão de temas como drogas, migração e crise na Venezuela. No entanto, os indicadores de redução da violência interna é que mostrarão as possibilidades de continuidade de seu projeto de governo, em um país onde a reeleição foi proibida. Petro tem mais três anos e meio no governo para garantir que isso não acabe na gestão do atual presidente, mas que a paz se consolide, a democracia se aprofunde e, como diz Francia Márquez, a carismática vice-presidente e chefe do recém-criado Ministério da Igualdade, a “dignidade se torne um costume”.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/na-colombia-uma-nova-gramatica-do-poder/

 

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