Clipping

Ondas de calor aumentaram no Sul e Sudeste em 40 anos

Estudo mostra que número de eventos extremos de temperatura triplicou no ES e dobrou em SP e RS, com possíveis impactos para a saúde e o agronegócio. “A mudança climática já está aqui”, comenta pesquisador.

Por: Nádia Pontes | Crédito Foto: Imago Images/Fotoarena. Na costa de São Paulo, número de extremos de temperatura saltou de cerca de dez para 19 em quatro décadas

Nos últimos 40 anos, a temperatura subiu nas cidades do Sul e Sudeste da costa brasileira. As ondas de calor triplicaram no litoral do Espírito Santo e dobraram em São Paulo e Rio Grande do Sul no período. É o que aponta um estudo inédito feito por cientistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicado nesta terça-feira (25/05) na revista Scientific Reports, do grupo Nature.

O estudo avaliou uma série histórica com dados de temperatura do ar coletados a cada hora do dia ao longo das últimas quatro décadas em estações meteorológicas de cinco pontos da costa: São Luís (Maranhão), Natal (Rio Grande do Norte), São Mateus (Espírito Santo), Iguape (São Paulo) e Rio Grande (Rio Grande do Sul).

Depois de calcularem a temperatura média em cada mês do ano, os cientistas avaliaram quantas vezes o termômetro subiu acima desse ponto, o que é chamado de evento extremo.

Em São Mateus, as ocorrências passaram de sete no início dos anos de 1980 para 21 entre 2010 e 2019. Em São Paulo, esse número saltou de cerca de dez para 19 no mesmo período. Já no Rio Grande do Sul, o total de ventos passou de 14 para 28. No litoral sul, outro dado que chamou a atenção foram as temperaturas mínimas do dia, que estão ficando cada vez mais altas.

“Um frio menos intenso no Rio Grande do Sul trará impactos ao agronegócio. As plantações dependem de temperaturas estáveis. Quando a amplitude térmica diária aumenta, a produtividade pode cair”, comenta Ronaldo Christofoletti, um dos pesquisadores que assina o estudo, em entrevista à DW.

Os resultados poderiam ser ainda mais impactantes se houvesse informações registradas sobre a temperatura em toda a costa brasileira. Segundo os pesquisadores, apenas as cinco estações meteorológicas envolvidas no estudo fizeram coleta desse dado nas últimas quatro décadas – as instaladas em outras regiões chegaram a ficar até seis anos quebradas.

“Isso mostra um pouco a maneira como o Brasil olha para a ciência. Agora que as mudanças climáticas estão aí, todo mundo quer respostas rápidas. Como conseguimos essas respostas sem equipamentos que coletam dados?”, questiona Christofoletti.

Com o resultado da pesquisa, o cientista espera mais proatividade de governos estaduais, municipais e empresas. “Que possam investir nessas bases de monitoramento, que são tão mais baratas que a conta que pagaremos, por exemplo, na saúde pública por causa dos impactos que as mudanças climáticas causam”, comenta. “A mudança climática não é um futuro, ela está aqui agora.”

DW: O estudo mostrou que os eventos extremos de temperatura aumentaram na costa das regiões Sul e Sudeste do país. Estes resultados eram esperados de alguma forma?

Ronaldo Christofoletti: A gente já esperava que o extremo climático no Brasil não era o mesmo para todas as regiões, sabíamos que isso iria variar entre Sul e Norte do Brasil.

O que não esperávamos, e avaliamos como um resultado de muito impacto, foi o dado do Rio Grande do Sul, do extremo frio ficando cada vez menos frio, ou seja, mais quente. Também não esperávamos o aumento de frequência [de eventos extremos] como vimos.

Eu, por exemplo, tenho 44 anos. Se pensar que nesse tempo a frequência de eventos extremos duplicou no litoral, é muita coisa.

Minha avó, de 93 anos, falou recentemente durante um almoço em que estávamos juntos: “Não sei o que está acontecendo, está muito mais quente que antes.” Isso foi muito forte para mim, porque essa percepção da minha avó é exatamente o que esse trabalho científico que eu estava quase finalizando à época mostra. O “sentir calor” dela significa que os dias muito quentes, acima da média, são mais frequentes.

No litoral do Espírito Santo, por exemplo, essa frequência triplicou. É a região de maior impacto, com aumento da frequência das ondas de calor e de frio. Nos últimos 40 anos, a ocorrência de eventos extremos de temperatura quase dobrou no litoral de São Paulo (84%) e Rio Grande do Sul (100%).

O que é exatamente um evento extremo?

É aquele que está acima da média esperada para aquela época do ano. A nossa definição do extremo foi dada por um  modelo matemático. Ele olhou para todos os dados de temperatura do ar dos últimos 40 anos e calculou a média – ou mediana. Tudo aquilo que está acima da mediana é um extremo.

No nosso caso, a ideia era olhar se esses extremos estão aumentando em intensidade e em frequência.

O extremo aumentando em intensidade se refere ao valor: se está subindo a temperatura em graus Celsius. E o aumento em frequência é se isso está acontecendo mais vezes durante o ano.

O artigo mostra que, em termos de intensidade, não há uma grande variação na costa brasileira.

O extremo frio no Rio Grande do Sul, as temperaturas mais baixas do ano, estão subindo, estão ficando mais altas. Está ficando menos frio no Rio Grande do Sul, ou seja, mais quente.

Outro dado de intensidade que o trabalho mostra é a amplitude térmica do dia, de quanto foi a diferença entre o momento mais quente e mais frio ao longo de um dia. No Sudeste e Sul do Brasil, a amplitude está aumentando. Isso gera um grande desconforto nas pessoas.

Foi fácil ter acesso a todos esses dados de temperatura das últimas quatro décadas?

O acesso aos dados é um ponto-chave para esta pesquisa. Infelizmente, não é tão simples encontrar dados de qualidade em larga escala. Existem dados públicos, como os disponibilizados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Existem estações meteorológicas de instituições privadas e das Forças Armadas, que não são acessíveis facilmente.

Para este estudo, era necessário que os dados tivessem sido coletados com regularidade ao longo dos 40 anos. É muito comum encontrarmos estações na costa brasileira que ficaram cinco, seis anos, quebradas, sem coletar informações.

Quando o equipamento fica quebrado quarenta dias, uma semana, o modelo matemático que criamos consegue ajustar as informações. Mas se a quebra é muito ampla, não há como fazer esse cálculo.

Isso mostra um pouco a maneira como o Brasil olha para a ciência. Agora que as mudanças climáticas estão aí, todo mundo quer respostas rápidas. Como conseguimos essas respostas sem equipamentos que coletam dados? A gente espera inverter esse ciclo para que os governos estaduais, municipais, e até empresas, possam investir nessas bases de monitoramento que são tão mais baratas que a conta que pagaremos, por exemplo, na saúde pública por causa dos impactos que as mudanças climáticas causam.

Como vocês conseguiram contornar essa lacuna de informações?

Existem praticamente apenas cinco estações meteorológicas na costa brasileira que registraram dados de temperatura de hora em hora ao longo dos últimos quarenta anos. Quando ocorreram falhas, ou quebras, foram muito curtas. Isso o modelo consegue ajustar.

Se houvesse estações de monitoramento funcionando nesse período em mais pontos do litoral brasileiro, o resultado do estudo poderia ter sido diferente?

Seria. Poderia ser mais acurado, mais refinado.

Os dados coletados na estação meteorológica de Iguape, litoral sul de São Paulo, podem, na atual circunstância, ser extrapolados para o litoral do Paraná e o restante do litoral paulista.

Por outro lado, a realidade do litoral sul paulista e de Ubatuba, por exemplo, na costa norte paulista, é totalmente diferente. Se houvesse uma base de monitoramento em Ubatuba, nós poderíamos medir como o microclima da Mata Atlântica pode influenciar a região.

O que não dá é para fugir do litoral, extrapolar os dados para a cidade de São Paulo, por exemplo. Nós queríamos mesmo manter o foco na costa.

Foi muito trabalhoso gerar o modelo matemático para este estudo. Agora que ele está pronto, com uma rotina de computador pronta e disponibilizada publicamente, qualquer pessoa pode pegar os dados de 40 anos de qualquer lugar do Brasil, ou do mundo, e gerar análises similares a essa que fizemos.

Quais impactos são esperados nessas regiões onde os extremos estão aumentando?

Não chegamos a fazer no estudo uma correlação clara. Mas a gente sabe que os dados que a gente apresenta, que a maior quantidade de eventos extremos no ano e variação da amplitude térmica durante o dia, um frio menos intenso no Rio Grande do Sul, trarão impactos ao agronegócio.

As plantações dependem de temperaturas estáveis. Quando a amplitude térmica diária aumenta, a produtividade pode cair. Se isso acontece numa época do ano em que determinado tipo de planta deveria estar germinando, ou produzindo sementes, a produção pode cair. O impacto econômico no país vai ser enorme, já que o agronegócio tem peso importante no Produto Interno Bruto (PIB).

Outra questão é o impacto na saúde pública. O aumento de amplitude térmica e a mudança abrupta de temperatura de um dia para o outro, fenômeno que está se tornando mais frequente no Norte e Nordeste, trazem problemas de saúde. Viroses, doenças do sistema respiratório, por exemplo.

O aumento das ondas de calor, como o que tem acontecido no Sudeste e Sul, com extremos de calor muito fortes, pode impactar o turismo, por exemplo. Na Europa, a Espanha teve toque de recolher durante o verão: a recomendação era de que as pessoas não saíssem às ruas em determinados horários por causa do calor, o que aumenta a mortalidade, principalmente de idosos.

Em países como Canadá, Portugal, Espanha e até algumas cidades brasileiras, como no estado de Goiás, prefeituras relataram aumento da mortalidade de idosos durante as ondas de calor nos últimos anos.

O próximo passo é: como iremos nos adaptar a tudo isso?

Pessoas em meio a casas destruídas e árvores derrubadas em encosta de São Sebastião, litoral de São Paulo
Chuvas recentes que devastaram parte do litoral paulista estão ligadas a temperatura do oceano mais quente do que a média, aponta pesquisador. Foto: Nelson Almeida/AFP

Os resultados que o estudo de vocês mostra estão intimamente ligados ao quadro mais amplo de mudanças climáticas?

Sim. A mudança do clima gera uma instabilidade como um todo.

Aqui no Hemisfério Sul, a Antártida, seja pela água ou pelo ar, funciona como um grande regulador do clima, uma espécie de ar condicionado do planeta. Pelo ar, vem as massas de ar polar, ou frente fria. Com o aquecimento do planeta, essas massas de ar se desprendem cada vez mais da Antártida – o que era um ciclo natural, está se intensificando.

Pelas correntes marinhas, sai da Antártida uma corrente de água fria, sobe pela costa da África, vai se aquecendo, e quando ela chega na região equatorial ela vira em direção ao Brasil. Ela absorve o calor tropical, vai descendo pela costa e esfriando até chegar na Antártida. É como uma serpentina de ar condicionado no sentido anti-horário. Com o aquecimento do planeta, o oceano vai dando cada vez menos conta de resfriar essa corrente, e todo o oceano vai ficando mais quente.

No dia da catástrofe provocada pelas chuvas intensas no litoral de São Paulo no Carnaval, a temperatura média do oceano naquela região estava 2 graus mais quente que a média. Isso aumentou a umidade do ar e o volume de chuvas e provocou mortes.

A mudança climática não é um futuro, ela está aqui agora. A gente precisa entender em detalhes como ela está, e por isso quisemos contribuir com nosso estudo.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/ondas-de-calor-aumentaram-no-sul-e-sudeste-do-brasil-nos-%C3%BAltimos-40-anos/a-65429623

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