Quando os ideólogos do capitalismo celebravam “vitória”, Immanuel Wallerstein enxergou o declínio da era neoliberal. Por isso, o trabalho dele está repleto de informações valiosas sobre as forças que estão desestabilizando o capitalismo global atualmente.
Por: Gregory P. Williams | Tradução: Rôney Rodrigues | Créditos da foto: (Louis Monier / Gamma-Rapho via Getty Images). Immanuel Wallerstein na França, fevereiro de 1997.
Pensador criativo, Immanuel Wallerstein acreditava que as ciências sociais convencionais representavam os interesses dos poderosos. Nascido em Nova York em 1930, local que mais tarde identificaria como a capital da economia mundial, passou a vida desafiando as visões sociocientíficas e culturais dominantes do capitalismo global. Quando morreu em 2019, via o sistema capitalista em crise estrutural, fadado ao colapso. Contudo, para ele o fim do capitalismo não significava necessariamente a ascensão do socialismo.
Wallerstein via a luta contemporânea como uma batalha entre forças regressivas que pressionam por outro sistema ainda mais desigual e forças progressistas que lutam por alguma forma de igualitarismo. Ele chamou essas forças em conflito de “espírito de Davos” e “espírito de Porto Alegre”, respectivamente. Na sua opinião, cada força tinha aproximadamente a mesma chance de sucesso.
Como Wallerstein chegou a esta conclusão aparentemente desastrosa? Na verdade, ele não considerava sua previsão sombria. “As probabilidades”, como gostava de dizer, “são de cinquenta por cento. Mas cinquenta por cento não é pouco; é muito”.
Crise e colapso
Ao contrário de muitos intelectuais de esquerda do século XX, Wallerstein não trocou seu otimismo juvenil pelo pessimismo ou aquiescência dos idosos. À medida que o neoliberalismo se consolidava na era de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, sua perspectiva transformou-se em algo completamente alheio aos sentimentos de otimismo e pessimismo. Adotou uma segurança serena no seu diagnóstico das crises cada vez mais profundas do sistema-mundo moderno e do seu colapso iminente.
Na década de 1990, quando o neoliberalismo conquistou os partidos que, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, haviam representado os interesses dos trabalhadores, Wallerstein permaneceu inabalável. Entre os governos de Bill Clinton e Tony Blair, que defendiam o potencial aparentemente ilimitado do capitalismo de livre mercado, Wallerstein continuou sustentando que o sistema era profundamente instável e seu domínio diminuía.
O neoliberalismo associou a liberdade humana e o desenvolvimento a mercados não regulamentados. Wallerstein, por outro lado, associou estes conceitos à igualdade na política, na economia, no direito e na cultura.
Hoje está claro que História se desenvolveu mais de acordo com as previsões de Wallerstein do que com as dos neoliberais que prometeram prosperidade econômica e paz duradoura. As guerras dos EUA no Afeganistão e no Iraque não conduziram a um cenário mundial mais pacífico ou estável. Os líderes estadunidenses que promoveram mercados sem regras, em vez de alcançarem o seu objetivo de pacificação através da prosperidade apenas desencadearam protestos sociais globais.
A análise dos sistemas-mundo de Wallerstein pode ajudar a compreender nosso tempo caótico. Fenômenos aparentemente desconexos, como crises financeiras, protestos populares e guerras, revelam um sistema em crise estrutural.
Independência africana e teoria da modernização
Wallerstein sempre teve curiosidade pela política e pelas ideias que norteiam nossas ações, bem como pelas interligações entre a política internacional e a nacional Era um jovem defensor do movimento a favor do federalismo mundial. Em 1954, escreveu uma tese sobre o macarthismo que mais tarde foi retomada pelo historiador Richard Hofstadter.
Wallerstein foi convocado para o Exército estadunidense durante a Guerra da Coreia e enviado para defender o Canal do Panamá. Depois, debruçou-se sobre os movimentos de independência africanos no contexto do mudanças no cenário mundial. Com a experiência percebeu que as ciências sociais existentes não conseguiam explicar os problemas enfrentados pelos novos Estados independentes do continente.
Os governos pós-coloniais caíram quase imediatamente em problemas de dívida e instabilidade política. A visão predominante entre os estudiosos dedicados ao estudo do desenvolvimento político – um termo para a crescente sofisticação e resiliência dos órgãos governamentais – era que as nações pobres e instáveis eram pobres e instáveis devido às decisões tomadas pelos seus dirigentes. Supunha-se que a maior parte da política era nacional, com apenas interação incidental com o mundo exterior.
Essa perspectiva, que ainda persiste, ficou conhecida como “teoria da modernização”. Os seus defensores recomendaram que os Estados-nação em dificuldades eliminassem as barreiras ao comércio e se abrissem ao investimento estrangeiro.
Wallerstein nunca aceitou que os novos governos pós-coloniais de África fossem os culpados pelos seus problemas. Ele acreditava que a política da dívida e as condições comerciais injustas eram, como disse o presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, a “segunda corrida” pela África. Considerou que o impacto do imperialismo ocidental tinha sobrevivido à descolonização formal.
Movimentos antissistêmicos
Wallerstein inicialmente procurou alterar a teoria da modernização em vez de substituí-la. Assim, no final da década de 1960 ele planejou um importante estudo. Ele queria tirar lições para as “novas” nações do mundo com base nas experiências das “velhas” nações, os Estados europeus que se formaram no século XVII.
No entanto, logo rejeitou a premissa de seu projeto. Foi “uma má ideia”, escreveu décadas mais tarde: os novos Estados-nação independentes criaram governos e exerceram a diplomacia em circunstâncias radicalmente diferentes daquelas das antigas nações da Europa. O importante era a relação entre o antigo e o novo, raciocinou.
A nova perspectiva de Wallerstein surgiu pouco depois dos protestos globais de 1968, que ele viveu diretamente em Nova York (na verdade, ele gostava de lembrar aos seus amigos franceses que o motim da Universidade de Columbia precedeu em várias semanas os protestos de Paris). Wallerstein considerou que os protestos globais estavam interligados. Na sua opinião, todos lutavam contra a ordem estabelecida e procuravam criar melhores condições de vida. Ele diria mais tarde que 1968 “cristalizou” muitas de suas opiniões, crenças que ele havia anteriormente defendido “de uma forma mais confusa”.
Mais tarde, descreveria 1968 como um “movimento antissistêmico”, parte de uma longa série de movimentos sociais e nacionalistas modernos simbolizados por seus anos, como 1789, 1848, 1917, 1968 e 1989. O termo descreve a maneira como as pessoas desafiam de tempos em tempos a ordem estabelecida e altamente desigual, caracterizada pela hierarquia e pela exploração. Por vezes alcançam os seus objetivos (ou alguns deles o fazem), como os revolucionários franceses em 1789. Por vezes, os resultados são mais desiguais, como nas revoltas europeias de 1848.
Após a sua tentativa inicial de rever a teoria da modernização numa direção mais internacional e histórica, Wallerstein regressou à mesa de trabalho. Formulou então uma nova forma de conceber a política mundial, inspirada nas revoluções de 1968, que levava em conta a relação entre colonizador e colonizado, rentista e devedor.
O sistema mundial
Baseando-se em pensadores como Fernand Braudel, Amílcar Cabral, Frantz Fanon e Karl Polanyi, Wallerstein concebeu uma forma de especificar a relação entre grandes e pequenas potências. Ele chamou a sua abordagem de “análise de sistemas-mundo”, preferindo o termo “análise” a “teoria”, que ele acreditava que implicaria uma sensação prematura de encerramento, de ter tudo resolvido. Usou o hífen “sistema-mundo” para indicar que as duas ideias eram inseparáveis. O roteiro mostrava que ele estava escrevendo sobre um sistema que era um mundo, e não apenas o sistema do mundo. Portanto, ele sustentou que um sistema-mundo poderia ocupar um espaço menor que o da Terra.
Wallerstein concebeu vários tipos principais de sistemas-mundo, entre os quais se destacaram o império mundial e a economia mundial. Um império mundial era uma civilização em grande escala com uma única instituição governamental e um único sistema econômico, como o da Roma antiga. Conquistara e ocupara vastas áreas de território e recebia tributos das diversas partes que o compunham.
Uma economia-mundo, pelo contrário, era para Wallerstein uma criatura invulgar, composta por diversas instituições governamentais distintas dentro de um sistema econômico global. No caso da economia-mundo capitalista, os Estados (ou seja, países ou nações) estavam unidos por um sistema econômico capitalista.
De acordo com Wallerstein, o capitalismo formou-se na Europa Ocidental e na América ao longo do “longo século XVI”, abrangendo aproximadamente o período entre 1450 e 1640. Dada a prevalência da escravidão, da servidão por contrato e de outras formas de trabalho forçado, ele evitou definir o capitalismo como um sistema baseado no trabalho assalariado e na propriedade privada para caracterizá-lo, em vez disso, como baseado na acumulação incessante de capital, entendido como valor acumulado.
Rapidamente surgiu uma divisão do trabalho que refletia as divisões de classe dentro dos Estados. O “núcleo” rico e poderoso (inicialmente limitado à Europa Ocidental) explorava e se beneficiava da “periferia” empobrecida (grande parte do resto do sistema-mundo). Entretanto, Wallerstein viu uma categoria de correia de transmissão chamada semiperiferia, composta por Estados explorados com pouco direito às recompensas geradas pela periferia.
Contudo, central na análise dos sistemas-mundo é a afirmação de que todos os sistemas são transitórios. Um sistema nasce, passa por um período de fragilidade e depois de força, antes de finalmente entrar num período de crise terminal. Wallerstein sustentou que o capitalismo tem uma vida finita e que o seu funcionamento normal acabará por provocar o seu fim. E, depois de conhecer o vencedor do Prêmio Nobel da Química, Ilya Prigogine, Wallerstein percebeu que esta lógica também era válida para os sistemas naturais, incluindo o universo como um todo.
Ao enfatizar a relação entre as sociedades, Wallerstein encontrou uma forma de descrever o modo de produção capitalista tal como ele realmente existia. Anteriormente, os cientistas sociais utilizavam o Estado como unidade de análise. Para Wallerstein, os Estados são componentes de um sistema mais amplo.
Ritmos cíclicos
Nas décadas de 1970 e 1980, Wallerstein escreveu extensivamente sobre a história do capitalismo numa série de livros intitulada O sistema mundial moderno, cujo último volume apareceu em 2011. Ele explicou a frágil formação do sistema, seus períodos de expansão e crescimento, e suas contradições cada vez mais profundas. Política e culturalmente, este período foi caracterizado pelo triunfo do neoliberalismo. No entanto, Wallerstein nadou contra a maré neoliberal ao descrever as origens e a expansão do capitalismo, o seu comportamento episódico e as suas tendências duradouras.
Wallerstein referiu-se aos altos e baixos do capitalismo como “ritmos cíclicos”. Um desses ritmos foi a “onda longa” econômica: períodos de longo prazo de crescimento mais rápido e mais lento. Algumas ondas duraram várias décadas, enquanto outras duraram séculos. Ele estava especialmente interessado em saber como os Estados e outros atores respondiam a períodos de expansão e consolidação a longo prazo.
Outro ritmo cíclico identificado por Wallerstein foi a ascensão e queda do domínio internacional. Ocasionalmente, uma nação converte as suas vantagens econômicas numa posição de poder incomparável, uma posição que ele chamou de “hegemonia”. Considerando as lições dos exemplos holandês, britânico e estadunidense, Wallerstein descobriu um padrão comum: a hegemonia em ascensão defende-se contra um rival. Ao fazê-lo, as suas vantagens nos campos da produção agroindustrial, do comércio e das finanças são convertidas em superioridade militar. Depois de um grande conflito, como a Segunda Guerra Mundial, a nova nação dominante estabelece as regras de uma ordem internacional duradoura.
A partir desse momento, declina lentamente à medida que perde suas vantagens econômicas na mesma ordem em que as obteve, começando pela produção agroindustrial e concluindo pelas finanças. Wallerstein acreditava que os Estados Unidos começaram a declinar na década de 1970.
Tendências seculares
Poderíamos imaginar ritmos cíclicos em termos metafóricos, como o sistema mundial moderno que inspira e volta a soltar ar. Normalmente, eles retornam algum tipo de normalidade, um equilíbrio, mas também causam novos desenvolvimentos ao sistema. Estas “tendências seculares” aumentam ao longo da vida do sistema. Por definição, eles não podem ser desfeitos.
Wallerstein concebeu várias tendências seculares, incluindo revoltas políticas, o desenvolvimento de uma força de trabalho proletarizada (no sentido amplo) e a expansão geográfica do sistema-mundo. Este último é útil para refletir sobre o capitalismo global atual.
Segundo Wallerstein, um sinal da crise estrutural do capitalismo é a sua incapacidade de se expandir geograficamente. Durante quatro séculos, até aproximadamente ao final do século XIX, o capitalismo foi capaz de aliviar as suas pressões internas através do expansionismo. Numa determinada zona, à medida que os trabalhadores exigiam salários mais elevados e condições de trabalho mais seguras, enquanto os recursos se tornavam escassos, os proprietários-produtores “fugiram” para novas zonas.
Em muitos casos, esta fuga levou à incorporação de zonas externas na economia global. O sistema começou na Europa e na América, mas houve ocasiões que se espalhou rapidamente. Por exemplo, na era do império, entre 1750 e 1850, as potências europeias empurraram grande parte do Sul da Ásia, da África Ocidental e do Império Otomano para a periferia do sistema mundial.
No momento em que a ideologia do capitalismo de mercado sem restrições se consolidava no Ocidente, a análise histórica de Wallerstein mostrava um sistema em apuros. Sem espaço para crescer, argumentava ele, o sistema dependia mais da criação de novas tecnologias, novos bens e novos contratos, como aqueles que protegiam lucros futuros em acordos comerciais internacionais.
Ao enfatizar as crescentes contradições do sistema, Wallerstein tornou-se imune à atitude cultural do capitalismo tardio que tanto frustrou os seus colegas radicais: a saber, a ideia de que a liberdade corporativa ilimitada era de alguma forma a condição natural do mundo e a melhor de todas as opções possíveis. Se pudéssemos resumir a filosofia do neoliberalismo com aquela velha frase “não há alternativa”, Wallerstein resumiu a sua própria atitude com uma réplica muito utilizada: “há milhares de alternativas!”.
Classes perigosas
As turbulências selvagens do capitalismo na década de 2020 têm muitas causas de curto prazo, incluindo a pandemia e as as interrupções na cadeia de abastecimento just-in-time, a escassez de petróleo, a natureza imprevisível das ações tradicionais e a previsível volatilidade das criptomoedas. Contudo, as ideias de Wallerstein dizem-nos que devemos olhar para a sequência das crises recentes num período de tempo mais longo. Representam um sistema-mundo incapaz de regressar ao equilíbrio. Em vez disso, o sistema continua a oscilar caoticamente numa direção e em outra.
A crise do capitalismo também encorajou as pessoas comuns a exigirem mais dos seus Estados. Durante muito tempo, a promessa do liberalismo de reformas lentas mas constantes conseguiu apaziguar as populações, ou pelo parte importante delas, para manter as estruturas de poder existentes. As declarações da elite sobre as liberdades políticas – e, na verdade, a própria liberdade – eram para Wallerstein realmente justificativas para a desigualdade. Os Estados centrais estavam tentando “domar as classes perigosas”, escreveu, “incorporando-as na cidadania e oferecendo-lhes uma parte, ainda que pequena, do bolo econômico imperial”.
No entanto, ao longo do tempo, potências centrais como os Estados Unidos tiveram mais dificuldade em justificar as suas aventuras imperiais e a perpetuação da desigualdade econômica. À medida que a hegemonia estadunidense diminuía, também se revelou incapaz de manter a ordem que tinha criado décadas antes. Outras nações já não se sentem limitadas pelas suas diretrizes.
De acordo com Wallerstein, os poderes hegemônicos podem declinar elegante ou precipitadamente, mas não podem evitar o declínio. Na sua opinião, a invasão do Iraque em 2003 foi um caso em que os Estados Unidos tentaram convencer outras nações da sua grandeza. Como ele escreveu dois meses antes do início da invasão:
Com o colapso da União Soviética, os Estados Unidos perderam o principal argumento político que tinham para persuadir a Europa Ocidental e o Japão a seguirem as suas iniciativas políticas. A única coisa que lhe resta é um exército extremamente forte.
O início do século XXI é caracterizado pela desestabilização cíclica da ordem hegemônica estadunidense. Mas também parece marcado pela desestabilização secular do próprio sistema-mundo. Para Wallerstein, o sistema não pode voltar à normalidade.
Curiosamente, muitos dos cenários que inspiraram o conceito de análise de sistemas-mundo de Wallerstein também poderiam se beneficiar das suas ideias. As nações pós-coloniais continuam em crise, lutando contra a dívida e a instabilidade política. No entanto, os seus antigos colonizadores também têm problemas, com cidadãos inquietos exigindo melhor tratamento aos seus patrões e governos.
Wallerstein estava convencido de que a luta pela igualdade teria mais hipóteses de sucesso se estivesse munida das ideias adequadas. Definitivamente, suas reflexões contribuíram para isso.
Comente aqui