Ao examinar a fundo as novas tecnologias, Evgeny Morozov sugere: o capitalismo as quer como reforço brutal de sua lógica; mas falta à esquerda enxergar quanto elas podem projetar um mundo construído a partir da colaboração e do Comum
Por: Evgeny Morozov | Em Entrevista a: Simão Vázquez, na Jacobin América Latina | Créditos da foto: publicada no site da CENITAL
Evgeny Morozov é um notável intelectual ítalo-bielorrusso que passou mais de uma década estudando as transformações desencadeadas pela Internet. Tornou-se famoso com livros como To Save Everything, Click Here: the Folly of Technological Solutionism, embora logo se tenha voltado para posições mais centradas na interconexão da tecnologia com a economia política e a geopolítica em seus artigos na New Left Review e no Le Mundo Diplomatique.
Doutor em História da Ciência pela Universidade de Harvard e fundador da plataforma de curadoria de conhecimento The Syllabus, seu trabalho mais recente é The Santiago Boys , um podcast de nove episódios que rememora a experiência dos engenheiros radicais de Salvador Allende para alcançar a soberania tecnológica, o desenvolvimento do Projeto Synco e a luta do Chile contra a ITT, a grande multinacional tecnológica da época.
Apresentou-se em conferências no Brasil, Chile e Argentina nas últimas semanas, encerrando sua turnê em Nova York, em evento conjunto com a Jacobin. Morozov conversou com Simón Vázquez, editor do Verso Libros, sobre como pensar o desenvolvimento tecnológico a partir do socialismo, as complexidades do planejamento econômico, a gestão cibernética e as experiências alternativas do passado que devem ser recuperadas para conceber projetos de desenvolvimento alternativos para o nosso presente.
Em diversas entrevistas você afirmou que é necessário envolver os trabalhadores nas decisões sobre o desenvolvimento tecnológico em vez de apostar numa solução tecnocrática. Você poderia explicar quais são os problemas em impor visões técnicas que não têm apoio popular?
No caso da economia digital contemporânea, a solução tecnocrática geralmente vem das fileiras da direita (ou do centro) neoliberal e insiste na necessidade de garantir que as plataformas facilitem os processos de concorrência no mercado e que os consumidores possam circular livremente de uma plataforma para outra.
Tradicionalmente, estes tipos de soluções têm ocorrido com mais frequência na Europa do que nos Estados Unidos, em parte devido a questões ideológicas (sob a influência da Escola de Chicago, os estadunidenses têm sido bastante tolerantes na aplicação das suas próprias regras antitrustes) e em parte por razões geopolíticas (Washington não quer regulamentar excessivamente as suas próprias empresas, temendo que o seu lugar possa ser ocupado pelos seus homólogos chineses).
Portanto, é a Europa que pensa que pode resolver os problemas da economia digital através de uma maior regulamentação. É claro que parte dessa agenda pode ser útil e necessária, mas penso que esta abordagem tecnocrática tem sido muitas vezes sustentada por uma certa cegueira em relação à geopolítica e à estratégia industrial e, até mesmo, à crise da democracia que podemos ver em todo o mundo. É bom que os tecnocratas neoliberais continuem fingindo uma cegueira, mas seria um grande erro se as forças progressistas e aqueles que defendem soluções democráticas se juntassem a tais apelos.
Os problemas da economia digital não serão resolvidos apenas com regulação, entre outras coisas porque a economia digital, tanto nas suas versões chinesa como estadunidense, não foi criada apenas através da regulação, mas através da robusta intervenção do Estado.
No campo da esquerda, e mais especificamente dentro do socialismo, há um debate sobre o planejamento e a tecnologia que nos últimos anos deu origem ao surgimento de uma corrente conhecida como cibercomunismo. Você se identifica com ela? Que críticas você apontaria?
A minha principal crítica a este projeto é que ele é, ao mesmo tempo, muito restrito e muito amplo nas suas ambições. A meu ver, este é um esforço para implantar uma modelagem matemática e computacional para gerenciar o que Marx chamou de “reina da necessidade”. Não tenho dúvidas de que, para fornecer o conjunto de bens básicos necessários para uma vida boa – por exemplo, vestuário e alimentos, mas também habitação – tal abordagem pode ser necessária.
Mas também penso que deveríamos criticar a distinção estrita de Marx entre o reino da necessidade e o reino da liberdade: este último permanece quase sempre indefinido. No entanto, é precisamente aí que a criatividade e a inovação acontecem, enquanto o domínio da necessidade se refere sobretudo à reprodução social. A tradição do cibercomunismo, tal como Marx, deixa o reino da liberdade sem teoria e impede que se tenha uma visão clara do que os computadores podem fazer quando se trata de desbloquear estas atividades mais criativas.
Isto contrasta com o projeto defendido pelo neoliberalismo, o qual começa a rechaçar uma distinção estrita entre estas duas esferas, argumentando que o mercado é um sistema para satisfazer as nossas necessidades e exigências básicas, bem como uma infraestrutura para gerir e dominar a complexidade, ou seja, fonte de onde emana a criação do novo, o criativo, o inesperado… Se olharmos para a economia digital, vemos que esta fusão está em pleno vigor. Por exemplo, quando jogamos online também “trabalhamos”, pois geramos valor para as plataformas. E quando “trabalhamos” também brincamos, pois o trabalho se tornou algo muito diferente dos que havia na época fordista.
Até agora, a esquerda rejeitou a fusão entre estas duas esferas, limitando-se a suscitar queixas sobre a virada biopolítica do capitalismo moderno. Mas e se essa fusão que o neoliberalismo compreendeu fosse algo que a esquerda deveria abraçar? Se assim fosse, a resposta tradicional oferecida pela esquerda ao mercado neoliberal com o objetivo de criar um sistema alternativo – baseado num planejamento que aplica critérios matemáticos para organizar os recursos – não seria suficientemente ambiciosa, uma vez que evita a intervenção na esfera da liberdade.
Para colocá-lo num nível mais elevado de abstração, o neoliberalismo é como um processo civilizacional liderado pelo mercado: funde a lógica de uma sociedade cada vez mais complexa e diferente com a ideia de que o mercado é o principal instrumento para alcançá-lo. Um conceito mais apropriado para definir o neoliberalismo poderia ser “modernismo de mercado”. Penso que precisamos de algum tipo de “modernismo sem mercado” para contrariar esta civilização. O cibercomunismo conseguiu concretizar a parte “não mercantil” da equação, mas não tenho a certeza de que compreenda tanto o desafio como a necessidade de resolver a parte “modernista”.
Por que relembrar hoje a experiência do projeto Cybersyn? Qual é a função política de trazer ao presente os “e se” daqueles caminhos que poderíamos ter seguido? E que significado tem o conceito de pós-utopia neste contexto?
Bem, a razão mais óbvia para trazer a experiência do projeto Cybersyn para o presente é aumentar a consciência pública para o fato de que a economia e a sociedade digitais contemporâneas não são o resultado das tendências naturais dos protocolos da Internet, mas, antes, o resultado de lutas geopolíticas, que sempre têm vencedores e perdedores. No meu trabalho, também tentei afastar-me da definição de Cybersyn como uma infraestrutura tecnológica alternativa. De certa forma, não havia nada de único ou revolucionário na rede de telex em que se baseava. Nem no software que ele usou nem na sua Sala de Operações. Na verdade, a CIA e os serviços de inteligência alcançaram um desenvolvimento tecnológico muito mais importante nestas frentes.
A grande contribuição do projeto tem a ver com a abordagem mais profunda, a de um sistema econômico alternativo onde os computadores são utilizados para ajudar a gerir empresas do setor público. Embora seja verdade que sistemas de gestão cibernética semelhantes já existiam no setor privado há muito tempo – o próprio Stafford Beer, o cérebro por trás do Cybersyn, os implementou na indústria siderúrgica britânica uma década antes – a singularidade do projeto tem a ver com com os esforços mais amplos desenvolvidos por Salvador Allende para nacionalizar empresas consideradas estratégicas para o desenvolvimento econômico e social do Chile, todos informados por uma interessante mistura de economia estrutural (proveniente da CEPAL) e da Teoria da Dependência. O que devemos lamentar é que o golpe de Estado de 1973 tenha posto fim a esse projeto contra-hegemônico mais geral, e não apenas ao desmantelamento da Cybersyn.
É por isso que nas intervenções públicas que fiz após o lançamento do podcast eu insisto tanto na existência do que chamo de “Escola de Tecnologia de Santiago” como quadro a partir do qual desenvolveria a Escola de Economia de Chicago. Acredito que quando percebermos que Allende e muitos dos economistas e diplomatas ao seu redor tinham uma visão para criar uma ordem mundial muito diferente, o Cybersyn – como um software que ajudaria a concretizar essa visão no contexto nacional – adquire um significado muito mais importante.
Além de oferecer uma contra-história dos Chicago Boys, um dos argumentos mais interessantes que você oferece é que eles não foram os verdadeiros inovadores da época, mas sim que seu trabalho se limitou a frustrar, nas mãos do ditador Augusto Pinochet, o desenvolvimento tecnológico do Chile e uma alternativa, a dos Santiago Boys, ao incipiente modelo neoliberal. Você poderia refletir sobre sua contribuição à história intelectual do pensamento econômico?
Durante a presidência de Eduardo Frei Montalva, que precedeu Salvador Allende, e depois, claro, durante o governo do próprio líder socialista, economistas chilenos conhecidos como Chicago Boys fizeram diversas críticas. Uma delas era a natureza corrupta e rentista do Estado chileno; neste caso, o problema era que os diferentes grupos de interesse aproveitaram a sua ligação com o Estado para obter um tratamento favorável e proteger-se da concorrência.
A outra crítica foi o receituário político surgido da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e da Teoria da Dependência. Digamos que a maior parte destas políticas iam contra a ideia de que o desenvolvimento econômico deveria ser deixado nas mãos do mercado. Em vez disso, defenderam a ideia da industrialização através da substituição de importações e da necessidade de proteger a autonomia e a soberania tecnológica nacional.
Assim, alguns dos Chicago Boys viram o mandato presidencial de Allende como uma consequência e não como a causa de uma crise mais profunda na sociedade e na economia chilenas. Na realidade, eles viam os trabalhadores e camponeses que elegeram a Unidade Popular como um daqueles grupos de interesses que lutam para defender os seus interesses dentro de um sistema estatal considerado corrupto e sectário.
Quaisquer que sejam as críticas à Escola de Chicago, penso que estamos errados em apresentá-los como uma espécie de economistas perspicazes e pioneiros que intervieram para salvar o Chile, imprimindo uma forte dose de neoliberalismo. Embora a Unidade Popular tenha cometido alguns erros na gestão da economia, tinha uma visão coerente – e muito mais relevante – do que o Chile deveria fazer para ser um Estado independente, autônomo e desenvolvido na economia mundial. Alguns dirão que o Chile, apesar de todas as suas desigualdades, conseguiu isso. Não creio que ele tenha ido tão longe quanto poderia. Se tivesse seguido as receitas econômicas dos Santiago Boys, o país teria sido equivalente na América Latina ao que são hoje a Coreia do Sul ou Taiwan, países com um peso tecnológico muito maior.
Outra contribuição que você dá no podcast é resgatar a tradição da Teoria da Dependência. Na última resposta, você dá a entender que se o projeto de Allende tivesse prosperado, hoje a América Latina seria mais justa – e também rica – e o Chile, uma potência tecnológica alternativa com um modelo de desenvolvimento tecnológico diferente do Silicon Valley. Mas o que nos diz a Teoria da Dependência sobre os debates contemporâneos na economia digital?
A Teoria da Dependência foi a radicalização do estruturalismo econômico proposta pela CEPAL, que tradicionalmente defendia a importância da industrialização. Esta posição poderia ser muito diferente da dos gurus digitais de hoje, que pregam a importância da digitalização como solução para todos os problemas.
Agora, os teóricos da dependência entenderam que a industrialização não pode ser um objetivo principal em si. Para eles, o mais importante é o desenvolvimento econômico e social nacional. E, como descobriram nos seus estudos, a relação entre industrialização e desenvolvimento nem sempre é linear. Por vezes, mais industrialização (que muitas vezes funciona como um eufemismo para investimento direto estrangeiro) significa mais desenvolvimento. Mas noutros pode ser sinônimo de ausência de desenvolvimento ou mesmo de subdesenvolvimento.
Este foi um debate repleto de todo o tipo de conceitos intermediários, como “desenvolvimento associado” ou “desenvolvimento dependente”, nas palavras de Cardoso, que procurou demonstrar que os países podem continuar a desenvolver-se mesmo que a industrialização seja liderada principalmente pelo capital estrangeiro. Outros teóricos mais radicais – como Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Andre Gunder Frank – sustentaram que a autonomia tecnológica (o desenvolvimento da base material própria do país) é um pré-requisito para o tipo de industrialização que poderia levar a um desenvolvimento significativo.
Nos termos atuais, significa que a digitalização levada a cabo sem um compromisso prévio com a soberania digital provavelmente criará novas dependências e obstáculos ao desenvolvimento, especialmente agora que os países enfrentam despesas enormes de computação em nuvem, inteligência artificial, microchips, etc. É claro que as dependências não são apenas econômicas, mas também geopolíticas, o que explica por que os Estados Unidos têm estado tão determinados a bloquear os esforços da China para alcançar a soberania tecnológica nestas áreas.
Partindo dessa ideia de subversão das relações desiguais, surge a questão do planejamento industrial e do direcionamento por parte do Estado do processo de desenvolvimento. Qual foi a contribuição de Stafford Beer e dos engenheiros chilenos radicais no que diz respeito à compreensão, se não ao planejamento, pelo menos à gestão cibernética?
Beer não chegou a abordar estas questões tão relevantes para o socialismo a partir de posições mais convencionais, como a alocação e distribuição de recursos, que normalmente estariam presentes nos debates de planejamento. Pelo contrário, veio do mundo empresarial para esta agenda, para o qual era extremamente importante pensar sobre como se adaptar a um futuro em constante mudança.
Neste sentido, eu diria que as empresas tendem a ser mais humildes do que os Estados-nação: assumem o futuro tal como ele é, em vez de pensarem que podem dobrá-lo para servir os seus próprios objetivos nacionais. Uma das consequências da humildade epistêmica praticada por Beer foi a sua insistência em que, embora o mundo se estivesse se tornando ainda mais complexo, a complexidade era uma coisa boa, pelo menos enquanto tivessem as ferramentas certas para sobreviver aos seus efeitos. Foi aí que entraram em ação os computadores e redes que analisam dados em tempo real.
Essa é uma parte que ainda considero extremamente relevante para o Cybersyn, como deixei claro nos meus comentários sobre o cibercomunismo. Se aceitarmos que o mundo se tornará cada vez mais complexo, temos de desenvolver ferramentas de gestão, e não apenas ferramentas de atribuição de recursos e de planeamento. Esta humildade sobre a própria capacidade de prever o futuro e submetê-lo à nossa vontade parece-me bastante útil, entre outras coisas, porque vai contra a habitual tentação modernista de agir como um deus onisciente e onipotente.
Stafford Beer dizia em seus livros sobre projetar a liberdade; já você, de “planejar a liberdade” e governar a complexidade. Você pode explicar como essa agenda se encaixaria no que você destacou sobre a importância de falar sobre a “esfera das liberdades”?
Como já expliquei antes, a contribuição de Beer para a agenda socialista tradicional, que tem um foco estatista na satisfação das necessidades mais imediatas da população, tem sido mostrar que os computadores podem dar uma grande contribuição na área da liberdade, que eles não são apenas ferramentas para usar no âmbito da necessidade.
O pensamento de Beer fecha a porta para o tipo de atitude tecnofóbica que ainda é comum entre alguns pensadores de esquerda. Ele pensou (corretamente, na minha opinião) que ignorar a questão da tecnologia e da organização levaria a resultados indesejáveis e altamente ineficientes.
De certa forma, isto é algo que sabemos intuitivamente, e é por isso que empregamos tecnologias simples – desde semáforos a calendários – para melhorar a coordenação social e evitar o surgimento do caos. Mas e se em vez de tecnologias tão simples, utilizássemos tecnologias mais avançadas e digitais? Além disso, porque deveríamos confiar na narrativa neoliberal de que a única forma de coordenar a ação social em grande escala é através do mercado? É aí que, na minha opinião, a abordagem de Beer pode ser muito útil.
Se partirmos de uma concepção flexível e plástica dos seres humanos, ser em constante evolução e em busca do seu devir, provavelmente queremos dar-lhe as ferramentas que lhe permitam dinamizar-se, desenvolver-se e descobrir-se a si próprio, bem como aos coletivos em que se inserem, em direções e dimensões novas, completamente inesperadas e até então não testadas.
O que tem acontecido nas últimas duas décadas é que o Silicon Valley politizou esta dimensão muito antes da esquerda. É por isso que nos oferecem ferramentas como o WhatsApp e o Google Calendar, que facilitam os esforços de coordenação de milhões de pessoas com um impacto não trivial na produtividade geral. Neste caso, as tecnologias facilitam a coordenação social, a produção de maior complexidade, o que leva ao avanço da sociedade. Mas a verdade é que isto não acontece – ao contrário da narrativa neoliberal – graças ao sistema de preços, mas sim através da tecnologia e da linguagem.
Mas o modelo do Silicon Valley, como começamos a descobrir, não está isento de custos políticos e econômicos. Basta olhar para a proliferação massiva de desinformação online ou para a concentração de capacidades de inteligência artificial, que surge como consequência de todos os dados que são produzidos e recolhidos por uma série de gigantescas corporações. Assim, a complexidade neoliberal e de mercado tem um preço enorme. O que a esquerda deveria considerar são formas alternativas e não neoliberais de oferecer infraestruturas semelhantes (e ainda melhores) para promover a coordenação social.
Por que você acha que os socialistas desistiram de alguns desses conceitos? Teria a ver com a derrota intelectual do marxismo na Guerra Fria? Ou por não ter prestado muita atenção aos debates no Sul global?
Na verdade, penso que as respostas têm principalmente a ver com o impasse intelectual geral a que tanto o marxismo ocidental como as suas versões mais radicalizadas chegaram. O campo mais moderado deixou-se levar pela dicotomia imposta pelos neoliberais entre mercado e planeamento, aceitando o primeiro como uma forma superior de coordenação social, especialmente após o colapso da União Soviética. Alguém como Jürgen Habermas é um bom exemplo desta atitude, pois aceita a crescente complexidade dos sistemas sociais, mas não é capaz de propor qualquer alternativa à gestão da complexidade através do mercado ou da lei, sendo a tecnologia pouco mais do que ciência aplicada.
As correntes mais radicais – aquelas que culminaram no cibercomunismo – não se envolveram totalmente com as críticas ao planeamento soviético (e à sua incapacidade de existir no quadro da democracia liberal) que vieram do bloco soviético durante a Guerra Fria. Estou pensando em pessoas como Gyorgy Markus, que, sem renunciar ao marxismo, escreveu críticas muito profundas os equívocos dos marxistas relacionadas, para citar Engels, à “administração das coisas” sob o comunismo.
Há também uma certa visão ingênua da tecnologia no projeto marxista dominante, com a sua insistência na maximização das forças produtivas, algo que só a abolição das relações de classe sob o comunismo poderia alcançar. Isto parece ignorar a natureza altamente política da luta pela eficiência: o que pode ser eficiente para alguns pode ser ineficiente para outros. É errôneo proclamar, falando de forma objetiva, que cada tecnologia tem algum tipo de horizonte ótimo e objetivamente estabelecido, pelo qual devemos lutar. Simplesmente não é isso que os estudos de ciência e tecnologia nos demonstram.
Isto não quer dizer que o conflito sobre valores seja melhor resolvido de acordo com o paradigma do mercado: não é assim. Mas não vejo sentido em marxistas negarem a existência destes aspectos. E uma vez que reconhecemos a sua existência, então poderemos querer optimizar para mais do que apenas eficiência. Talvez o que pretendamos é que as políticas públicas maximizem a emergência de interpretações polivalentes e diversas sobre como utilizar uma determinada tecnologia, de modo que novas interpretações dela e dos seus usos possam surgir nas comunidades onde é utilizada.
Dito isto, alguns pensadores marxistas – Raymond Williams, por exemplo – compreenderam que a complexidade é o valor correto que a esquerda deve perseguir. A simplicidade, como objetivo geral, não se enquadra facilmente no progressismo, entendido como uma ideologia que abraça o novo e o diferente. Além disso, penso que Williams tinha razão quando afirmou que a resposta para uma maior complexidade se encontra na cultura, entendida num sentido amplo.
Assim, em vez de responder aos neoliberais afirmando que o contraponto correto ao mercado é o planejamento, a esquerda deveria argumentar que o enquadramento alternativo correto à economia – como objetivo organizacional e método do modernismo de mercado que já mencionei – é a cultura, concebida não apenas como alta cultura, mas também como cultura mundana, aquela que se concentra no cotidiano.
Afinal de contas, a cultura é tão produtiva na inovação como a “economia”, simplesmente não temos o sistema certo de incentivos e circuitos de retroalimentação para estendê-la e fazê-la propagar-se por outras esferas da sociedade. Na verdade, foi nisso que o capitalismo se destacou, pelo menos no que diz respeito à expansão das inovações dos empresários individuais.
Existem muitos debates na União Europeia, nos Estados Unidos e também na China sobre a soberania tecnológica. Em muitos casos são visões capitalistas: tentam proteger as indústrias nacionais e escapar ao que poderíamos chamar de mercados livres. Você usou esse mesmo conceito em diferentes ocasiões em suas entrevistas no Brasil. Em que difere este tipo de autonomia tecnológica e que dimensões compreende?
Bem, existe um elemento pragmático e um elemento utópico. De um ponto de vista pragmático, não acredito que a soberania tecnológica possa ser alcançada no curto prazo sem algum tipo de contrapartida nacional aos prestadores de serviços estadunidenses e chineses, seja no domínio da computação em nuvem, do 5G ou da inteligência artificial. Já de uma perspectiva mais utópica, estamos falando de uma agenda política que desenvolveria estes serviços, não para pregar o evangelho das startups e incubadoras (como acontece sempre, como quando pessoas como Emmanuel Macron falam sobre isso), mas que na verdade promoveria uma agenda industrial mais sofisticada.
No caso do Sul global, significaria afastar-se de um modelo de desenvolvimento ligado à exportação de matérias-primas, como tradicionalmente têm feito estas economias, especialmente na América Latina. Mas tanto para o lado utópico como para o pragmático, é importante que o debate esteja ligado a uma discussão sobre economia, e não apenas sobre inovação ou segurança nacional. Sem economia, a agenda da soberania tecnológica será sempre vazia e um tanto unidimensional.
Dada a correlação das atuais forças geopolíticas, a existência de governos progressistas na América Latina, a consolidação dos Brics como um movimento não-alinhado ativo na “Guerra Fria 2.0” em curso entre os Estados Unidos e a China, você acha que o Sul global pode ser uma espécie de linha de frente inclusiva em relação à tecnologia? Que formas você acha que o internacionalismo digital assumiria neste contexto?
Não vejo bem de onde possa vir a oposição à hegemonia do Vale do Silício. Tem de contar com associações e alianças regionais e internacionais pela simples razão de que os custos envolvidos no desenvolvimento de uma alternativa tecnológica são demasiado elevados. O fator adicional seria evitar que os países que devem liderar o movimento não-alinhado realizem negociações individuais com empresas como Google ou Amazon.
Embora eu não acredite na tese tecno-feudal de que estas empresas são tão poderosas como os Estados-nação, pois elas têm o apoio do Estado estadunidense, e muitas vezes esse Estado é, de fato, mais poderoso do que os Estados do Sul global. É por isso que é importante reexaminar os esforços de cooperação anteriores que visavam a soberania tecnológica, sendo o Pacto Andino o seu exemplo mais proeminente.
Assinado por cinco nações no Peru, o seu principal objectivo era superar as barreiras comerciais externas e promover a cooperação comercial regional para promover a industrialização e o desenvolvimento econômico. Orlando Letelier, ministro dos Negócios Estrangeiros do Chile no governo de Salvador Allende, liderou as negociações, destacando a necessidade de abordar a exploração decorrente da propriedade tecnológica. Ele também alertou sobre a crescente dependência da região de tecnologia estrangeira. Letelier propôs a criação de algo como um equivalente tecnológico ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para facilitar o acesso dos países em desenvolvimento aos avanços tecnológicos e às patentes.
É deste tipo de propostas a nível internacional que necessitamos hoje.
Veja em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/e-se-atecnica-nos-livrasse-da-tirania-do-mercado/
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