Após onda de protestos, governos europeus freiam a negociação. Apesar das contradições, camponeses sintetizaram posição dos dois lados do Atlântico: é preciso um projeto agrário que gere empregos e desenvolvimento sustentável
Por: Sergio Ferrari |Tradução: Rose Lima | Crédito Foto: Reuters
Na quarta-feira, 7 de fevereiro, as posições críticas que vinham circulando sobre esse acordo de livre comércio ficaram claras nas declarações de Maros Sefcovic, vice-presidente executivo da Comissão Europeia (CE) para o Pacto Ecológico Europeu e as Relações Interinstitucionais. No momento, segundo Sefcovic, esse acordo entre a União Europeia e o Mercosul, bloco regional formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, não pode ser finalizado. A Venezuela faz parte, mas está suspensa; enquanto o Chile, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru e o Suriname são Estados associados; a Bolívia solicitou admissão.
“Gostaria de confirmar que, na opinião da Comissão Europeia, as condições para a conclusão do acordo com o Mercosul não estão reunidas”, disse o alto funcionário no âmbito de uma sessão plenária do Parlamento Europeu para analisar o impacto dos crescentes protestos do setor rural em muitos dos países do continente. Por sua vez, Hadja Lahbib, ministra belga dos Negócios Estrangeiros e Comércio Externo (a Bélgica preside atualmente o Conselho da UE), disse que os acordos comerciais devem permitir que os agricultores dos 27 Estados que compõem esse bloco regional “exportem para novos mercados e se diversifiquem, mas não em seu próprio prejuízo”.
O Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia está em negociação desde a década de 1990. Embora um acordo anunciado por Mauricio Macri, Jair Bolsonaro, Emmanuel Macron e Angela Merkel tenha sido alcançado em 28 de junho de 2019, sua versão final não foi concluída, adotada ou ratificada pelos Estados envolvidos e, portanto, não entrou em vigor. Setores progressistas da América Latina denunciaram, então, o “sigilo” do processo de discussão do Acordo e a total falta de transparência em sua elaboração. Mesmo os parlamentos dos Estados-Membros não tinham sido informados do seu conteúdo.
Periodicamente, têm surgido propostas, principalmente da União Europeia, para acelerar a sua ratificação; no entanto, a recente mobilização camponesa em todo o continente decretou sua “morte temporária”. Caso entrasse em vigor, esse acordo seria um dos mais importantes do mundo: 780 milhões de pessoas envolvidas e volumes comerciais entre 40 e 45 bilhões de euros em importações e exportações.
Vários países europeus que não fazem parte da União Europeia, como a Suíça, a Noruega, a Islândia e Liechtenstein, mas que compõem a Associação Europeia de Livre Comércio ((AECL / European Free Trade Association, EFTA), vêm negociando um acordo paralelo com o Mercosul. Também não entraria em vigor se o principal tratado dos países sul-americanos com a UE não avançasse.
Stop aos tratados de livre comércio
Uma das exigências promovidas pelas recentes manifestações agrícolas é a eliminação dos acordos de livre comércio, porque poderiam abrir a porta a produtos agroalimentares que não cumprem as normas acordadas na UE. Segundo os camponeses do Velho Mundo, trata-se de uma concorrência desleal porque os padrões latino-americanos são menos exigentes e, portanto, de menor custo de produção.
Em 29 de janeiro, a Confederação Camponesa Francesa apresentou publicamente as 20 principais reivindicações que sustentam sua participação nos protestos. As duas primeiras consistem, na verdade, em “A suspensão imediata de todas as negociações de acordos de livre comércio, incluindo a negociação com o Mercosul”, bem como “A ruptura com a concorrência desleal, uma consequência direta do livre comércio, através do estabelecimento de instrumentos de proteção econômica e social para os agricultores: a regulação dos mercados agrícolas para estabilizar e garantir os preços agrícolas”.
Para a poderosa Confederação Francesa, a principal preocupação de seus agricultores em suas próprias terras cotidianas é ganhar uma vida decente de sua profissão e, por isso, aponta que “as políticas destinadas a produzir mais não correspondem aos problemas atuais”. E insiste que é fundamental ter “políticas coerentes para assegurar a continuidade do emprego de muitos agricultores, garantir a renovação geracional e construir a nossa soberania alimentar no contexto da crise climática e ambiental”. Além disso, lembra que a causa da profunda crise resultante da agitação agrícola é a remuneração do trabalho camponês e insiste que “devem ser encontradas soluções concretas para todos os agricultores, não acentuar as desigualdades no mundo agrícola”.
Para a Confederação, algumas responsabilidades são nacionais; outras são europeias e outras estão ligadas ao possível impacto negativo dos tratados de liberalização assinados com outras regiões do mundo.
No mesmo dia de janeiro, a Coordenação Europeia da Via Campesina havia exigido enfaticamente a suspensão das negociações do Acordo UE-Mercosul. Ao convocar a grande mobilização do setor rural para 1º de fevereiro, em frente à sede das instituições da UE, em Bruxelas, a Via Campesina, principal plataforma internacional do campesinato, exigiu o fim imediato das negociações sobre acordos de livre comércio e a suspensão daqueles ligados à agricultura. Para essa organização, isso significa cessar as negociações com o Mercosul, não ratificar o acordo UE-Nova Zelândia e interromper as negociações em andamento com o Chile, o Quênia, o México, a Índia e a Austrália.
A sociedade civil levanta a sua voz
“A suspensão por parte da UE das negociações sobre um acordo de livre comércio com o Mercosul é uma coisa boa, e a Suíça e a Associação Europeia de Livre Comércio deveriam seguir o exemplo”, disse Isolda Agazzi, especialista em relações comerciais da Alliance Sud (Aliança do Sul), a esse correspondente. Essa plataforma reúne as principais Organizações Não-Governamentais da cooperação suíça para o desenvolvimento.
Segundo Agazzi, “a liberalização dos produtos agrícolas levaria a uma aberração ecológica contrária aos esforços para proteger o clima. Esse Acordo é anacrônico e obsoleto. Não tem razão de ser nem de existir”.
Durante anos, a Alliance Sud, que faz parte da Coalizão Suíça sobre o Mercosul, tem se oposto a esses acordos. Em 2021, já os definia como “disparates climáticos” e avaliado que “levarão a um aumento de 15% nas emissões de gases com efeito de estufa provenientes do comércio agrícola”.
A Coalizão disse na época que o acordo “terá um impacto negativo tanto na situação ambiental e de direitos humanos nos países latino-americanos quanto na agricultura na Suíça”. Além disso, contribuirá para a destruição progressiva das florestas tropicais e para a utilização de pesticidas perigosos, alguns dos quais são proibidos nos próprios Estados da Associação Europeia de Livre Comércio. E que também levará a um aumento das importações de carne “cuja produção não atende aos padrões suíços de bem-estar animal e contradiz as expectativas legítimas dos consumidores”.
Por seu lado, a Greenpeace, que também se opõe radicalmente ao Acordo Mercosul-União Europeia, lembra que “esse acordo é muitas vezes apresentado como um acordo de ‘carros por vacas’ porque visa promover as exportações europeias de automóveis, embora também vise promover as de têxteis e alimentos (queijo, leite em pó, etc.). O que a Europa importa dos países do Mercosul será, fundamentalmente, carne (bovina, de frango, etc.) e etanol. Segundo a Greenpeace, “este acordo é fortemente criticado pelos agricultores europeus, que denunciam a concorrência desleal com diferentes normas ambientais, sociais ou sanitárias, bem como por associações ambientalistas, que apontam para um impacto negativo nas florestas e um fortalecimento da agroindústria”.
Questionamentos das duas margens
Não faltam vozes latino-americanas que consideram que a resistência europeia ao Tratado representa uma nova virada neocolonial por parte da Europa e que antecipam que essa posição busca vampirizar as relações entre o Velho Mundo e a América Latina.
Em meados de 2022, a Fundação Rosa Luxemburgo, da Espanha, publicou uma “Abordagem Crítica ao Acordo UE-Mercosul”, na qual argumenta que “o tratado significa insistir nas mesmas matrizes [que as atuais]: o Mercosul acentuaria seu papel de exportador de matérias-primas agrícolas e a Europa venderia carros e outros produtos industriais, desmantelando assim o tecido industrial interno da região [latino-americana]”. E conclui que, “em termos gerais, saem a ganhar as multinacionais de ambos os lados, que podem produzir de forma deslocalizada, em larga escala e a um preço baixo, mas a um alto custo humano e ambiental”.
O turbilhão agrário que nas últimas semanas tomou conta das estradas e ruas da maioria das capitais da Europa Ocidental se tornou um dos protestos continentais mais “globais” dos últimos anos. Com reivindicações amplas e diversas – às vezes até contraditórias –, com sotaque de esquerda ou direita, dependendo do caso e do país ou região, mas, em qualquer caso, com inegável impacto político. A liderança europeia deveria ter ouvido o protesto e feito concessões. O Tratado com o Mercosul é um dos primeiros bastiões a cair, acuado pela mobilização popular, questionado dos dois lados do Atlântico por sua falta de transparência e enfraquecido por receios de ambos os setores agropecuários, temerosos de sofrerem perdas não previstas.
Veja em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/a-morte-temporaria-do-acordo-mercosul-ue/
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