A revolucionária Rosa Luxemburgo nasceu neste dia em 1871. Novo livro de Michael Löwy mostra como suas ideias são fundamentais para enfrentar os desafios políticos, econômicos e ambientais do século XXI.
Por: Deni Alfaro Rubbo | Créditos da foto: Fotos da prisão de Luxemburgo na cidade de Varsóvia, em 1906.
Michael Löwy incorporou diversos autores marxistas não apenas para fundamentar suas próprias pesquisas sociológicas, em especial na área da cultura e da religião, mas também a fim de entender os paradoxos do tempo presente. O sociólogo franco-brasileiro pauta-se sempre por um horizonte político emancipatório. Nesse sentido, a obra de Rosa Luxemburgo ocupa um espaço expressivo em seu pensamento anticapitalista. De todos os autores que o sociólogo marxista devorou e assimilou – Marx, Goldmann, Lukács, Trotsky, Guevara, Benjamin, Mariátegui etc. – a fascinação de Löwy pela marxista polaco-alemã constitui a “história de amor” mais longeva. Trata-se, portanto, de uma prateleira especial de sua biblioteca, como ele mesmo relata: “Uma paixão por uma personagem e sua história, seu caráter profundamente humano, sua intransigência política, seu martírio e – acima de tudo – seu pensamento inseparavelmente revolucionário, libertário e democrático.”
Assim, a publicação de Rosa Luxemburgo. A fagulha incendiária, de Michael Löwy, representa uma oportunidade ímpar para compreendermos as análises globais que, durante seu itinerário, o sociólogo marxista produziu sobre Rosa. Esse encontro herético e vermelho, promovido pelo economista brasileiro Paul Singer quando Löwy tinha apenas 16 anos e residia ainda no Brasil, serviu como fonte teórica e política inesgotável – e insubstituível – que se renova através do tempo. Embora o livro não tenha todos os textos que o autor redigiu sobre a militante socialista, os sete ensaios selecionados (e um apêndice com um texto inédito de Rosa sobre Marx, escrito em 1903), publicados em épocas diferentes, formam um poderoso mosaico sobre a marxista judia, com o objetivo de trazê-la para a cultura revolucionária contemporânea.
Autoemancipação revolucionária
Quais são os aspectos do pensamento político de Rosa Luxemburgo destacados por Michael Löwy?
O primeiro deles é a autoemancipação revolucionária dos trabalhadores. Essa ideia tem desdobramentos tanto sobre o significado do conceito de “revolução” quanto sobre a forma de organização política. A insistência na “autoeducação dos explorados e oprimidos”, moldada pela ação coletiva, faz com que a função do partido não seja a de uma vanguarda esclarecida que substitui a classe, de “cima” para “baixo”. Note-se, contudo, que o papel do partido não é minimizado por Löwy em nome de um espontaneísmo abstrato, como fazem certas leituras unilaterais de Rosa, tanto é que a marxista revolucionária militou em partidos políticos até o final trágico de sua vida.
“‘Socialismo ou barbárie’ é o néctar de uma concepção não linear da história que se distancia da ideia de um determinismo econômico presente na II Internacional.”
Antes, o partido consiste, segundo Löwy leitor de Rosa, em um instrumento estratégico a serviço dos trabalhadores. Consequentemente, isso traz à tona a relação entre teoria e prática no pensamento da fundadora da Liga Espártaco. Em Rosa, essa relação é constituída pela correspondência entre experiência prática de classe e consciência de classe: “a centelha da consciência e da vontade revolucionária se acende no combate, na ação de massas”, sublinha o sociólogo franco-brasileiro. Presente no opúsculo Greve de massas, partido e sindicatos, a dialética luxemburguista da experiência, ação e consciência, compõe um mesmo movimento contraditório, não condicionado por relações mecânicas de causa e efeito.
Socialismo ou barbárie
Um segundo elemento – quiçá o mais importante – é a brochura A crise da social-democracia, redigida na prisão em 1915 (publicada na Suíça em 1916) e assinada com o pseudônimo “Junius”. Nesse trabalho de Rosa enfatizado obsessivamente por Löwy, a palavra de ordem “socialismo e barbárie” representa uma “ruptura” do socialismo e a vitória do proletariado como um produto “inevitável” da necessidade histórica.
Segundo o autor, “socialismo ou barbárie” é o néctar de uma concepção não linear da história que se distancia da ideia de um determinismo econômico presente na II Internacional (seja o “fatalismo otimista” de Karl Kautsky, seja o “moralismo abstrato” de Bernstein) e, em grande medida, na III Internacional (stalinistas e seus epígonos).
“Embora Rosa seja uma intelectual europeia diretamente vinculada ao marxismo ‘clássico’, a análise de Löwy abre a possibilidade de um olhar menos eurocêntrico sobre seu pensamento.”
Não isenta de possíveis controvérsias, essa leitura de Löwy, realizada na década de 1970, ganhou uma renovação crítica mais incisiva nas décadas subsequentes, sobretudo depois de sua incorporação (e leitura) de uma crítica “marxista-romântica” de Walter Benjamin. Afinal, como diria o filósofo alemão, “a nossa geração aprendeu uma lição: o capitalismo nunca vai morrer de morte natural”. Em outras palavras, abraçar uma história de bifurcações, como afirmava Daniel Bensaïd, de múltiplas possibilidades históricas, significa dizer também que o papel decisivo é sempre o da ação política.
Comunismo primitivo
Outro ponto que merece destaque são os escritos de Rosa Luxemburgo sobre as comunidades “primitivas”. Michael é extremamente inovador ao enfatizar tais reflexões em geral minimizadas por grande parte dos especialistas. Publicada postumamente, Introdução à economia política é um conjunto de intervenções desenvolvidas a partir da atividade da autora como professora no partido da social-democracia alemã.
De fato, como sublinha Löwy, é surpreendente o espaço que Rosa dedicou às formas pré-capitalistas de diversas partes do mundo, bem como sua fascinação pelas formas de estrutura igualitária e pelo exercício da coletividade e solidariedade – um “comunismo primitivo”. Daí não surpreende que o autor trace convergências inesperadas ou afinidades revolucionárias, tanto com o Marx dos Grundrisse ou das cartas trocadas com Vera Zasulitch (que Rosa não chegou a ler), quanto com o marxismo indígena de José Carlos Mariátegui.
“Partindo desse princípio para Rosa, a democracia burguesa estaria enraizada em um Estado de classes vinculado ao colonialismo e ao militarismo.”
Através dessas reflexões, Löwy faz referências às diversas resistências contemporâneas de camponeses e indígenas na América Latina que mostram cada vez mais um protagonismo político. Embora Rosa seja uma intelectual europeia diretamente vinculada ao marxismo “clássico”, a análise de Löwy abre a possibilidade de um olhar menos eurocêntrico sobre seu pensamento.
Socialismo democrático revolucionário
Aquestão da democracia tanto na sociedade burguesa quanto no socialismo também é um item marcante no livro de Löwy. Assim como os três temas tratados acima, é importante frisar que Rosa estaria amparada metodologicamente no “princípio da dialética da totalidade”. Essa afirmação categórica de Löwy fundamenta-se em História e consciência de classe, de Lukács, na qual a totalidade da sociedade como processo histórico seria a forma decisiva de distinção entre ciência marxista e ciência burguesa – aliás, esse assunto é fruto de um ensaio meticuloso de Löwy sobre a “evolução” de Rosa na obra do marxista húngaro. Partindo desse princípio para Rosa, a democracia burguesa estaria enraizada em um Estado de classes vinculado ao colonialismo e ao militarismo. Portanto, os eventuais “avanços democráticos” na sociedade capitalista-burguesa seriam, na verdade, fruto de um combate contra a burguesia. Da mesma forma, não existiria movimento social e político (ou de “massa”) sem democracia, e vice-versa.
Ademais, Löwy evidencia também a defesa de Rosa pela democracia socialista e a crítica aos bolcheviques apresentada na brochura sobre a Revolução Russa, em 1918. O alvo de Rosa esteve na “supressão das liberdades democráticas pelos bolcheviques”, isto é, na falta de liberdade de imprensa, de associação e de reunião, o que não significou ausência de solidariedade para com a Revolução Russa. Sob esse ângulo, pode-se dizer que Löwy procura em Rosa uma perspectiva de um socialismo democrático revolucionário.
Seria Rosa Luxemburgo: a fagulha incendiária um livro “luxemburguista”? Sim e não: ainda que Michael tenha desacordos com algumas ideias formuladas por Rosa (como, por exemplo, a “questão nacional”), trata-se de uma “apologia crítica”, pois Löwy pensa à luz dos novos desafios colocados à teoria social e à práxis política o arsenal de ferramentas de uma intelectual-militante vencida na história. O golpe do martelo da revolução, de que falam Rosa e Michael, continua sendo o desafio mais importante para o tempo presente, em que a catástrofe, a miséria e a morte vigoram como lógica socialmente necessária para a sobrevivência do capital.
Veja em: https://jacobin.com.br/2023/03/as-utopias-incendiarias-de-rosa-luxemburgo/
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