O trabalho do pensador brasileiro merece uma leitura a contrapelo. Não teria sua busca obstinada por sínteses generalizantes e abstratas afastado a antropologia de um verdadeiro diálogo com os povos indígenas, inclusive com sua realidade política?
Por: Alcida Rita Ramos, na coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) | Créditos da foto: AFRodrigues/Agência Pública
Este texto foi publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) com o título “A Política do Perspectivismo”, tendo sido originalmente publicado em inglês no Annual Review of Anthropology, em 2012. Ele é parte de uma série de dez textos da antropóloga Alcida Rita Ramos (UnB) selecionados e publicados no Blog, sob a curadoria dos sociólogos André Botelho (UFRJ) e Maurício Hoelz (UFRRJ).
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Menino yanomani sopra alucinógeno nas narinas de seu pai xamã, 1973
Perspectivismo em perspectiva
A palavra perspectiva tem sofrido um inusitado inchaço desde que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro começou a aplicá-la para designar uma nova versão do estruturalismo lévi-straussiano (Turner, 2009). Ao analisar um vastíssimo material etnográfico da Amazônia e de outras regiões, concluiu que a filosofia ameríndia – ou ontologia, como prefere – sobre natureza e cultura inverte o modelo ocidental. Assim, para os indígenas amazônicos, a natureza variaria, enquanto a cultura permaneceria constante. Como corolário, humanos e não humanos (principalmente animais de caça) partilhariam da mesma constituição ontológica e o que mudaria seria o seu ponto de vista, a sua perspectiva específica. Viveiros de Castro dá a essa dicotomia o nome de multinaturalismo ameríndio em oposição ao “multiculturalismo” ocidental. “Uma ‘única’ cultura”, múltiplas “naturezas”, afirma (Viveiros de Castro, 1998, p. 478) e reitera (Viveiros de Castro, 2004, p. 6). Essas naturezas variadas seriam, literalmente, parte integrante do corpo, noção que elabora com afinco numa pletora de artigos sobre o assunto (Viveiros de Castro, 1998, 2002, 2004, 2011). A cada nova publicação, sua imaginação generalizante afasta-se um pouco mais da concretude da vida real indígena. O estruturalismo é sua inspiração e ponto de partida, enquanto sua motivação e retórica emulam uma certa faceta da metafísica ocidental. O presente texto examina o perspectivismo, apontando suas contribuições e suas deficiências.
Indígenas amazônicos de volta ao palco
Nas últimas duas décadas, o perspectivismo dominou um certo tipo de etnografia no Brasil e no exterior, influenciou um número crescente de profissionais e estudantes e projetou a antropologia brasileira para além de suas fronteiras nacionais. Em flagrante contraste com a também influente abordagem da fricção interétnica proposta por Cardoso de Oliveira nas décadas de 1960 e 1970 (Cardoso de Oliveira, 1960, 1964, 1968, 1972, 1976), o perspectivismo ignora a realidade política do conflito interétnico e concentra-se nos princípios da ontologia e da cosmologia internos às culturas indígenas, tendo produzido uma pletora de textos etnográficos.
Uma característica comum dos trabalhos inspirados no perspectivismo é a uniformidade dos resultados etnográficos. A maioria concentra-se em cosmologia, xamanismo, categorias de alteridade, escatologia, mitologia e sistemas simbólicos associados. Essa semelhança reforça a aspiração de que o perspectivismo seria o caminho analítico mais apropriado para a Amazônia indígena que, por sua vez, gera uma retroalimentação que orienta novos projetos de pesquisa a seguir o mesmo caminho e assim sucessivamente. Independentemente de onde estejam na Amazônia, de sua afiliação linguística e dos caminhos históricos trilhados, os indígenas retratados pela lente do perspectivismo diferem muito pouco entre si. Talvez a generalidade excessiva do modelo e o seu caráter prêt-à-porter o tornem facilmente aplicável, mesmo quando não é apropriado. Lamentavelmente, tornou-se uma receita fácil para produzir cópias sem o talento do original. O conforto heurístico do perspectivismo facilita sua disseminação e capacidade de viajar sem limites. Como o estruturalismo, ele deixa de fora um resíduo sociocultural tão grande que o produto final levanta suspeitas sobre tamanha homogeneidade etnográfica na Amazônia e alhures. Criatividade e especificidade, características de cada grupo indígena, são, assim, afogadas no ramerrão que Kuhn (1970) chamou de ciência normal. Meu objetivo aqui é delinear o perspectivismo em termos de seu perfil analítico, metodológico e político.
Perspectivismo num vazio político
Basta passar uns dois ou três meses numa aldeia indígena para qualquer etnógrafo atento perceber que a “descoberta” de Viveiros de Castro sobre a interação animal-humano é um fato corriqueiro, independentemente do foco da pesquisa de campo. No entanto, isso não nos habilita a afirmar que, para os indígenas em geral, a cultura é constante e a natureza é variável. Em primeiro lugar, porque não há “indígenas em geral”; em segundo lugar, porque a própria noção de natureza, como usamos a palavra, seja ela una ou múltipla, é estranha aos povos indígenas; em terceiro lugar, porque atribuir tanta uniformidade ao pensamento nativo – pensamento ameríndio, mente ameríndia, alma ameríndia e até Bildung ameríndio são termos favoritos (Viveiros de Castro, 1998: 470, 476, 478, 481, 482; 2004: 6, 19; 2011: 3) – é achatar, se não mesmo negar, sua criatividade e sofisticação estética e ignorar trajetórias históricas específicas; e, em quarto lugar, porque comprimir a imaginação etnográfica num molde rígido é tirar da antropologia o seu melhor trunfo, a saber, expor o leviano West à riqueza intelectual do Rest. A novidade da proposta analítica de Viveiros Castro está na sua retórica filosófica, mais apropriada para compor generalizações do que buscar compreender mundos semânticos específicos, característica que ele mesmo admite: “meu forte (ou meu fraco) sempre foi a síntese, a generalização e a comparação antes que a análise fenomenológica fina de materiais etnográficos” (Viveiros de Castro, 2011: 3). Infelizmente, acabou resvalando para o reducionismo, a hipersimplificação e a hiperinterpretação. Para uma mente treinada no ocidente, romper com dicotomias profundamente enraizadas exige muito mais esforço do que simplesmente inverter os termos de uma equação. De fato, o perspectivismo replica o estruturalismo (Turner, 2009), mas sem a ambição de alcançar uma estrutura universal da mente humana.
Como na era estruturalista, a enorme diversidade indígena corre o risco de ser comprimida em fórmulas e princípios de uma filosofia estrangeira. Por esse motivo e pelo automatismo com que tem sido aplicado, o perspectivismo, que começou como uma ideia brilhante, arrisca criar uma nova espécie etnográfica: um ameríndio genérico em perpétua troca de substâncias e posições com animais numa orgia cosmológica de predação e canibalismo. Sejam quais forem as suas consequências teóricas, o modelo etnográfico perspectivista deixou sua marca na antropologia brasileira e se tornou um ponto de referência na etnologia internacional.
Embora o perspectivismo seja indiferente às considerações políticas sobre a situação dos povos indígenas em contextos interétnicos adversos, ele mesmo pode ser objeto de análise política. Se concordarmos com Austin (1975) que as palavras podem moldar o comportamento e, portanto, a realidade, percebemos que o vocabulário perspectivista tem o inquietante potencial de aumentar as dificuldades políticas e fragilidade intelectual indígenas. Para ilustrar, vejamos alguns termos corriqueiros na antropologia que aparecem em discursos perspectivistas sem crítica.
Cosmologia, por exemplo, um conceito que é claro no dicionário, mas problemático na linguagem corrente. Enquanto estudo do cosmos, sua integridade científica se mantém, mas o seu uso antropológico mais recente como cosmovisão abriu uma brecha desnecessária entre a ciência indígena e a ocidental. Uma teoria do conhecimento como Evans-Pritchard (1937) elaborou sobre a bruxaria Zande merece mais o nome de epistemologia do que de cosmologia. Neste sentido, a criação e a popularidade da noção de pensée sauvage (Lévi-Strauss, 1962) contribuiu para aumentar a distância entre os sistemas de conhecimento ocidentais e os indígenas, apesar da ressalva de Lévi-Strauss de que o pensamento selvagem, silvestre e não científico, também existe no ocidente. Até mesmo no meio acadêmico, esquece-se facilmente desse apelo lévi-straussiano à “unidade psíquica da humanidade” e, muitas vezes, considera-se o pensamento selvagem como mero folclore, apanágio exclusivo dos povos nativos. Além disso, caracterizar, como fez Lévi-Strauss, a atividade intelectual indígena como uma manifestação da “ciência do concreto” contribui para reduzir o pensamento indígena a um nível infra-científico. Lembremos que Lévi-Strauss descreve a sabedoria indígena como uma miscelânea de curiosidades, possivelmente lida por leigos mais como uma coleção de crenças avulsas do que como expressões de conhecimento empírico. Com seu método corte-e-cola, pretendia mostrar que as classificações indígenas consistem numa operação intelectual que vai além de considerações meramente pragmáticas. Em última análise, porém, Lévi-Strauss não se distanciou tanto de Lévy-Brühl (1985 [1910]) quanto alegou. Ambos induziram o leitor desinformado a imaginar os mundos indígenas como girando em torno de relações místicas e míticas, favorecendo, assim, o exótico em detrimento do empírico. Em suma, a “ciência do concreto” tem muito pouco do concreto e ainda menos de ciência. Com este cânone lévi-straussiano guiando a profissão por meio século, é compreensível que os antropólogos tenham se apegado ao modelo reduzido transmitido pelo conceito de cosmologia. Como resultado, os indígenas têm cosmologia, enquanto os ocidentais têm ciência. Além disso, vista como eficiente, a proposição de Lévi-Strauss levou a crer que nos equiparia para alcançar os recantos mais recônditos dos sistemas “cosmológicos” indígenas. No perspectivismo, vocábulo que Viveiros de Castro (2004: 5) aplica a “um conjunto de ideias e práticas encontradas em toda a América indígena”, cosmologia é conceito-chave. “Essa cosmologia imagina um universo povoado por diferentes tipos de agências subjetivas, tanto humanas quanto não humanas, cada uma dotada do mesmo tipo genérico de alma, ou seja, do mesmo conjunto de capacidades cognitivas e volitivas” (Viveiros de Castro, 2004: 6). É a cosmologia como ferramenta reducionista, uma bitola conceitual que nivela todas as diferenças, triviais ou importantes, que fazem a diferença entre ser Makuna, Ye´kwana ou Yanomami.
Mito é outro termo pesado e, como qualquer outro, não é semanticamente neutro. Faz parte da linguagem corrente de antropólogos e não antropólogos. É, precisamente, porque compartilhamos a mesma linguagem com nossos leitores que os não especialistas podem ler o que escrevemos. No entanto, o fato de sermos lidos não significa que sejamos entendidos como queremos. E aí surge o problema. O significado que os antropólogos atribuem a mito tem muito pouco ou nada a ver com seu sentido popular no qual mito é, muitas vezes, sinônimo de mentira, falsidade, ou seja, o oposto do pensamento científico e lógico. O Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa reforça: “[I]nterpretação ingênua e simplificada do mundo e de sua origem”, “[u]ma pessoa ou um fato cuja existência, presente na imaginação das pessoas, não pode ser comprovada; ficção”. Alguns antropólogos podem não discordar dessas acepções, mas a maioria dos etnógrafos as rejeitaria ao ouvir os indígenas contar suas narrativas fascinantes que, inadvertidamente, podem chamar de mitos, quando têm que traduzir seus próprios conceitos para a língua do observador. Para fazer justiça à profundidade filosófica dessas narrativas, seria mais apropriado abandonar o termo mito, já que ele ocupa um nicho da percepção ocidental que não corresponde às narrativas indígenas mal rotuladas como mitos.[2]
Se termos como cosmologia e mito têm o potencial de reduzir o valor intelectual do pensamento indígena, o que dizer de canibalismo, um dos temas favoritos dos perspectivistas? “[A] onipresença do canibalismo [é] o horizonte ‘predicativo’ de todas as relações com o outro, sejam elas matrimoniais, alimentares ou belicosas” (Viveiros de Castro, 1998: 480). Adicionando mais problemas ao termo, o dicionário Michaelis online completa: “Diz-se de ou indivíduo bárbaro, cruel”!
Companheiro do canibalismo, o conceito de predação também é onipresente no léxico perspectivista. Combinados, canibalismo-cum-predação são o veículo de interação entre humanos e não humanos, sejam estes animais ou espíritos. Se tais termos fazem ou não sentido no ambiente fechado dos debates acadêmicos é uma questão de frustração ou gratificação intelectual. No entanto, como já disse, nossos escritos antropológicos podem, potencial ou efetivamente, chegar ao mundo real e, quando isso acontece, as palavras que usamos estão à disposição de todos. Como esperar que o leitor não especialista em etnografia das “terras baixas da América do Sul” leve em conta que se trata de fala erudita e seja capaz de, ou esteja disposto a converter palavras como predação e canibalismo em metáforas, em vez de proceder naturalmente à moda leiga, tomando-as de maneira literal e depois, citando os especialistas, classificar os indígenas de predadores selvagens? Seria razoável imaginar que a eloquência antropológica tem o poder de convencer os leigos a descartar a sobrecarga de arquétipos que surgiram ao longo dos séculos sobre os brutos comedores de gente, beligerantes primitivos e pagãos malditos (Ramos, 1998)?
A pouca humildade e autocrítica, embora muitas vezes inconsciente, pode limitar os antropólogos de várias maneiras. Por um lado, enfrentar o desafio indígena cada vez mais evidente em relação à nossa capacidade de interpretar seus mundos pode ser penoso, pois a falta de autocrítica expõe dolorosamente nossas limitações analíticas. Há muitos cenários etnográficos em que os indígenas desconfiam abertamente do trabalho dos antropólogos, o que não surpreende, sabendo que aqueles com ambições teóricas sobressaem por usar preceitos locais pelo mundo afora como matéria-prima para construir grandiosos esquemas descritivos ou explicativos. Cada teoria advinda do trabalho de campo entre povos indígenas transformou o material de pesquisa em algo distinto da soma de suas partes originais, relegando, assim, o profundo conhecimento nativo ao anonimato de “dados etnográficos”.
Em diferentes momentos, antropólogos críticos vergastaram a disciplina por privar os povos estudados de certas prerrogativas ocidentais. Fabian (1983) criticou-a por lhes negar coetaneidade. Talvez inconscientemente (o que não é uma desculpa, muito pelo contrário), os antropólogos costumam escrever sobre seus anfitriões no tempo passado, como se vivessem suspensos num intervalo de tempo fixo e imutável, geralmente limitado à permanência do etnógrafo entre eles. Ao fazê-lo, antropólogos consignam esses “nativos” ao passado, privando-os, assim, de historicidade e participação em eventos presentes. Lembremo-nos também de Goody (2007) que recriminou o Ocidente por roubar a história de outros povos. Quando historiadores, talvez distraídos, ignoram realizações originadas em outros contextos, eles contribuem para o engrandecimento bastardo do Ocidente. Talvez sem querer, a antropologia acadêmica, ela mesma um artefato ocidental, tem participado desse roubo de histórias, embora a sua responsabilidade maior esteja em roubar teorias nativas.
Correndo riscos
Os perspectivistas afirmam que é importante “levar os índios a sério” (Viveiros de Castro, 2002: 129; 2011: 5), tarefa um tanto surpreendente, considerando que todo antropólogo que se preza deveria tomar essa máxima como dada, condição sine qua non para o trabalho de campo e para a análise subsequente. No entanto, espanta-nos a frequência com que esse truísmo é esquecido, a começar pelo próprio Viveiros de Castro. Uma citação extraída de Lévi-Strauss (1976) e repetida ad nauseam serve de base para essa descoberta e acabou tornando-se um ícone do perspectivismo. Trata-se de um episódio do século XVI em que os nativos afogavam os brancos para ver se os seus corpos eram reais e capazes de se decompor, enquanto os espanhóis questionavam se os índios tinham alma (Viveiros de Castro, 2004: 8). Esse conto excitou sua imaginação de tal maneira que o levou a afirmar que ele “encapsula a situação ou evento antropológico por excelência, expressando a quintessência do que é a nossa disciplina”!? (Viveiros de Castro, 2004: 10). Destacar passagens etnográficas tiradas de contextos geralmente muito complexos é o que permite chegar à cobiçada elegância de análise, pois, ao justapor trechos pré-selecionados, o autor aponta-os na direção que previamente escolheu.
Elegância, contudo, pode seduzir como o canto da sereia. Por mais atraente que seja, seu próprio encanto pode revelar suas deficiências. Viveiros de Castro evoca o sucesso que Sahlins alcançou com sua elegante análise sobre o erro fatal do Capitão Cook no Havaí ao se iludir com o sucesso anterior personificando o deus Lono. Foi preciso que uma intelectual nativa do Havaí expusesse o elegante equívoco de Sahlins. A cientista política havaiana Noenoe Silva (2004) descreve o trabalho de missionários estadunidenses no Havaí no século XIX. Para traduzir a bíblia, esses missionários abriram escolas e gráficas. Rapidamente, os nativos aprenderam a usá-las e começaram a escrever copiosamente sobre sua própria história, literatura, visão de mundo etc. Publicados na língua nativa, esses documentos foram lidos pelos missionários que os entenderam superficialmente, dado o extenso uso de figuras de linguagem dirigidas apenas a leitores havaianos. Esses escritos serviram como ferramentas políticas nas lutas dos havaianos contra a anexação do arquipélago pelos Estados Unidos. Registraram grande número de narrativas sobre o surgimento e a manutenção da integridade étnica havaiana. Contêm um longo inventário das divindades locais, das quais Lono é apenas uma, e um catálogo de exploradores europeus, dos quais o Capitão Cook foi apenas um. Tivesse Sahlins lido essa literatura e explorado a história escrita na língua havaiana, muito provavelmente, suas análises (1981, 1985) não teriam a elegância enxuta e brilhante que as caracteriza. Mais comum do que se pensa, a complexidade cultural se interpõe no caminho de análises que seguem os critérios de economia, parcimônia e elegância, como reza a linguística canônica. A discrepância entre análises elegantes e as complexidades da vida é um velho hábito antropológico difícil de eliminar.
Aparentemente alheio a tais críticas, Viveiros de Castro (2004: 10), ao traçar um paralelo com a sua própria interpretação sobre corpos e espíritos, cai na tentação estética de Sahlins. Enquanto este usou documentos europeus como material de pesquisa, ele pinçou fragmentos empíricos de etnografias escritas ou comunicações pessoais para compilar interpretações grandiosas sobre almas, mentes e “naturezas” indígenas (Viveiros de Castro, 2002: 132-40). “Como a alma é formalmente idêntica em todas as espécies, só pode ver as mesmas coisas em qualquer lugar – a diferença está na especificidade dos corpos” (Viveiros de Castro 1998: 478). Tais interpretações excedem o bom senso etnográfico (Turner, 2009) ou não têm sentido em contextos locais. É claramente uma síndrome do que Eco (1992) critica como sobreinterpretação. Por exemplo, Eco mostra a futilidade de achar sinais de ocultismo em trabalhos como A divina comédia, de Dante, porque, mesmo que os haja – e, dado o tamanho e a profundidade da obra, possivelmente os há – contribuirão pouco ou nada para o entendimento do texto e do propósito do autor. Em suma, seria um exercício tão ocioso como procurar pelo em casca de ovo.
Um ponto alto do trabalho de Viveiros de Castro (2004) é a sua reflexão sobre equívocos controlados. Semelhante à noção de compatibilidades equívocas de Pina Cabral (2002) e à ideia corrente de mal-entendido produtivo, equivocação controlada é, essa sim, a quintessência do fazer etnográfico. Se a comunicação entre falantes da mesma língua pode gerar mal-entendidos consideráveis, o que dizer da interação entre pessoas de mundos sociais distintos que falam línguas muito distantes? Fazer etnografia é traduzir e, como Viveiros de Castro (2004: 10) corretamente aponta, “traduzir é presumir que alguma equivocação sempre vai existir; é comunicar por meio de diferenças, em vez de silenciar o Outro presumindo univocidade… entre o que o Outro e nós dizemos”. Ratifico plenamente essa afirmação: a criação de imagens gira em torno disso; a equidade transcultural depende disso; a interação intercultural só é possível se as partes envolvidas tiverem consciência disso. Os doze casos explorados no volume Pacificando o branco (Albert & Ramos, 2000) são exemplos de esforços indígenas para controlar os equívocos gerados em seus encontros com não indígenas. Cada caso revela representações do contato interétnico, “verdadeiros dispositivos não apenas de representação, mas de domesticação simbólica e ritual da alteridade dos brancos e neutralização dos seus poderes nefastos” (Albert, 2000: 10).
Se a desejada compreensão da totalidade de uma cultura fica aquém da transparência plena, o que dizer de um método baseado em recortes colados uns aos outros, comum em trabalhos Lévi-Strauss, Viveiros de Castro e tantos outros?
Os limites da generalização
Afirmar a universalidade do multinaturalismo no mundo indígena não tem muito fundamento antropológico. O que a onça de um povo percebe não é o que as onças de todos os povos percebem, para não falar na percepção das próprias onças! A cada novo texto, Viveiros de Castro sobe mais um degrau de declarações extravagantes, cada vez mais hedonistas, beirando a irreverência, como nesta frase: “um modelo que poderíamos rotular de ‘quase-ergativo’ (ou quem sabe de ‘ergatividade cindida’, se eu soubesse exatamente o que é isso…)” (Viveiros de Castro, 2011: 4). A facilidade com que chega a generalizações exorbitantes feitas em nome de uma “cosmologia perspectivista ameríndia” (Viveiros de Castro, 2004: 11) consegue chocar antropólogos experientes e familiarizados com a Amazônia indígena. Entusiasmado com a própria eloquência, Viveiros de Castro toma liberdades indevidas com a etnografia indígena, como: “o pensamento ameríndio pode ser descrito como uma ontologia política do sensível, um pampsiquismo materialista radical” que concebe “um universo denso, saturado de intencionalidades ávidas de diferença” no qual todas as relações são sociais. Estas relações “são esquematizadas por uma imagística oral-canibal, uma tópica obsessivamente trófica que declina todos os casos e vozes concebíveis do verbo comer: dize-me como, com quem, e o que comes (e o que come o que comes), e por quem és comido, e a quem dás comida (e por quem te absténs de comer), e assim por diante – e te direi quem és. É pela boca que se predica” (Viveiros de Castro, 2011: 3; ênfase no original). Apesar das numerosas análises do uso ritual do corpo humano (Seeger, 1975; Turner, 2007), Viveiros de Castro aventura-se com tiradas mirabolantes como essas. Num vasto gesto exibicionista, tradições indígenas inteiras, como a superior arte da oratória, diálogos cerimoniais, sessões xamânicas, cantos e cânticos rituais e outras fortes expressões verbais, meticulosamente construídas e diversificadas através de incontáveis gerações, são reduzidas a uma boca aberta, um glutão Pantagruel!
Resta-nos perguntar sobre o mérito de grandes teorias que o perspectivismo almeja exemplificar. Embora tenha inspirado jovens antropólogos, essa abordagem traz uma série de riscos. Primeiro, está sujeita a interpretações vulgares, convidando a excessos interpretativos. Segundo, é facilmente aplicável, levando a uma improvável uniformidade de resultados, muitas vezes, beirando um inquietante dogma. Terceiro e principal, ao reduzir a complexidade etnográfica a um único modelo, praticamente, se recusa a reconhecer a criatividade indígena. Além disso, um modelo tão reduzido, por mais interessante que pareça aos perspectivistas, não o é aos indígenas. Ao abdicar do papel primordial da pesquisa etnográfica como o meio mais eficiente de se entender e respeitar profundamente os povos indígenas, o perspectivismo desestimula os etnógrafos a usarem sua imaginação antropológica para novas descobertas. Além disso, o perspectivismo é, na melhor das hipóteses, indiferente a questões históricas e políticas da vida indígena no mundo moderno. Podemos dizer que quanto mais extenso e profundo for o nosso conhecimento etnográfico, menos arrogantes nos tornamos e mais claramente percebemos o quão insensato é projetar nossas ambições teóricas sobre os povos indígenas. É com uma ponta de nostalgia que retornamos ao excelente texto de Viveiros de Castro, “O mármore e a murta” (1992), fina análise do trabalho missionário no Brasil do século XVI, e ao seu artigo em Annual Review of Anthropology (1996) sobre imagens da natureza e da sociedade nos estudos indígenas na Amazônia.
Como proposição filosófica, é uma abordagem bem-vinda, dada a tendência antropológica de ignorá-la. Não obstante, a retórica pretensiosa e as generalizações exacerbadas destoam das etnografias escolhidas como base para se construir uma antropologia “simétrica”. Afinal, é justamente, o produto das pesquisas etnográficas que enseja mudanças teóricas e novos padrões antropológicos, como demonstram certos textos clássicos. A grande maioria dos produtos perspectivistas ainda não demonstrou de forma convincente que se encaminham para uma antropologia “trans-epistêmica”, no sentido de tratar como iguais os sistemas indígenas de conhecimento (Ramos, 2010). Parece haver uma vacilação entre propostas teóricas e resultados empíricos, o que revela a distância entre o postulado filosófico do perspectivismo e sua prática etnográfica. Afinal, as teorias culturais são ferramentas para entender culturas reais. Por que não ouvir os indígenas diretamente, em primeira mão?
Ao que parece, muitas ideias geradas nos gabinetes universitários não viajam bem para os campos de pesquisa. Apesar de bravos esforços intelectuais, ainda vemos a velha divisão de trabalho etnográfico entre aqueles que conhecem (os etnógrafos) e aqueles que se deixam conhecer (os nativos). É um assunto por demais complexo para ser resolvido apenas com aspirações teóricas. Intelectuais indígenas do Brasil começam a seguir os passos de seus colegas ao redor do mundo (Alfred, 2009; Churchill, 1997; Deloria Jr., 1988[1969]; Díaz, 2007; Fixico, 2003, Kowii, 2007; Mamani Ramirez, 2005; Mihelsuan & Wilson, 2004; Sampaio, 2010; Sioui, 1992; Smith, 1999 e muitos outros). Um novo cenário político traz novos desafios para a antropologia. Um deles é a rebelião indígena contra a hegemonia acadêmica nas pesquisas etnográficas. O antropólogo Gersem Luciano, Baniwa da região do Uaupés no noroeste amazônico, escreve que agora, “em vez de um sujeito branco estudando sujeitos indígenas…, sujeitos indígenas estudam a si mesmos como agentes que pensam e produzem conhecimento”. Luciano vai mais longe: “e em breve haverá sujeitos indígenas estudando sujeitos brancos, incluindo antropólogos” (Luciano, 2011: 105).
Autoetnografias como as que Luciano propõe, de fato, deveriam ser vistas como o ápice do esforço político de gerações de antropólogos brasileiros que acreditam que o trabalho acadêmico e o engajamento político devem se dar as mãos (Ramos,1990). Já é tempo de avaliar o desengajamento como o mais completo resultado do engajamento, conforme os povos indígenas vão ocupando espaços políticos e acadêmicos.
Se o perspectivismo for uma antropologia indígena, ela o é apenas como ersatz, através dos escritos dos etnógrafos. Esse tipo de ventriloquismo, talvez um componente inevitável numa construção teórica, garante que a voz que ouvimos não é indígena e sim uma verbalização estrangeira, um nativo de imitação, uma espécie de índio hiper-real (Ramos, 1994), muito mais fácil de absorver do que o nativo real. Mais apropriado ao novo contexto brasileiro em que a educação superior indígena está em franca expansão, seria extinguir o ventríloquo e abrir caminho aos próprios índios, reduzindo, assim, a intermediação e transformando a m
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