Livro desvenda os mecanismos que alavancam lucros, ódios e a extrema direita. Receita básica: segmentar a sociedade; alimentar cada grupo com suas próprias “verdades”; ocultar, para todos, como se produz a “informação” que recebem…
Por: Ladislau Dowbor
É importante lembrar que esse universo que absorve horas do nosso tempo diariamente é imensamente rentável. Estamos falando das maiores fortunas e das maiores corporações do mundo. O dinheiro vem essencialmente da publicidade. É importante lembrar que os acessos são gratuitos, mas toda a publicidade que alimenta as fortunas dos gigantes da comunicação é financiada pelas empresas que produzem os bens e serviços que compramos, e é incorporada nos preços que pagamos. Em outros termos, este gigante corporativo mundial é financiado por nós, no pagamento extra que custeamos. A opção é “transformar todos os usuários em renda, vendendo anúncios…E, conforme o fornecimento de anúncios de internet aumenta, o preço cai. Em um memorando de 2014, o CEO da Microsoft anunciou que ‘cada vez mais, a commodity realmente escassa é a atenção do ser humano.’”(161) A filosofia básica? “Eles iam vender anúncios, todo mundo ia ficar rico”.(158)
A batalha, portanto, é por nossa atenção, e o “engajamento”, ou seja, a geração de um vínculo emotivo o mais forte possível, amarrando as pessoas na telinha. O método é simples. Usando AI e algoritmos, a análise do uso das mídias pela população é permanentemente analisado, em detalhe, e as mensagens que mais captam atenção, likes, comentários, compartilhamentos, têm o seu conteúdo analisado e categorizado, identificando os conteúdos e formatos que mais “engajam” as pessoas. Selecionando o que mais captura a atenção, entre bilhões de mensagens, o algoritmo evolui para outra seleção entre seleções, e assim sucessivamente, até concentrar a reprodução no tipo de conteúdo que mais amarra as pessoas, e essas mensagens é que passam a aparecer a cada passo, para cada usuário, segundo o perfil identificado.
De certa forma, não somos mais nós que escolhemos o que ver, somos alimentados com o que gostamos de ver. “Em questão de meses, com uma equipe pequena, tínhamos um algoritmo que aumentava o tempo assistido e gerava milhões de dólares de receita extra em publicidade”, diz um participante. “Foi muito, muito empolgante”.(147) Em termos de impacto, o sistema, sem consciência dos usuários, passou a canalizar a atenção das pessoas, e a confirmar visões cada vez mais estreitas, por confirmações repetidas de diversas fontes. É o que chamamos de “bolhas”, e que Fisher chama de “tocas de coelho”.
A gestão baseada em algoritmos que priorizam o que maximiza a atenção, utiliza pontuação. No Facebook, “comentários curtos ganhavam quinze pontos, recompartilhamentos e comentários longos ganhavam trinta, recompensando tudo que provocasse uma discussão longa e emotiva.” Um relatório interno alertou que “os conteúdos com desinformação, veneno e violência são excessivamente dominantes entre os recompartilhamentos.” O próprio Zuckerberg escreveu que “quando deixamos sem controle, as pessoas se envolverão de modo desproporcional com conteúdo mais sensacionalista e provocador.” (324, 325) A deformação ficava clara, mas o que prevaleceu foi o interesse comercial: como o envolvimento emocional, em particular carregado de ódio, era é que gerava mais adesão e multiplicação de mensagens, e, portanto, mais interesse publicitário, os algoritmos foram instruídos a reforçar as polarizações.
Ainda que Trump, Bolsonaro e outros líderes utilizassem empresas como a Cambridge Analytica e outras empresas de difusão direcionada por algoritmos, a realidade é que, no quadro da política de maximização de atenção das próprias plataformas, as pessoas eram levadas à polarização e a reações fanáticas, de tanto ver os seus preconceitos reproduzidos e compartilhados. As plataformas geraram na realidade um sistema de seleção negativa. Uma pesquisa de 300 milhões de comentários descobriu “como tratar pessoas e fatos em termos moral-emotivos aguçados traz à tona os instintos de aversão e violência no público – que é afinal de contas, exatamente o que as plataformas sociais fazem, em uma escala de bilhões, a cada minuto de todos os dias…Sociedades inteiras estimuladas para o conflito, a polarização e a fuga da realidade – para algo como o trumpismo.” (211)
Importante insistir no mecanismo, que fica claro nas análises e nos exemplos: para vender mais espaço publicitário, busca-se maximizar o compartilhamento, e os algoritmos são instruídos para canalizar, estimular ou abafar as mensagens de bilhões de usuários segundo este critério, com a IA ajudando a encontrar as reorientações necessárias. Como as polarizações emotivas, em particular os sentimentos de identidade grupal e de ódio tribal são poderosos motivadores, terminam por dominar as mídias sociais. Em outros termos, a deformação é embutida, e inteligentemente construída pelo próprio critério de maximização, guiado por sua vez pelo interesse geral de maximização de retorno financeiro. “Em linhas gerais, é algo inconsciente, quase animalista, e por isso facilmente manipulado por líderes oportunistas ou por algoritmos em busca de lucro.” Provavelmente ambos. (243)
Boa parte da força do livro resulta do fato de ser recente: nos últimos anos, universidades e centro de pesquisa de vários países realizaram estudos quantitativos e qualitativas, que são aqui sintetizadas. Temos realmente agora um dimensionamento do impacto frequentemente catastrófico, em particular no caso do Youtube, que inflamou ódios e conflitos raciais em diversas partes do mundo. “O feito dos sistemas do YouTube de conseguir analisar e organizar bilhões de horas de vídeo em tempo real, depois direcionar bilhões de usuários pela rede, com esse nível de precisão e consistência, era incrível para a tecnologia e demonstrava a sofisticação e a potência do algoritmo.”(272) O YouTube, comenta um pesquisador, “havia criado uma nova identidade coletiva”.
Fisher dedica capítulos a Myanmar, onde o ódio entre comunidades de religiões diferentes levou a massacres de minorias, mas também no Sri Lanka, apresenta o caso dos Estados Unidos, do Brasil (capítulo 11), da Índia, da Alemanha e outras regiões europeias com subida do fascismo ou de movimentos neonazistas. De repente, frustrados ideológicos encontram não só caminhos para falar para o mundo, mas algoritmos que potencializam os seus discursos de forma desproporcional. Em dezembro 2022, o Facebook informava ter 2,96 bilhões de usuários mensais.
É importante notar, e isso aparece em numerosas partes do livro, a que ponto as deformações continuam sem enfrentamento, sem regulação, apesar de muitas denúncias, e evidências claras do papel nefasto para o convívio social. Deixem-me lembrar que estive na Tunísia nos momentos da Primavera Árabe, e jovens me explicavam como as mídias sociais os haviam ajudado a se articularem online. Alguns anos depois, essas mesmas pessoas lamentavam a inversão de valores que essas mídias haviam gerado. Continuamos no limbo. Inteligência artificial manipulada por estupidez natural.
Veja em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/assim-as-redes-sociais-sitiam-o-espaco-publico/
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