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Culinária quilombola: ancestralidade no prato

Da troca de saberes de cozinheiras e cozinheiros de comunidades do Vale do Ribeira, surgiu livreto que reúne suas receitas tradicionais. A obra busca guardar e transmitir os conhecimentos dessas populações. Sortearemos dois exemplares

Por: Raíssa Araújo Pacheco

Os quilombos resguardam uma parte essencial da história do Brasil: das heroínas e heróis que lutaram pela liberdade aos saberes da terra e do viver em comunhão.

Porém, hoje vamos falar de outros saberes que por lá residem: os gastronômicos. Há pesquisadores que consideram os quilombos como verdadeiros patrimônios gastronômicos e realmente eles o são.

Curau de milho verde, café de milho, paçoca de amendoim, biju e bolo de mandioca, bolo de mandioca com coco, paçoca de carne-seca, caponata de umbigo de banana, bolinho de chuva de banana, farofa de taioba…

Essas receitas, além de deliciosas, diversas e muito saudáveis, vêm da troca de conhecimentos quilombolas ao longo de muitos anos. Ademais, são algumas das receitas que compõem o livreto Quilombo na cozinha – receitas tradicionais quilombolas.

Financiado pelo Programa de Incentivo à Cultura do Estado de São Paulo, o caderno de receitas surgiu em meados de 2017, graças ao encontro de cozinheiras e cozinheiros de várias comunidades quilombolas que viram nesse registro uma oportunidade de restaurar, guardar, desenvolver e transmitir seus saberes entre outras regiões, culturas e, principalmente, entre os mais jovens.

É o que conta Maurício Pupo, liderança do Quilombo André Lopes, no município de Eldorado: “O livro de receitas é bom pra restaurar a nossa cultura e ajudar a desenvolver várias receitas da nossa comunidade […] hoje temos várias moças e rapazes que talvez não consigam cozinhar como nossos antepassados”.

Composta por 51 páginas, divididas entre apresentações, receitas, glossário para os termos quilombolas utilizados, ficha técnica e agradecimentos, a obra também é recheada de ilustrações feitas pelas crianças dos quilombos, compondo um registro singelo, colorido e divertido. Além do mais, as receitas são estruturadas de maneira muito simples – e muitas são realmente bem simples.

A alimentação quilombola é conhecida e valorizada por sua diversidade de alimentos e composições, algo que difere do imaginário de que essas comunidades viveriam em uma “miséria alimentar”. Pelo contrário, a produção é ecologicamente correta, mantendo a biodiversidade local, por conta disso, é possível manter uma alimentação extremamente saudável e resistir à monocultura empreendida pelo agronegócio.

As cozinheiras e os cozinheiros que participaram da produção do livreto vêm dos quilombos André Lopes, Ivaporunduva, Mandira e Sapatu, todos da região do Vale do Ribeira, ao sul do estado de São Paulo e norte do Paraná; sendo essa, a maior área contínua de remanescentes de Mata Atlântica do país, atravessada pelo rio Ribeira do Iguape e abraçada por restingas e manguezais.

A região é composta por 31 municípios, dos quais 22 são paulistas e 9 paranaenses. Muitas comunidades que ali vivem são remanescentes de quilombos e a história de algumas pode ser lida aqui. De acordo com a Fiocruz, “a maioria das comunidades quilombolas de São Paulo está concentrada na região”.

No entanto, também residem no vale comunidades caiçaras, indígenas Guarani, pescadores tradicionais e pequenos produtores rurais. Porém, mesmo que nutra grande riqueza ecológica e sociocultural, infelizmente, a região é uma das mais pobres do estado de São Paulo, sofrendo inúmeras dificuldades. Problemas no acesso à saúde e a impossibilidade de fazer roça e criar animais para a subsistência, devido a restrições ambientais e indefinição na titulação do território, fazem parte do cotidiano de algumas comunidades. Outros problemas enfrentados são os constantes ataques violentos, ameaças e discriminação por parte de grileiros, principalmente no período do antigo governo.

A economia de cada comunidade é baseada em diferentes fontes, sendo algumas delas: cultivo sustentável de arroz, feijão, pupunha, banana, mandioca, milho, feijão, verduras e legumes, alguns apenas para consumo próprio e outros para comercialização. A pesca, manejo de ostras e também a apicultura figuram entre outras formas de sustento.

Além desses, outros meios de sustento são o turismo e atividades como artesanato de cipó, bijuteria com sementes nativas, confecção de bolsas, camisetas, macacão para apicultura, chaveiros, bonecas e enfeites de pano – Lembrando que citei as fontes de sustento sem fazer distinção entres os quilombos, mas como já foi dito, cada comunidade tem suas particularidades, para conhecer melhor cada uma, visite o site.

Outro fato interessante sobre essas comunidades é seu banco de sementes tradicionais. Através da coleta de sementes, as famílias quilombolas têm restaurado a floresta, reconectando-as às matas e a seu território. Tal restauração da flora local, além de preservar, também tem se tornado fonte de renda. Tendo isso em vista, não é de se espantar que os quilombolas, principalmente dessa região, sejam considerados guardiães da biodiversidade local e representantes da diversidade sociocultural de nosso país.

Os quilombos são lugares de ancestralidade e poder pungentes. Também conhecidos como mocambos, esses territórios surgiram no Brasil durante o período colonial e foram construídos por africanos escravizados e seus descendentes, mas também por indígenas e brancos pobres. Nesses espaços de resistência, o uso da terra e dos recursos naturais é comum. De acordo com resultados do Censo Demográfico de 2022, a população quilombola residente no Brasil é de 1.327.802 pessoas (Comissão Pró-Índio de São Paulo). A Constituição de 1988 garante o direito à propriedade de seus territórios, no entanto, hoje esse direito sofre constantes ataques e ameaças.

Essas comunidades, como sempre, e muitas vezes sem ajudas externas e de instituições, persistem na luta por sua preservação. Porém, fazem parte do passado e do presente de nosso país, portanto, somos todos responsáveis por seu cuidado. Não só por isso, mas também pelos conhecimentos quanto ao cultivo sustentável da terra, a proteção de faunas e floras e seus saberes em geral. O caderno de receitas tem o intuito de garantir o mínimo de condições na salvaguarda e transmissão desses saberes, mas sabemos que não se vive só do mínimo e muito mais pode ser feito.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/blog/culinaria-quilombola-ancestralidade-no-prato/

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