No atual campo nacional de disputa entre a direita e esquerda, os embates acerca de uma estética que identifique os lados tornou-se um tema incontornável.…
Por: Maíra Marcondes Moreira | Créditos da foto: disponibilizada via https://unsplash.com. Mural em Havana, Cuba por Emily Crawford
No atual campo nacional de disputa entre a direita e esquerda, os embates acerca de uma estética que identifique os lados tornou-se um tema incontornável.
Não muito tempo atrás, em 2019, Fernanda Young dedicou um artigo, acredito que o seu último, “A Cafonice detesta a Arte”, no Globo, sobre a cafonice de direita. Até para quem não leu o artigo, não é muito difícil imaginar menções à paleta verde-amarelo, saias abaixo do joelho, babados, e os discursos violentos travestidos de defesa à pátria, Deus e família.
De todo modo, a esquerda também oferece seus momentos de vexame , ainda que do pólo oposto ao espectro conservador. Isso porque a esquerda também tem lá seus saudosismos e messianismos que fazem da mesma, arrisco dizer, cringe.
Assim como falar sobre sexo tem lá seus efeitos desejantes, escrever sobre o cringe traz alguns embaraços. Primeiro porque é um termo largamente utilizado por uma geração mais jovem para caracterizar a geração que a antecedeu. Segundo, esses termos não estão aí para serem esmiuçados, mas para operar. E explicar demais… é cringe [ou talvez, antiquado em português].
A esquerda é cringe. Cringe em seus símbolos e heróis datados, em sua defesa do populismo de esquerda como alternativa aos incessantes golpes de Estado na América Latina, em sua idealização da educação, em sua tentativa de fundar uma nova gramática moral, e em sua repetição de citações outrora bem-sucedidas e que fora de contexto ressoam como farsa.
A estética cringe e a política
C
hata e um tanto defasada em sua estética, carente de publicitários que a tornem contraventora, nova e apelativa. Make esquerda “cool again” [legal de novo], ou melhor, façamos outra coisa qualquer diferente disto, uma vez que a oportunidade se apresenta.
Claro, se nos declaramos no poder, como situação, e se acreditamos muito nas instituições que tentam manter a nossa frágil democracia de pé, cabe à direita o lugar da insurgência contra revolucionária.
A esquerda é um tanto mais moderada e tímida. Quer, como ensina o Ministro da Justiça Flávio Dino, em sua resposta à empreitada terrorista financiada e realizada por bolsonaristas, no dia 8 de janeiro, combater o ódio com o amor, a violência com a educação, a mentira com a verdade. Talvez a esquerda seja mais ingênua do que os cristãos que ela julga enganados.
Fora a pouca adesão que jargões como “O bem venceu o mal” promovem, vazios de conteúdo e de forma, pautado sempre em um regime de oposição, talvez eles ainda incitem um tanto mais a antipatia daqueles que se veem mais céticos aos discursos de superioridade intelectual e moral da esquerda.
Até porque essa suposta superioridade moral como estratégia de disputa da hegemonia cultural faz com que tudo seja perdoado. Para além da inocência paranóica de que “somos bons”, logo “façamos o bem”, expressão de nossa essência independente do que de fato ocorra, a esquerda desliza em acreditar demais que o jogo muda de acordo com o jogador, mantendo-se todas as peças, estruturas, regras e trapaças já previstas.
Um exemplo: há pouco tempo foi organizado um evento, dia 8 de fevereiro, no Palácio do Planalto, coordenado pela socióloga Janja, mulher do Presidente Lula, em que uma série de comunicadores e artistas em consonância com as pautas do governo participaram.
Tal não seria a indignação, assim como o foi, quando Bolsonaro, então presidente, fez o mesmo, no dia 12 de outubro de 2022, a fim de garantir na época um resultado favorável para o segundo turno das eleições presidenciais. Na ocasião, o ex-presidente convidou toda a baixa estirpe de políticos da nova política, que não são nem de esquerda, nem de direita, nem políticos, nem sociedade civil, podcasters e artistas que, quando não faziam alusões estéticas ao nazismo, disseminavam fake news que empurravam o torto à direita.
É risível pensar que em ambos governos houve tempo e dinheiro investido em alinhar algumas pautas com sujeitos que não são meros apoiadores, mas influenciadores da opinião pública. Enquanto a direita produz fake news como informação, a esquerda produz informação como propaganda. Fácil dizer qual é mais eficaz.
No evento em questão, houve ainda quem reclamou não ter sido convidado para o encontro. O que também tem seus ares de comicidade e de cringe, afinal, numa democracia representativa o certo é que muitos, a imensa maioria que não é composta de outra coisa do que de muitas minorias, não sejam convidados. Não fomos convidados. Tem-se o voto para a plateia, mas o espetáculo é gratuito e forçado a quem quer que seja.
Por formas menos datadas de se fazer política
O espetáculo da esquerda não muito difere dos programas educativos que circulavam na TV aberta até o início dos anos 2000. Quando ainda se apostava na televisão como meio imaterial de propagação de ideias que até podiam ter lá seu conteúdo de conscientização. Ou seja, ignorando os monopólios detrás das mídias que, se concedem minimamente um espaço para qualquer discussão reflexiva, o fazem dentro de um cálculo de riscos.
Apostar demais na comunicabilidade e na existência de um senso comum que antecedem a política em suas balizas morais de certo e errado, faz da esquerda a testemunha do Populismo contra o projeto neoliberal. Basta que façamos um trabalho de base para que o povo saiba A verdade?
Se de tempos em tempos há quem brade impropérios como “Para mim, não foi golpe.”, não importa. Foi golpe para todo mundo, até para os que celebram a derrocada do país, um Brasil em que só Deus esteja de pé ou a caminho de Miami.
Mais do que disputar a hegemonia das narrativas, ou a construção de UMA memória nacional do que foi a ditadura, a esquerda parece ter se esquecido daquilo que é impossível de educar nos corpos, e cuja insubmissão pode até ser proveitosa. É como se toda a esquerda não tivesse de fato vivido a balbúrdia universitária que a direita a acusa.
Uma esquerda que não matou aula, não achou o ensino médio desinteressante, não experimentou drogas, não conheceu lugares diferentes do circuito de bairro, não vivenciou o disruptivo do sexo, da rua e da festa, não pode promover adesão se portando como o educador chato que pode ensinar sobre o lado bom de todas essas coisas.
Se na direita há aqueles que, como Bolsonaro, são muito mal-educados, será que adianta muito o tom professoral com que expomos as novas regras de etiqueta? De que servem os vídeos em preto e branco, lentos e tristes, projetando o que há de mais pobre e inóspito em um país de dimensões continentais, nas tentativas de sensibilizar aqueles que, ao chegar em casa, ligam a TV ou apenas mexem no celular em busca de entretenimento leve e divertido?
Fazer política com as armas de hoje
A crise é estética enquanto defendemos que Lula é pai dos pobres e que Bolsonaro é pela família, mas pai mesmo só de seus filhos (homens). Há crise quando falam de ecossocialismo e imprimem uma imagem de Marx feita de brócolis, repolho e alface. Enquanto a esquerda tenta defender que está do lado certo da história divulgando Caule Marx, a direita conseguiu inovar em suas intervenções midiáticas com programas que – não irei citar o nome para não fazer propaganda de direita – fazem alusão aos tempos de pornô chanchada. Mas a esquerda tem o Greg News.
Informação humorística não é propaganda política porque não atinge novos públicos. A direita conseguiu produzir conteúdo caótico, anárquico e nonsense que remete às imagens da falecida Mtv Brasil em seus primórdios, e programas maravilhosos como Gordo Pop Show, Piores Clipes do Mundo, Hermes e Renato e O Último Programa do Mundo. Se servindo de vozes distorcidas, recursos parcos e toscos, máscaras, chistes e quase nenhuma informação, a propaganda engaja e compele.
Não se trata de um conteúdo propriamente artístico, mas de uma exacerbação bem-sucedida em produzir efeitos simulados de estremecimento no público que a consome. Ela não comunica, ela se dissocia das coordenadas postas pelo próprio meio em que se propaga, ao mesmo tempo em que é manifestação promovida e prevista da indústria cultural. Sua falta de coerência e sentido não importam. Não importa nem mesmo a imagem de Cristo de metralhadora, pronto para expor que a esquerda não é santa, nem tão boazinha assim, que tentam trazer ao final de cada proliferação de imagens saturadas que produzem.
Defender ou não a inocência, e o que mais valha, como forma de justificar um posicionamento político, faz com que a política saia de cena para a moral tomar conta. E a moral é um tanto mais cringe. Assim como são os professores, e os alunos que amam os professores, e que defendem as escolas e universidades. Alunos como muitos se tornaram ao conciliar a vida universitária e a rebeldia.
Por uma esquerda que matou aula
Foi se o tempo em que era possível sonhar uma insurgência de esquerda? Resta apenas apelar pela defesa vazia de uma democracia que vira e mexe esquece de convidar alguém? Somos um pouco cringe, e não tá tudo bem, não.
Talvez no próximo encontro, já que estamos normalizando eventos como estes, melhor não contar tão somente com as formas conciliadas do “artivismo” e do diálogo. Nem a tradição pela tradição, nem o novo pelo novo: outra coisa. Perguntem aos universitários onde foi parar a vontade de “sair para fazer o certo: colocar fogo em ônibus” com que jovens da periferia tomaram as ruas em 2013, antes que a direita se servisse dessa mesma potência destruidora em seus planos de ruptura?
Como bem pontua Vladimir Safatle em seu novo livro “Em um com o impulso” (Autêntica, 2023), essa é a estética que não comunica, a de depredação de qualquer símbolo mais ou menos fetichizado ou tomado como nacional e que tem por força lembrar que o povo não está ali, e isso porque somos uma pluralidade de povos a falar múltiplas línguas. É preciso superar a falsa dicotomia de que há um país dividido em dois que precisa ser conciliado. As tentativas de unificar o país podem muitas vezes recair na tentativa de promover uma forma de vida em detrimento de outras. “Vão para Cuba”, ou “Vão vocês para Miami” dizem dessa cisão em que nem “Deus, Pátria e Família” de um lado, e nem o “Amor, o Bem e a Esperança” de outro conseguem resolver: a divergência que se dá no campo da moral não é política.
Nós, os pacíficos, as viúvas do Lula, amedrontados diante a violência e o anti-intelectualismo de direita, velhos em nossas propostas de manutenção da ordem e da civilidade, bem que poderíamos ser um pouco piores. Como inventar novos símbolos de forma que eles ainda sejam nossos?
Veja em: https://jacobin.com.br/2023/08/esquerda-cringe-por-uma-esquerda-que-matou-aula/
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