Em lançamento da Editora Unesp, historiador narra o comércio clandestino de livros na Europa do século XVIII que fez circular as principais obras do Iluminismo – e acendeu a chama revolucionária na França. Sortearemos 2 exemplares
Por: Guilherme Arruda. “A biblioteca da Universidade de Göttingen” (c. 1760-1770), gravura de Georg Balthasar Probst. A gravura de Probst é uma cópia de uma obra homônima de outro gravurista, Georg Daniel Heumann
Muito antes das autoridades inimigas da internet livre começarem a perseguir certas ferramentas virtuais russas muito úteis, a pirataria de livros já mobilizava muita gente. É o que demonstra em novo trabalho o historiador norte-americano Robert Darnton, que recuou até o século XVIII para identificar as redes de publicação e comercialização clandestinas de livros que nasceram em paralelo ao surgimento do negócio editorial na Europa – e demonstrou como elas foram centrais para a disseminação das ideias iluministas.
Em Pirataria e publicação – o comércio de livros na era do Iluminismo, obra publicada há não muito tempo pela Editora Unesp, Darnton mergulha nas fontes de época e mapeia o “Crescente Fértil” da pirataria setecentista: em um arco que vai do território das atuais Holanda e Bélgica, passa pela Suíça, e chega à região sob domínio papal de Avignon, surgiu uma massa de editoras ávidas de suprir com seus produtos o interesse cada vez maior dos franceses por essa literatura renovadora, em desafio ao absolutismo.
Desafio esse que tinha um caráter duplo: político, é certo, mas principalmente econômico. A legislação francesa da época impunha restrições a quem poderia exercer o métier da publicação no interior do reino. Este privilégio, alicerçado na legislação de origem feudal em vigor, era monopolizado pela chamada “Guilda de Paris”, uma associação de grandes editores com base na capital que se comprometia a implementar a pesada censura exigida pela coroa francesa.
Darnton explica que segmentos insatisfeitos da burguesia se organizaram para desobedecer a lei monopolista e a censura, buscando aliados nos livreiros espalhados pelas províncias distantes. Estes entram na jogada por terem seus negócios prejudicados pelos altos preços de livro praticados pela Guilda, sem possibilidade de questionamento por estarem amparados no privilégio concedido pelo Rei.
Assim, estava formada uma cadeia econômica completa, ligando a produção à distribuição. Tipografias estrategicamente localizadas em regiões próximas das fronteiras da França contrabandeavam seus produtos para livrarias implantadas em todas as partes do reino. Mais baratas que as obras editadas com a chancela oficial da Guilda de Paris, as falsificações encontravam público certo nos burgueses, pequeno-burgueses e artesãos que começavam a se movimentar contra o Ancien Régime, ou pelo menos a absorver as ideias que preconizavam sua queda.
Note-se, esta é uma época anterior ao surgimento dos direitos autorais, do copyright e de outras noções de propriedade intelectual próprias da Modernidade. Como explica o autor, o debate acerca dessa remuneração existia na época, mas era incipiente. As normas que conferiam à Guilda de Paris o privilégio da editoração são fundamentalmente as mesmas que estabeleciam a exclusividade das corporações de ofício, formas econômicas típicas da Europa pré-moderna. Os pensadores iluministas, a bem da verdade, não ganhavam muito com suas vastas e prolíficas obras, seja em um modelo ou no outro.
No ano de 1778, dois dos principais filósofos da Era das Luzes – que, a nível pessoal, não se entendiam para nada –, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire, faleceram com poucos meses de diferença. A partir da documentação, Darnton mostra que houve uma verdadeira corrida entre as casas editoriais para publicar de prontidão a maior quantidade de obras, fragmentos, manuscritos dos dois autores que fosse possível. Foram centenas de milhares de exemplares vendidos a um mercado que Darnton estima em algumas dezenas de milhares de consumidores. Tudo, é claro, de forma não-autorizada, pirata. É possível imaginar a relevância que a difusão desse material teve nessa quadra já tensa do inseguro reinado de Luís XVI, encerrado revolucionariamente pouco mais de uma década depois.
O pesquisador chega à impressionante estimativa de que mais da metade dos livros vendidos entre 1750 e 1789 na França foram pirateados. O dado demonstra a consolidação desse segmento da indústria editorial e sua aceitação pelo público leitor. Só com as editoras piratas e seus livreiros aliados é que se podia acessar a literatura proibida pela monarquia (objeto de estudos mais aprofundados em outro trabalho de Darnton), muito procurada em todas as suas vertentes, dos livros pornográficos aos panfletos utópicos, das sátiras anônimas da vida dos poderosos às obras filosóficas que gestavam um novo mundo por vir.
A parte final do livro é uma das mais interessantes por mergulhar no dia-a-dia dos trabalhos da Société Typographique de Neuchâtel (STN). Sediada na Suíça, a editora se destacou por ser uma das mais vultosas a operar com a pirataria de livros franceses, bem como por ser uma cujos arquivos estão bastante preservados. Darnton põe em vista do leitor um exemplo concreto de como uma empresa assim conduzia suas relações com os autores, se movimentava politicamente na capital e buscava mitigar as perdas oriundas das perseguições, trapaças e inseguranças próprias de um negócio ilegal.
Autor do clássico da historiografia O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa (que, aliás, eu mesmo tomei contato na graduação em História), Robert Darnton é um dos principais especialistas que há no mundo em matéria de Iluminismo e Revolução Francesa. Ou melhor, em matéria de França setecentista de modo geral, tendo em vista que seu fazer historiográfico busca oferecer ao leitor uma visão mais ampla dos processos, não se restringindo aos “grandes eventos”.
Pirataria e publicação, publicado originalmente em 2021 pela Oxford University Press, chega às estantes brasileiras pela Editora UNESP. É mais uma contribuição de Darnton para o aprofundamento de nossa compreensão desse período tão importante para a formação dos paradigmas políticos e intelectuais do nosso tempo – dessa vez, destrinchando o curioso fenômeno da pirataria que viabilizou a disseminação das ideias revolucionárias que alteraram o rumo do mundo a partir de 1789.
Ao perceber essas consequências políticas da pirataria de quase trezentos anos atrás, é impossível não pensar na pirataria contemporânea. É ou não é importante que milhões de pesquisadores de países pobres tenham acesso a trabalhos essenciais para o desenvolvimento de suas pesquisas? Se os monopólios editoriais do Primeiro Mundo cobram valores proibitivos, porque não acessá-los por meio de ferramentas como a ZLibrary, o LibGen e o Sci-Hub? Porque países como os Estados Unidos perseguem e prendem os mantenedores de sites como esses? Não é apenas um problema científico. É mesmo algo político.
Por seus méritos historiográficos e pelas reflexões instigantes a que nos leva sobre problemas contemporâneos, é um livro imperdível.
Veja em: https://outraspalavras.net/blog/a-pirataria-de-livros-que-pariu-a-revolucao-francesa/
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