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Água: quem disse que a história está escrita?

Crônica de uma disputa inconclusa. O elemento mais essencial à vida deve ser garantido a todos ou reduzido a mercadoria? Há 13 anos, Assembleia da ONU fez sua escolha. Desde então, EUA e Europa a boicotam, pelo lucro de suas corporações

Por: Riccardo Petrella em Other News | Tradução: Marcos Montenegro

Neste último 28 de julho, completaram-se treze anos da aprovação pela Assembleia Geral da ONU da histórica resolução que reconheceu como direitos humanos o acesso à água potável e ao esgotamento sanitário (DHAES). A resolução foi aprovada por 122 votos a favor — incluído o da representante do Brasil — nenhum voto contra e 41 abstenções.

Decorridos 13 anos, verifica-se que o Congresso Nacional ainda não introduziu na Constituição Federal explicitamente o reconhecimento destes direitos. Já aprovada no Senado, tramita na Câmara dos Deputados a PEC 6/2021 a qual inclui no artigo 5º da Constituição Federal que “é garantido a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento socioeconômico”. No último dia 4 de julho, o deputado Pedro Campos (PSB-PE) apresentou na Comissão de Constituição e Justiça parecer pela admissibilidade desta e das Propostas de Emenda à Constituição nºs 258/2016, 430/2018 e 232/2019, apensadas.

Tramita também na Câmara Federal desde o ano passado o PL 1922/2022, subscrito por 44 deputados que então compunham a bancada de oposição ao governo Bolsonaro na Câmara, que altera a Lei nº 11.445/2007 (Lei Nacional do Saneamento Básico), para garantir o acesso à água potável e ao esgotamento sanitário como direitos humanos. Sua redação inicial, elaborada pelo Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), foi processada pelo, deputado Joseildo Ramos (PT-BA). Atualmente, o PL 1922 aguarda aprovação na Comissão de Defesa do Consumidor com parecer favorável do relator, deputado Paulo (“Paulão”) Fernando Santos (PT-AL).

Nas vésperas do aniversário da resolução da ONU, Ricardo Petrella, cientista político e economista italiano, reconhecido defensor da água como direito e bem público, publicou um apelo aos governos locais, alertando sobre as ameaças que interesses privados corporativos significam para a realização dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário e a necessidade de mobilização para defendê-los. Ricardo Petrella propõe que o dia 28 de julho, aniversário da resolução da ONU seja adotado e comemorado como Dia do Direito Universal à Água.

Leia a seguir o artigo de Petrella, publicado em português no âmbito da cooperação entre Outras Palavras e o ONDAS(Marcos Montenegro)

Apelo aos Municípios

O direito universal à água está à deriva: negado, esquecido e abandonado

Por Riccardo Petrella.

Em memória de Alvaro Arvizu, ambientalista e defensor da água,
assassinado em 13 de junho de 2023 em Tlamanalco, no México.

Sem surpresas

No dia 28 de julho de 2023, não houve surpresas. Nenhum representante, nenhuma instituição do mundo ocidental dominante se referiu ao dia 28 de julho, dia da resolução da Assembleia Geral da ONU que proclama o direito universal à água potável e ao esgotamento sanitário. Em vez disso, desde 1993, o dia 22 de março tem sido celebrado com pompa e circunstância como o “Dia Mundial da Água”, proposto em 1992 pelo Banco Mundial para promover e difundir métodos comerciais, financeiros e tecnocráticos de gestão dos recursos hídricos no contexto da globalização da economia capitalista (1). A maioria dos 41 países que se opuseram à resolução da ONU eram países ocidentais e “ocidentalizados” (liderados pelos Estados Unidos, Reino Unido e seus aliados), entre os mais ricos e poderosos do mundo, enquanto quase todos os países que votaram a favor (122) são da África, Américas Central e do Sul e Ásia.(2) Os opositores rejeitaram a própria ideia de um direito universal à água porque, segundo eles, a resolução da ONU impunha obrigações ilimitadas e não especificadas aos Estados que, além disso, iam além da salvaguarda da soberania nacional sobre a “sua” água, seu recurso natural. (3)

Desde 1992, os dominantes impuseram a água como um bem econômico. Predominância do domínio das necessidades 

De fato, em 1992, os grupos sociais dominantes nos países “ocidentalizados” conseguiram que a primeira Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, aprovasse o princípio de que a água deveria ser considerada essencialmente como um bem econômico, uma mercadoria, a ser gerida de acordo com as regras da economia de mercado capitalista e, portanto, sujeita aos mecanismos de apropriação privada, à fixação de um preço de mercado e à rivalidade (mercados competitivos) no acesso a ele e seus usos.(4) De acordo com o conceito de água como um bem econômico, o acesso à água é, antes de tudo, uma necessidade vital individual e individualizável. As necessidades individuais variam enormemente no tempo e no espaço. Não há necessidades universais. Há necessidades coletivas pertencentes a sujeitos específicos, como uma comunidade rural ou de montanha, agricultores de terras baixas, uma aldeia, uma região, uma área residencial de famílias ricas, um resort de férias, uma comunidade monástica dedicada à fabricação de cerveja ou um ramo da indústria têxtil…

No contexto da abordagem baseada em necessidades, a questão-chave é a capacidade/poder “local” para acessar a água na quantidade e qualidade exigidas e desejadas, de acordo com as necessidades e a renda. No mundo das necessidades, não há direitos universais, individuais ou coletivos. Daí o princípio aplicado a todos os bens econômicos: “a água financia a água” da mesma forma que “o petróleo financia o petróleo” ou “os carros financiam os carros”. O financiamento das infraestruturas e atividades necessárias ao acesso à água deve ser coberto pelos consumidores pagando um preço que permita aos produtores e prestadores de serviços obter o maior retorno financeiro possível do seu investimento.

Não foi, portanto, possível que os interesses dominantes aceitassem o reconhecimento do direito universal à água aprovado pela mais importante autoridade internacional encarregada de regular as questões globais. Esse reconhecimento soou aos seus ouvidos como heresia e, sobretudo, como um desafio aos princípios e regras que, nos vinte anos desde 1992, tinham se tornado os quatro principais pilares da política global da água ao gosto da economia capitalista dominante.

Os quatro pilares da política global da água na economia dominante 

Primeiro, a preferência dada à gestão de recursos hídricos e dos serviços “públicos” de água e esgoto por empresas privadas de capital privado, inclusive cotadas em bolsa. Apenas para informação, aqui estão as principais empresas globais de água listadas na bolsa de valores: Coca-Cola, Nestlé, Danone, BASF, Dow, Veolia Environnement, Suez Environnement, Kurita Water Industries, DuPont de Nemours, Xylem, 3 M, United Utilities Group, Unilever… Rapidamente, a gestão por empresas privadas tornou-se, sob várias formas, o método preferido das autoridades públicas, enquanto a gestão pública se tornou uma minoria ou mesmo uma exceção.(5)

Em segundo lugar, a internacionalização da gestão da água com base no preço da água fixado de acordo com o princípio da “recuperação total dos custos” (incluindo o retorno sobre o capital investido, o lucro). Este princípio foi formalizado e aplicado pelo British Water Office quando a água e os serviços de água foram privatizados pelo governo de Margaret Thatcher em 1989. Desde então, tem sido aceito sem reservas pelos outros países membros da OCDE(6) e, em particular, pela UE. Continua a ser o pilar fundamental da política da água da UE ao abrigo da Diretiva-Quadro Água de 2000, artigo 9º.(7)

Terceiro. A sujeição da gestão da água e dos serviços de água e esgotos às regras do comércio internacional estabelecidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1994. A OMC conferiu de fato o poder regulatório internacional no setor da água, bem como no setor de saúde e alimentação, aos grupos econômicos, financeiros e tecnológicos dominantes nos países “ocidentalizados”.(8)

Por último, o quarto ponto. O princípio da parceria público-privada (PPP), promovido pelo Banco Mundial na década de 1980. A PPP é um dos principais objetivos do Conselho Mundial da Água, criado em 1995-1996 por um grupo de empresas multinacionais de água, em particular francesas,(9) com o apoio político e operacional do Banco Mundial e da UNESCO. A PPP tornou-se um dos instrumentos preferidos para a privatização “branda” da água e dos serviços de água e esgoto, bem como de todos os bens e serviços públicos comuns essenciais à vida (saúde, transportes públicos, educação, habitação, conhecimento…). Dentro do Conselho Mundial da Água, o órgão responsável pela PPP foi e continua sendo a Global Water Partnership (GWP), cujo trabalho foi facilitado pelo segundo órgão do Conselho Mundial da Água, ou seja, o Fórum Mundial da Água (WWF), que entrou em funcionamento em 1997 com sua primeira reunião em Marrakech.

Hegemonia e “normalização” ideológica e política 

Ao longo dos anos, o Fórum Mundial da Água acabou sendo exatamente aquilo para o que havia sido criado: o instrumento por meio do qual os grupos dominantes deveriam impor a privatização das competências públicas no setor da água. O Fórum rapidamente se tornou a mais importante assembleia mundial, inclusive em comparação com as Nações Unidas,(10) para reuniões, intercâmbios, debates e influência na tomada de decisões sobre a política da água no mundo. Promoveu a normalização ideológica e política das políticas relativas à água a todos os níveis, em conformidade com as orientações e interesses fundamentais do mundo empresarial e financeiro. Um mundo que se apoderou (através das patentes) e que também assumiu o controle (através dos mercados financeiros) do poderoso mundo da tecno-ciência.

A crescente hegemonia ideológica da cultura capitalista no âmbito das Nações Unidas foi confirmada pela assinatura, em 2000, do Pacto Global entre a ONU e as principais empresas privadas do mundo.(11) O Pacto formaliza a participação e a associação do setor empresarial privado nas atividades e programas da ONU, sem direito a voto. Isso pertence exclusivamente aos Estados. Na verdade, no entanto, através do Pacto, o setor privado está “em casa” no sistema da ONU e pode viver lá com todos os seus poderes de influência, pressão e controle da economia mundial.

Um exemplo. Em linha com os objetivos do Pacto Global, em 2007, as Nações Unidas aprovaram a iniciativa CEO Water Mandate,(12) confiando a um grupo de CEOs das principais multinacionais do setor da água a reflexão e a proposição de suas visões sobre a política global da água. Esta iniciativa foi integrada às atividades e projetos em andamento no âmbito da Segunda Década Internacional da Água 2005-2015 das Nações Unidas e da Agenda 2015 da ONU, “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio 2000-2015”. Não é preciso dizer que esta iniciativa teve um grande valor político e simbólico. Felizmente, na minha opinião, as empresas não conseguiram chegar a um acordo e o assunto acabou aí. Sem grandes prejuízos para as multinacionais.(13) Desde o início de 2003, na Conferência Internacional das Nações Unidas sobre “Financiamento da água para todos”, realizada em Monterrey (México), a comunidade empresarial já tinha obtido a aprovação pela comunidade internacional de que os princípios e os mecanismos fundamentais do sistema financeiro existente, incluindo as finanças públicas, deveriam orientar os objetivos e métodos de financiamento da água a nível mundial,(14) em consonância com os objetivos da “governança econômica global”.(15)

Um raio 

Foi neste contexto que foi aprovada uma resolução inesperada da ONU. A resolução das Nações Unidas de 28 de Julho. Um verdadeiro raio. A iniciativa política da resolução foi tomada pelo governo progressista da Bolívia, liderado pelo presidente Evo Morales. Apesar da forte oposição, as potências dominantes não conseguiram bloquear o apoio à resolução de 122 países do Sul Global, apoio que havia sido preparado com inteligência e de forma competente pelo embaixador permanente da Bolívia nas Nações Unidas, Pablo Solon. Um ativista comprometido e conhecido, com profundo conhecimento do tema, Solon conseguiu o apoio dos movimentos sociais e dos governos de muitos países do Sul. Estes estavam conscientes da importância e da urgência de vencer uma batalha simbólica contra a devastação causada pelo Norte no campo dos direitos humanos universais, tanto individuais quanto coletivos, particularmente dos povos, e, por rebote, no campo dos bens públicos comuns.

Restaurar a “ordem das coisas”. Estratégias de esquecimento e abandono/substituição.

É claro que vencer esta batalha não poderia, por si só, mudar as relações de poder entre o Sul e o Norte. Os países “ocidentalizados” adotaram, portanto, duas estratégias. A estratégia do esquecimento e a estratégia de abandonar o conceito de direito universal à água e substituí-lo pelo conceito capitalista mercantil de acesso à água a um custo/preço acessível.

Em busca da primeira estratégia, eles impuseram um boicote a qualquer decisão ou documento da ONU que se refira à resolução, exceto no caso de uma referência falseada. Por exemplo. Um documento emitido pela Secretaria-Geral da ONU afirmava que: “A Assembleia reconheceu o direito de todo ser humano de ter acesso a uma quantidade de água suficiente para uso pessoal e doméstico, ou seja, entre 50 e 100 litros de água por pessoa por dia. O direito à água consiste em um abastecimento suficiente e fisicamente acessível a um custo acessível, ou seja, menos de 3% da renda familiar. Além disso, a fonte de água deve estar a menos de 1.000 metros da casa e o tempo de coleta não deve exceder 30 minutos”.(16)

Releio o texto oficial da Resolução de A a Z. Não há vestígios dos detalhes mencionados no documento.(17) Que eles se tornaram, antes mesmo da Resolução, elementos fundamentais da concepção do direito à água pelas agências especializadas da ONU e de seu secretariado, é certo. Os redatores do documento, no entanto, não podiam fingir que eram elementos formais contidos na Resolução de 2010. Foi uma deturpação deliberada. O conceito de acesso à água potável e ao esgotamento sanitário de forma equitativa (equidade não é o mesmo que justiça) e preço acessível é a negação do direito universal à água. Imposta, como vimos, em 1992-1993, espalhou-se rapidamente por todo o mundo, impulsionada por uma tendência aparentemente irreversível.

A “surpreendente” resolução da ONU levou os grupos dominantes a intensificar e acelerar a substituição do que restava do conceito de direito universal à água pelo de acesso a preço acessível. Seu rolo compressor não parou. Atuaram principalmente a nível europeu, pela simples razão de que as grandes multinacionais europeias ocupam uma posição predominante no setor global da água. Basta pensar na superpotência francesa Veolia-Suez, bem estabelecida em todo o mundo. De acordo com o jornal francês La Tribune de 7 de setembro de 2020, só ela supera o faturamento das outras 14 grandes companhias de água.(18) E depois há a Nestlé e a Danone… que não são páreo para a Coca-Cola…

Em 2012, através do Plano da Água da Comissão Europeia, não deixaram nenhuma porta aberta para uma visão diferente. Pelo contrário, reiteraram o conceito, esclarecendo de uma vez por todas que as partes interessadas (“stakeholders”) estão no centro do poder na “governança global da água”. A soberania dos povos neste domínio já não pertence aos cidadãos e já não é exercida por eles através dos seus representantes eleitos, mas pelas partes interessadas, uma categoria muito nebulosa e ambígua de sujeitos políticos.(19) A gestão pelas autoridades locais, em particular a nível municipal, foi reduzida à função de terminais periféricos de grandes redes globais, apagando assim todas as formas do que já foi o orgulho da autonomia municipal. Também em 2012, na Terceira Cúpula da Terra, promoveram o princípio da monetização da natureza, atribuindo um valor econômico a todos os elementos do mundo natural e, em primeiro lugar, à água.(20)

O ápice da estratégia de abandono/substituição veio em 2015, apenas cinco anos após a resolução, quando as Nações Unidas aprovaram a Agenda 2030 “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS). O documento da Agenda 2030 não menciona mais o direito à água. O ODS 6, dos dezessete ODS, que diz respeito à água, afirma no parágrafo 61: “Até 2030, garantir o acesso universal e equitativo à água potável segura a um custo acessível”.(21) O mesmo se aplica a outros bens comuns essenciais à vida (saúde, alimentação, educação, habitação, transportes públicos, conhecimento…). Pergunta-se de que tipo de Desenvolvimento Sustentável os poderes dominantes estão falando se o direito à vida é abandonado e transformado em “acesso a bens e serviços a preço acessível”? É claro que a normalização ideológica e política não se limitou ao campo dos princípios, mas foi alargada a todas as áreas da regulação política, econômica e jurídica. Infelizmente, estas áreas não são o tema pretendido deste artigo, mas não podemos ignorar os efeitos da normalização no comportamento social em termos do crescimento da violência e da negação da cidadania àqueles que lutam pelo direito universal à água e defendem a água como um bem público comum contra a sua mercantilização, privatização e financeirização.

Nos países do Ocidente, a violência assume a forma de descrédito, ostracismo e, sobretudo, criminalização das lutas dos cidadãos. O caso mais recente, que causou comoção internacional, foi a repressão policial e judicial na França às manifestações contra a construção de mega-reservatórios de água: vários milhares de cidadãos de toda a França participaram. A construção de mega-reservatórios desse tipo não se baseia em outro argumento razoável que não seja defender os interesses de um poderoso grupo de fazendas privadas envolvidas em uma agricultura industrial intensiva para produtos para exportação.(22)

Em outros continentes, particularmente na América Latina e na África, a situação é pior: camponeses, trabalhadores, ativistas e povos indígenas que ousam lutar por seus direitos e suas terras são submetidos a violência brutal, incluindo assassinatos. Entre as centenas de casos nos últimos três anos, o mais recente foi em 13 de junho. Um conhecido ativista ambiental internacional e defensor da água, Alvaro Arvizu, foi assassinado em Tlamanalco, México.(23)

O que pode ser feito? Resistência, oposição e reversão do presente 

A consciência das enormes dificuldades que enfrentamos não deve prevalecer sobre o conhecimento de que a humanidade fez progressos notáveis em todos os campos, especialmente porque lutou contra o que parecia impossível: mudar os sistemas existentes, estabelecer a paz, combater e reduzir desigualdades intoleráveis, promover o interesse geral. O Estado de bem-estar social foi bem-sucedido até certo ponto, especialmente nos países escandinavos até vinte anos atrás.

Resistência. Reivindicando a autonomia da memória. 

O regresso com força em todo o mundo das ideias de extrema-direita (supremacia branca, racismo, nazismo, xenofobia, meritocracia, desprezo pelos empobrecidos, autoritarismo oligárquico, trumpismo, etc.), sobretudo nos países do Ocidente, é um sinal claro da debilidade estrutural do sistema dominante, incapaz de resolver os problemas que criou. As classes dominantes só sabem como agravá-los, porque não pretendem mudar o sistema.

Hoje, a tragédia global é que os dominantes acreditam que podem sobreviver às crises devastadoras da vida presente e futura, graças ao seu poder e às novas tecnologias, mesmo que armas nucleares sejam usadas! O fato de falarem agora do uso de armas atômicas como uma possibilidade real na guerra na Ucrânia entre a Rússia e os EUA/Otan mostra que a opção nuclear para eles pertence ao campo do possível, se não do necessário. Desafiando não só o tratado da ONU que proíbe as armas nucleares, legalmente em vigor porque foi ratificado por mais de 50 Estados, mas também o direito universal à vida dos outros bilhões de seres humanos.

Que indecência. Permitam-me que diga que estou profundamente chocado ao ver a fraqueza da mobilização popular contra tal situação em países do Ocidente que, ainda por cima, se dizem cristãos, católicos, seculares e humanistas…

Até agora, neste artigo, foquei na resistência, promovendo a memória do que levou os grupos de poder nos países ocidentais a esquecer o direito universal à água e, assim, justificar seu abandono. A memória é de extrema importância. Sem memória somos cegos, não somos mais capazes de ver e, portanto, entender nossa história. Isso significa que não somos capazes de identificar as opções existentes e fazer escolhas. Sem memória (ou dependentes de uma memória construída pelos outros) perdemos a bússola. Por isso, como Ágora dos Habitantes da Terra, achamos necessário propor que o dia 28 de julho seja declarado o Dia do Direito Universal à Água. Contrariar o esquecimento, manter os holofotes no princípio do direito à água, consagrar a responsabilidade coletiva de todos para com a proteção e promoção do direito à vida para todos.

A oposição. A governança da água, da vida, pertence aos cidadãos, aos povos 

Se os cidadãos e os povos mantiverem o controle de sua memória, eles podem conseguir realizar importantes ações de oposição às políticas dominantes da água em duas frentes principais.

De um lado, na frente das finanças globais, que está passando por uma profunda transformação tecnológica que desafia os limites do tempo e do espaço. O objetivo é libertar a água, a vida da Terra, do trabalho de predação sistêmica, ainda mais destrutivo do que no passado, desempenhado pelo sistema financeiro capitalista cada vez mais dissociado da economia real. A listagem da água na bolsa de valores (pela Bolsa de Chicago em dezembro de 2020) e a subsequente transformação em 2021 pela Bolsa de Valores de Nova York (“Wall Street”) de todos os elementos do mundo natural em “capital natural”; e, assim, em ativos financeiros(24) criaram uma situação particularmente dura de negação do direito universal à água. Isso também se deve ao fato de que o próprio poder público é a favor da financeirização da água e da natureza. Além disso, no atual contexto de tecnologização total das atividades financeiras, a ideia de gestão democrática da política financeira é inevitavelmente eliminada. O mesmo se aplica em termos da autonomia financeira cada vez mais reduzida dos municípios em todo o mundo.

Em segundo lugar, na frente da violência individual e coletiva, muitas vezes institucionalizada. A violência tornou-se a regra em todas as áreas das relações sociais. A rivalidade e a guerra predominam sobre a amizade e a paz. Ao contrário do que foi proposto no nosso Memorando aos Cidadãos – A Outra Agenda 2021, a cultura do “eu” continua a prevalecer cada vez mais sobre a cultura do “nós”. O mundo se tornou um megaestádio global de violência. As guerras são um espetáculo diário. Poucos líderes políticos, econômicos ou tecnocientíficos os denunciam ou usam seu poder para detê-las. A violência é a negação de direitos. O “Estado de direitos” não pode aceitar como “justificadas” as guerras fratricidas em curso, como a Rússia e os países da Otan estão a fazer em relação à guerra na Ucrânia (mas também às guerras no Oriente Médio, África…).

A luta por bens públicos comuns, essenciais para a vida de todos os habitantes da Terra, evidencia o fato de que não pode haver futuro de justiça e paz sem sistemas decisórios baseados na verdadeira democracia (hoje praticamente inexistente). Este é também o sentido da nossa proposta. Certamente não está garantido, mas os municípios continuam sendo espaços potenciais de regeneração da amizade, das identidades compartilhadas e da corresponsabilidade na gestão da res publica. E, consequentemente, o direito à vida. Também por causa da destruição contínua da vida, os povos do mundo estão se mobilizando em torno dos bens comuns públicos, cuja existência é a primeira vítima da predação. Basta pensar na crescente escassez de água, particularmente de água boa para a vida, pela qual as comunidades locais têm responsabilidade primária.

Regeneração. Reinventando a sociedade, o pacto associativo, a partir da combinação indissociável de direitos universais e bens públicos comuns

Repensar a vida cotidiana em uma perspectiva global, a partir de áreas significativas de proximidade e interdependência, é uma grande tarefa coletiva, indispensável para alcançar os objetivos de regeneração de direitos. Daí o papel fundamental que deve ser desempenhado pelos bens (e serviços) públicos comuns essenciais à vida e, em primeiro lugar, à água. O retorno do direito universal à água no desenrolar da história de nossas sociedades por meio das agendas comunais desencadearia novos imaginários locais-globais de vida capazes de gerar novos princípios pluralistas globais “políticos”, hoje insuspeitos. A celebração do dia 28 de julho – Dia do Direito Universal à Água, livremente escolhido pelos cidadãos locais, é um ato de confiança e esperança na vida, na justiça e na paz. Cabe a cada governo local identificar as ações concretas que considera importantes empreender.

O movimento está bem encaminhado na Argentina, graças ao presidente nacional da Ágora dos Habitantes da Terra, Aníbal Faccendini. As câmaras municipais de quatro grandes cidades do país aprovaram a proclamação de 28 de julho como “Dia Mundial pelo Direito Universal à Água”: Rosário (2 milhões de habitantes, segunda cidade do país depois de Buenos Aires), Bariloche (110 mil habitantes, na Patagônia), Gualeguayachu (77 mil habitantes, na província de Entre Rios) e San Lorenzo (47 mil habitantes na província de Santa Fé).

Quem disse que a história já está escrita?

 

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/agua-quem-disse-que-a-historia-esta-escrita/

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