Pesquisa Focus, onde a nata do financismo justifica juros altíssimos, já prevê uma redução cosmética. O motivo parece ser o choque de realidade: contra suas previsões, medidas de Lula contribuirão para que o PIB deste ano não seja tão trágico…
Por: Paulo Kliass
A semana que teve início no dia 19 de junho parece estar carregada de acontecimentos, reuniões, viagens, julgamentos e anúncios bastante importantes para a desenrolar dos meses que ainda restam até o final do primeiro ano do terceiro mandato de Lula. Como ocorre regularmente às segundas-feiras, o Banco Central (BC) divulgou mais uma vez o Relatório das Expectativas de Mercado, a conhecida Pesquisa Focus. Trata-se de uma consulta realizada semanalmente pelo órgão regulador e fiscalizador do sistema financeiro para tentar aferir as avaliações do chamado “mercado” quanto às perspectivas para as principais variáveis macroeconômicas do país para o curto, o médio e o longo prazos.
Apesar de a pesquisa ser realizada há mais de duas décadas, o BC jamais se preocupou em explicar para a sociedade brasileira as razões que levaram a instituição a optar por esse tipo de sondagem para embasar as decisões da instituição e, particularmente, do Comitê de Política Monetária (Copom). A Focus vai completar 24 anos de existência neste mês de junho e o formato utilizado privilegia exclusivamente a coleta de opinião de dirigentes das instituições financeiras. No início eram ouvidas 50 empresas do setor e atualmente a metodologia prevê a participação de apenas 160 integrantes das direções de tais grupos.
Eles se manifestam a respeito das suas expectativas de inflação, da taxa de câmbio, do nível das atividades da economia e da própria Selic, além de outras variáveis relacionadas ao setor externo e às finanças públicas para o período que vai de 2023 até 2026. Ora, como não há participação de economistas e pesquisadores que não sejam da nata da direção do financismo, é razoável supor que se trata de uma espécie de convescote de jogo de cartas marcadas realizado por meio virtual. Verifica-se uma enorme convergência de opiniões no interior deste reduzidíssimo grupo de “formadores de opinião”, que costumam ser tratados pelos grandes meios de comunicação como sendo a opinião consensual de um ente quase humanizado: o mercado pensa, o mercado avalia, o mercado sugere, o mercado pressiona, o mercado reage.
BC e financismo: tudo a ver
O mais impressionante é que este seleto contingente de indivíduos acaba sendo referendado por parcela significativa das elites das classes dominantes de setores não financeiros. Dirigentes do agronegócio, da manufatura, dos serviços e do comércio incorporam, tal como se fossem suas, as reivindicações e as posições expressas pelo financismo a respeito da política econômica e dos próprios rumos do país. A submissão obediente e passiva das demais frações das classes dominantes aos interesses da banca faz com que a maioria incorpore a fatalidade da convivência normalizada com taxas de juros nominais e reais absurdamente altas. Ou ainda que reverberem de forma mecânica e acrítica as inconsequências de propostas envolvendo a redução da participação do setor público na economia ou a obediência cega à busca da austeridade fiscal criminosa.
Ora, já foram divulgados estudos e experimentos demonstrando que as projeções apresentadas por esse modelitos econométricos carecem de fundamentação. Na verdade, contra-modelos utilizados evidenciam que até mesmo macacos podem chegar a resultados mais próximos à realidade do que as previsões “científicas” dos especialistas. Enfim, falta muita credibilidade aos resultados que os operadores do financismo apresentam como sendo o suprassumo da neutralidade e como a quintessência da boa técnica da econometria. Caso o BC optasse por auscultar também as opiniões de economistas, professores e centros de pesquisa independentes do poder do financismo certamente haveria alguma divergência de opinião e de diagnóstico. Mas sob a retórica enganosa da suposta “independência” do órgão, na verdade repousa uma subordinação absoluta em relação aos interesses da banca.
O relatório mais recente revela tal incongruência. A previsão para o crescimento do PIB em 2023 registra uma alta de 2,14%. O importante a observar é que se trata de mais uma elevação semanal de tal projeção. Há pouco mais de um mês atrás, em 15 de maio, essa mesma previsão era de 1,02%. Ora o que teria feito os modelos todos do setor terem cometido um erro tão gritante como esse? Como explicar uma diferença superior ao dobro, algo de mais de 100%, no intervalo de apenas 5 semanas entre uma consulta e outra? Na verdade, é razoável supor que se trata de um exercício que se assemelha muito mais ao comportamento de torcida uniformizada do que o resultado de uma análise séria e descomprometida da defesa de interesses. No caso, trata-se de uma predefinição arraigada de que o governo Lula 3.0 não pode dar certo. E ponto final.
PIB pode melhorar um pouco
Pois esta mesma pesquisa Focus tem oferecido aos integrantes do Copom o material para manter a Selic nos níveis estratosféricos de 13,75% desde agosto do ano passado. Ou que tenha vindo semanalmente justificando a escalda altista da taxa iniciada em março de 2021, quando ela estava em apenas 2%. O nome para tal processo é – nada mais, nada menos – profecia auto realizada. Assim, é também razoável supor que o comitê vá começar a reduzir de forma cosmética a mesma, uma vez que a Focus projetava 12,50% para o final do ano até a semana passada e agora os respondentes chegam mesmo à heresia de sugerir 12,25%. Mas em qualquer das hipóteses, o patamar continua absurdamente alto e o Brasil segue como o campeão mundial da taxa real de juros.
Uma das razões para essa mudança sutil no comportamento da nata do mundo financista é o tal choque da realidade. Os números oficiais da economia começam a sugerir que o PIB deste ano não será mesmo tão trágico como pretendiam as viúvas de Paulo Guedes e os inconformados com a derrota do genocida no pleito de outubro passado. Ao longo de 2023, o desempenho do setor exportador de “commodities” deve colaborar para a manutenção do nível geral das atividades. Além disso, é possível que os analistas estejam se rendendo às evidências de que algumas das medidas adotadas por Lula – aquelas que eles mesmo consideram como sendo populistas e irresponsáveis – podem contribuir para alguma melhoria no PIB. Apesar do desemprego elevado e da porcentagem significativa de endividados na população, pouco a pouco pipocam sinais de recuperação no nível de atividades.
Agência de risco: é prudente conter o entusiasmo
Uma vez confirmado o sequestro da política monetária viabilizado pela independência do BC, o novo governo já começou com algumas amarras na condução da economia. Na sequência, com a entrega voluntária da política fiscal pela postura submissa de Fernando Haddad na elaboração do novo arcabouço fiscal, os representantes do sistema financeiro passam paulatinamente a relativizar a postura crítica ao governo. Apesar do fim da breve lua de mel dos grandes meios de comunicação com Lula, seu ministro da Fazenda é preservado e até mesmo elogiado.
Nesse contexto de boas notícias, a empresa de “rating” Standard & Poors emite um comunicado em que apresenta uma tendência de elevação da nota que atribui ao Brasil. A agência de classificação de risco manteve a avaliação do país como “BB-“, ainda no patamar de “especulativo”. Mas aponta para a possibilidade de melhoria ao destacar as expectativas de maior pragmatismo na condução da política econômica. O texto reforça em diversos momentos o compromisso com a austeridade proporcionado pelo novo arcabouço fiscal e a importância da independência da política monetária. Assim, setores mais progressistas da própria base de apoio do governo comemoram a novidade, ignorando o compromisso desse tipo de empresa com a ordem do “establishment” do sistema financeiro internacional. Com relação a tal entusiasmo, o Ministério da Saúde recomenda moderação.
Elogio de Meirelles é abraço de afogado
Poucos dias depois, Henrique Meirelles também sai em defesa da gestão de Fernando Haddad à frente da pasta da Fazenda. Em entrevista, o responsável pela elaboração do famigerado teto de gastos em 2016 reconhece que “depois da nomeação do Haddad [o governo] foi convergindo a uma posição mais alinhada às boas posições de política econômica”. A opinião do representante mór do sistema financeiro a respeito de quais seriam as virtudes de condução da economia dispensa comentários. Na verdade, o ex-presidente do BC sob os governos Lula de 2003 a 2010 enaltece os elementos que justamente impedem o terceiro mandato de cumprir com suas promessas de retomada do desenvolvimento e de recuperação da capacidade do protagonismo do Estado.
Notícias favoráveis ao governo são sempre bem-vindas. A divulgação de tais novidades pela grande imprensa pode ajudar na ampliação de sua popularidade e na aceitação da nova gestão junto a setores arredios a Lula. No entanto, é fundamental reconhecer que as razões para tal entusiasmo repentino do povo da Faria Lima tem muito pouco a ver com o caminho para atender às verdadeiras necessidades do Brasil. Enaltecer as medidas que lembram o pesadelo dos tempos do austericídio não contribui para superar os enormes desafios colocados para este terceiro mandato.
Veja em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/rentismo-um-recuo-milimetrico/
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