Por: Laís Modelli | Créditos da foto: Andressa Anholete/Getty Images. Crise yanoamami deixa evidente o quão precária é a assistência de saúde aos indígenas no Brasil
Dados do Ministério da Saúde solicitados pela DW Brasil mostram a defasagem do Subsistema de Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (SUS): são 15.840 profissionais de saúde em todo o Brasil – entre médicos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas e demais especialidades – para 897 mil indígenas. Os dados populacionais são do último Censo do IBGE, realizado em 2010. Se esta população não cresceu na última década, o Brasil tem uma média de 0,01 profissional da saúde por indígena.
Mas, se forem contados apenas os médicos, há somente 180 deles atuando em distritos especiais voltados para a população indígena em todo o país. Esse número equivale a cerca de 1% dos quase 16 mil profissionais de saúde que operam nessas áreas no Brasil.
Atendimento a indígenas respeita critérios culturais
As Terras Indígenas – somadas as oficialmente demarcadas com aquelas à espera da finalização do processo de demarcação – ocupam 13,8% do território brasileiro, sendo que mais de 98% delas estão na Amazônia Legal, segundo dados da organização Povos Indígenas no Brasil, vinculada ao Instituto Socioambiental (ISA).
Os profissionais da saúde indígena trabalham nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei), uma rede que concentra serviços de saúde (como postos, unidades e polos-base de saúde indígena, com equipes multidisciplinares) dentro dos territórios e aldeias de forma descentralizada. A ideia é que esses distritos concentrem o atendimento de vários municípios ou mesmo estados, já que foram estabelecidos sem considerar os limites geográficos – e sim critérios culturais e políticos dos povos indígenas.
Ou seja, diferentemente das secretarias estaduais de saúde, os Dsei não coincidem necessariamente com os limites de estados e municípios, pois foram distribuídos de acordo com a localização demográfica tradicional dos povos indígenas e as relações sociais entre os diferentes povos.
Ao todo, são 34 Dsei nas cinco regiões do país. Cada um deles deve prestar assistência ambulatorial e de baixa e média complexidade à população indígena local. Os casos graves são encaminhados para os hospitais do SUS, nas cidades.
A complexa tarefa de cuidar da saúde indígena
A Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena (PNASI), instituída em 2002, determina que cada Dsei deve oferecer médicos, enfermeiros, dentistas, auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde – uma tarefa complexa diante de desafios como realizar atendimento em regiões de difícil acesso e considerando as necessidades específicas dos povos indígenas.
Em 2013, quando foi lançado o programa Mais Médicos, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, havia 72 médicos designados para os distritos de saúde especiais. Em 2015, havia 339 médicos, quase cinco vezes mais. O crescimento em dois anos pode ser atribuído, entre outros fatores, ao programa cuja meta era ampliar o acesso à saúde no Brasil, levando médicos a atender pelo SUS em regiões onde havia escassez de profissionais. As vagas que não fossem ocupadas por brasileiros seriam preenchidas por médicos de outros países, principalmente cubanos.
Em 2019, ano em que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, os Dsei chegaram a ter 350 médicos. Após críticas do ex-presidente à cooperação assinada com Cuba e a consequente saída de Havana do programa, o projeto foi encerrado e substituído pelo Médicos pelo Brasil de forma gradual. O governo Lula quer retomar o Mais Médicos, com foco na contratação de profissionais brasileiros.
Atualmente, o número de médicos atuando nos Dsei é de 180. A queda de quase 50% no número de profissionais para saúde indígena no mandato de Bolsonaro se deve especialmente à alta taxa de desistência e à rotatividade dos médicos contratados.
“Os Dsei até conseguem contratar médicos para atuarem nos polos-base de saúde indígena, mas os profissionais não-indígenas se assustam com as condições de trabalho quando chegam nas comunidades. Eles ficam por um período curto e pedem demissão”, conta a pesquisadora Maria Helena Machado, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fiocruz.
Para a especialista, é preciso melhorar as condições de trabalho oferecidas para evitar a rotatividade de profissionais da saúde em locais afastados e precários, como as comunidades indígenas.
“Os profissionais que vão trabalhar em comunidades indígenas, principalmente na Amazônia, correm risco já no trajeto até o local, feito geralmente em aeronaves e barcos. Nos postos de saúde, eles estão expostos a vários outros perigos, como picada de cobra, ataque de animais, além da falta de equipamentos. Se esse profissional não se sentir valorizado e motivado, ele não vai querer atuar ali”, afirma Machado.
Em janeiro, após declarar emergência sanitária de importância nacional na Terra Indígena (TI) Yanomami, o Ministério da Saúde informou que estuda acelerar um edital do programa Mais Médicos para recrutar profissionais – brasileiros e estrangeiros, formados tanto no Brasil quanto no exterior – para atuar de forma permanente nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
Distritos Sanitários Especiais Indígenas
O Dsei Yanomami, de acordo com o Ministério da Saúde, tem apenas seis médicos atuando de forma fixa nos polos-base de saúde de Surucucu, Auaris e Matarucá. Na prática, eles estão contratados para atender uma população de 30 mil indígenas distribuídos em mais de 370 aldeias entre Roraima e parte do Amazonas.
Ainda segundo o Ministério, essas seis vagas ocupadas perfazem apenas 5% das 27 vagas autorizadas para oferecer serviços de saúde no Dsei Yanomami.
O Dsei Yanomami deveria funcionar com 37 polos-base de saúde dentro da TI, mas apenas três deles estão em funcionamento – o maior deles, o polo-base de saúde de Surucucu, funciona com dois médicos que se revezam a cada 15 dias, dois enfermeiros que se revezam a cada 30 dias, três técnicos de enfermagem, dois nutricionistas que revezam a escala a cada mês e dez Agentes Indígenas de Saúde (AIS). Dois deles atuam no polo atualmente.
De acordo com esse documento, o polo-base, que tem capacidade para atender 60 pacientes, tem apenas um banheiro (com uma ducha e uma pia em mau estado de conservação). Isso faz com que os indígenas pacientes do local evacuem e tomem banho no igarapé próximo à unidade.
“Os dados refletem uma questão grave na saúde brasileira, que é a má distribuição de profissionais da saúde, principalmente na região Amazônica e entre populações invisíveis para parte da sociedade, como indígenas e quilombolas”, afirma Maria Helena Machado.
Para a pesquisadora da Fiocruz, uma das consequências da baixa assistência médica disponível dentro da Terra Indígena (TI) Yanomami é a grave crise sanitária que o território enfrenta nos últimos anos, com milhares de casos de malária, desnutrição e viroses. Para levar profissionais da saúde de maneira urgente para o território, o governo federal acionou a Força Nacional do SUS no dia 20 de janeiro.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que, “com avanço da ocupação ilegal de garimpeiros nesses territórios e a desassistência em saúde”, quatro polos foram fechados e os outros 27 polos tiveram suas estruturas e funcionamento comprometidos nos últimos anos.
Ainda segundo a pasta, “desde a criação do Programa Mais Médicos, 56 médicos já atuaram no Dsei Yanomami, nos polos-base e Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSIs)”. Porém, com a escalada da violência dentro da terra indígena por causa da invasão de garimpeiros e com a deterioração das condições de trabalho, esses profissionais se demitiram, restando apenas os seis atuais.
“A violência em terra indígena não é um problema isolado dos yanomami. Muitas aldeias sofrem com a invasão de garimpeiros, que, entre outras coisas, destroem os postos de saúde locais”, diz Machado.
Atendimento voltado às necessidades dos indígenas
Machado ainda destaca a importância dos agentes de saúde para a manutenção do subsistema de saúde indígena do SUS diante da escassez dos demais profissionais.
“Os agentes indígenas de saúde são pessoas locais que fazem a interface entre as comunidades indígenas e o sistema de saúde. Eles também servem de tradutores nos atendimentos, já que muitos não falam português. São figuras muito relevantes dentro do subsistema de saúde indígena. Em muitos locais, são a única assistência disponível aos indígenas”, explica Machado.
Por isso, a pesquisadora defende que a participação das populações tradicionais na saúde indígena do SUS deve ir além dos agentes de saúde indígena.
“Quase não temos médicos, dentistas, indígenas. Precisamos garantir que essas pessoas também ocupem espaços importantes dentro do sistema de saúde indígena. A ancestralidade da medicina, aliás, é indígena. Não adianta oferecer a essas populações o mesmo atendimento dado aos pacientes não-indígenas nos hospitais. Medicina ocidental e conhecimentos ancestrais dos pajés precisam andar lado a lado nesse subsistema”, explica.
Por outro lado, a formação de profissionais da saúde dentro das universidades, principalmente de médicos, precisa se adequar às diversas realidades do povo brasileiro. “Precisamos formar médicos com a consciência de que o Brasil é feito de várias populações, não somente daquelas que vivem nas cidades. Temos os quilombolas, os ribeirinhos, os povos das florestas, os indígenas”, defende Machado.
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