Ativista ecofeminista crítica esforço ínfimo dos governos diante da crise climática. Liberação de venenos prossegue; patentes transformam a natureza em ativos. Mas há esperança: persiste o desejo das maiorias em retomar o poder criativo de produzir na terra
Por: Usbek & Rica, com tradução no IHU | Entrevista com: Vandana Shiva
Vandana Shiva luta há décadas contra as indústrias e as empresas financeiras que privatizam os seres vivos em detrimento da biodiversidade e da saúde humana. O “cartel do veneno”, como ela as chama, nunca se intimida em fazer expressões chocantes.
Autora prolífica com influência mundial, a ativista indiana de 71 anos que criou a ONG Navdanya, que trabalha para salvar sementes camponesas na Índia, assinou uma autobiografia no ano passado – Terra viva – na qual oferece uma síntese de décadas de lutas contra os mais poderosos deste mundo, desde a Monsanto e Bill Gates até a Organização Mundial do Comércio (OMC). Esta ativista determinada e resolutamente otimista, apesar das tragédias que documenta, concedeu uma entrevista a Usbek & Rica na qual analisa os últimos abusos do “bioimperialismo” e as suas esperanças para o futuro. A tradução é do Cepat.
Leia a entrevista
No dia 16 de novembro [de 2023] o glifosato foi liberado para mais dez anos na União Europeia. Como é que essa votação se enquadra no “bioimperialismo” que você denuncia há anos?
A antiga versão do bioimperialismo era o colonialismo. Isto não consistiu simplesmente numa conquista dos territórios, mas implicou uma transferência de riqueza biológica: sementes, plantas medicinais… Com o bioimperialismo atual, novas tecnologias como a engenharia genética e a edição do genoma não só aceleram essa transferência de riqueza, mas também permitem monopolizar o poder criativo dos organismos vivos graças às ferramentas de propriedade intelectual (na forma de patentes, nota do editor). A combinação destes dois elementos – estas novas ferramentas tecnológicas e estas novas formas de propriedade intelectual – leva o bioimperialismo um passo mais longe: trata-se, em última análise, de controlar a própria vida.
Antes desta nova era do bioimperialismo, existiam ferramentas para exterminar pessoas, mas não plantas. Não havia o glifosato. Os governos devem representar os cidadãos e respeitar os seus desejos. Eles deveriam regular as empresas. Mas esta relação se inverteu. São as empresas que redigem as leis de desregulamentação, com o apoio dos governos. O sistema está completamente falido. A votação que aconteceu hoje sobre o glifosato na União Europeia é um sintoma disso. A maioria dos europeus não quer o glifosato, por isso devemos bani-lo!
Estão também em andamento discussões na Europa para flexibilizar as regras sobre “novos OGM” (derivados de novas técnicas genômicas, sem inserção de ADN estranho), que, segundo os seus defensores, seriam necessários para adaptar a agricultura às mudanças climáticas e reduzir o uso de pesticidas…
Em 1984, fiz um estudo para as Nações Unidas sobre o que estava provocando a morte de tantas pessoas na Índia, especialmente em Punjab e Bhopal, devido aos produtos químicos utilizados na Revolução Verde. Concentrei-me em compreender a agricultura industrial. Fui então convidada, em 1987, para uma conferência intitulada “Laws of life” com representantes da indústria química. Foi ali que ouvi falar das primeiras gerações de OGM. Esses industriais declararam: “De agora em diante, nossos lucros dependerão da arrecadação de royalties e da posse das sementes. E para possuir essas sementes, é preciso registrar patentes”. Estas patentes significam que de alguma forma “inventaram” estas sementes, como se fossem deuses.
Depois desta reunião, trabalhei lado a lado com os governos para regulamentar estes OGM. Por fim, consegui incorporar o Artigo 19.3 na Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992) – para grande desgosto dos Estados Unidos – estipulando que cada governo deve avaliar os riscos associados aos OGM. Isso colocou obstáculos reais no caminho da indústria. É por isso que desenvolveram a edição do genoma: para contornar a avaliação dos riscos associados a estes produtos e as regulamentações em vigor. Chegam a afirmar que estes OGM são “naturais”, ou mesmo que não são OGM. E, ao mesmo tempo, centenas de novas patentes encontram-se nas mãos do “cartel do veneno”.
Os argumentos para defendê-los são os mesmos utilizados para os antigos OGM. Disseram que graças a eles poderíamos cultivar alimentos na Lua, no Saara e até em aterros tóxicos, tudo sem pesticidas. Esta foi especialmente a promessa por detrás das culturas Bt, que não foi alcançada. Os agricultores estão usando mais pesticidas do que nunca. Na Índia, os agricultores estão se endividando e cometendo suicídio. Esta é a grande tragédia que documentei.
A que distopia este bioimperialismo poderá nos levar no futuro, na sua opinião?
Se pararmos de guardar sementes e de utilizá-las – o que temos feito desde a famosa conferência de 1987 – corremos o risco de ver o fim das sementes, o fim da biodiversidade e o fim da agricultura camponesa. Terão assim alcançado o seu objetivo. Quando digo “eles”, quero dizer os bilionários e os fundos de gestão de ativos. O seu slogan é: “Agricultura sem agricultores, alimentos sem granjas”. Seria, portanto, o fim daqueles que cuidam da terra, mas não o fim da agricultura industrial.
Como disse a Bayer-Monsanto, isto criaria oportunidades de negócios ainda maiores porque poderiam operar em escalas ainda maiores. A agricultura digital enquadra-se perfeitamente neste quadro. Neste sistema, as culturas não serão sinônimo de alimentos: são matérias-primas das fábricas. É isso que fará a máquina funcionar.
Se o bioimperialismo continuar o seu crescimento desenfreado sem que possamos desacelerá-lo, veremos o campo esvaziar-se em favor das cidades. Isto só irá acentuar os problemas de habitação, com cada vez mais pessoas nas ruas a serem expulsas das cidades. As questões sociais tornar-se-ão cada vez mais difíceis de gerir. O caos climático também aumentará porque este modelo é mais poluente. E a saúde das pessoas será afetada. Estamos saindo de uma pandemia horrível e os dados são claros: as comorbidades tornaram os indivíduos mais vulneráveis ao vírus. Há muitas pesquisas sendo feitas sobre alimentos ultraprocessados e seu papel no desenvolvimento de doenças crônicas.
Em seu último livro, Terra viva, você destaca o alto teor de glifosato do Impossible Burger da Impossible Foods. Elogiado pelos seus méritos climáticos, estão os alimentos sintéticos no caminho errado?
Alimentos criados em laboratório são alimentos “ultra, ultra, ultraprocessados”. Não só porque contém mais ingredientes sintéticos que não foram testados, mas também porque a comida é o que liga a terra, as plantas e as nossas entranhas. Os cientistas percebem agora que os danos causados nos nossos intestinos são o ponto de partida de muitos problemas de saúde, tais como certas doenças hepáticas causadas pelo consumo de xarope de milho rico em frutose. Isto é muito sério.
Diante desses impasses, sua resposta é sempre a mesma: mais biodiversidade…
Nossos trabalhos mostram que, ao proteger a biodiversidade, podemos avançar na “nutrição por hectare”. À medida que aumenta esta configuração, você precisa de menos terra e produz mais alimentos. Quando não compramos sementes e insumos químicos caros e praticamos a agricultura regenerativa, ganhamos dez vezes mais dinheiro do que aqueles que perseguem a cadeia de abastecimento global.
Claro que sempre surge essa preocupação: como passar a produzir em escala com esse modelo? Minha resposta é muito clara. O que precisamos não é de uma integração vertical realizada por um punhado de atores. Este é o modelo atual e esse é o problema. O que é necessário é um processo horizontal: um agricultor faz a coisa certa e dez agricultores observam e imitam.
Penso que os últimos 500 anos de pensamento colonial, que se baseia no antropocentrismo e nas hierarquias – os seres humanos são superiores à natureza, os brancos superiores aos negros, os homens superiores às mulheres… –, ainda são muito significativos. Devemos retornar à natureza. Como isso se multiplica? Fazê-lo precisamente através destes processos horizontais.
“O que comemos e como cultivamos os alimentos que comemos […] determinará se a humanidade sobreviverá”, escreve. Você acha que ainda dá tempo de salvar nossa espécie do cenário de desastre?
Como ativista ecológica, sempre rejeitei a inevitabilidade do bioimperialismo porque aceitar a inevitabilidade é precisamente o mesmo que criá-la. É por esta razão que não subscrevo a visão de Yuval Noah Harari, conselheiro do Fórum Econômico Mundial, que projeta a distopia dos ricos como uma realidade inevitável. Como se não fôssemos agentes de mudança. Claro, haverá robôs para nos substituir. Mas se olhamos para a mobilização contra a reforma das aposentadorias na França, e para a cegueira do governo, para mim é ao mesmo tempo um sinal de que existe uma enorme capacidade de mobilização e uma crise da democracia.
A tese do triunfo inevitável da ganância e da dominação corporativa não deve matar a democracia. Não é como se as nossas Constituições já não existissem, mesmo que o Fórum Econômico Mundial quisesse vê-las desaparecer. A maioria dos elementos da Constituição francesa ainda valem. O mesmo vale para a Constituição indiana. Temos sempre à nossa disposição regras escritas, para defender cada espaço, tanto ecológico como democrático, a nível local, nacional e internacional.
Na França, as Revoltas da Terra deram um novo impulso à luta contra a agricultura industrial. O que você acha desse movimento? O seu modo de ação, baseado em particular no “desarmamento” das infraestruturas ecocidas, é eficaz aos seus olhos na mudança das relações de poder?
Não me surpreende que sejam chamados de ecoterroristas. Em 1999, quando protestávamos contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, já éramos considerados terroristas.
Pessoalmente, sempre me inspirei na luta pela independência na Índia. Em 1906, os britânicos dividiram Bengala com base na religião: o Oriente para os muçulmanos e o Ocidente para os hindus. O povo recusou esta linha divisória. Os indianos se organizaram e disseram: “Agora é hora de vocês saírem da Índia e nós faremos nossas próprias roupas”. Gandhi assumiu então esta luta de uma forma mais ampla. O primeiro passo neste movimento de libertação foi queimar as roupas britânicas. Não vestiremos mais estas roupas imperialistas.
Penso que precisamos de todos os tipos de ações, ações criativas, ações não violentas que expressem a nossa oposição às infraestruturas ecocidas, ao mesmo tempo que construímos melhores alternativas. Faremos as duas coisas simultaneamente. Criaremos alternativas com a terra, sistemas não violentos que nos permitam produzir melhor as nossas roupas e os nossos alimentos, ao mesmo tempo que cuidamos da nossa saúde e fornecemos soluções para os problemas climáticos. Porque também precisamos construir os sistemas que nos alimentam. Precisamos nos reapropriar da Terra, precisamos nos reapropriar da água. Destruir uma barragem, por exemplo, é uma coisa: temos também de gerir esses bens comuns, pela comunidade. Devemos fazer as duas coisas: destruir o que é destrutivo e regenerar o que é criativo.
Acredito que o que irá ultrapassar a noção totalitária de bioimperialismo e de apropriação de terras é o fato de que cada elemento das nossas tecnologias e das nossas economias está baseado em mentiras profundas. Dizem que alimentam a humanidade, mas a fome no mundo nunca foi tão grande. Dizem que os pequenos agricultores são ineficientes, ao mesmo tempo que se torna cada vez mais claro que as pequenas propriedades são o caminho do futuro. E afirmam que a natureza está morta. É a mentira que os alcançará porque a natureza está muito viva. Trabalhar com uma Terra viva é o caminho para a liberdade das comunidades humanas.
A COP28 acontecerá em breve em Dubai [30 de novembro de 2023]. O que você espera? E o que você acha do fundo para perdas e danos que deveria beneficiar os países do Sul?
Essas pobres COPs já acontecem há muito tempo. Na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas adotada na Cúpula da Terra (no Rio em 1992, nota do editor), o slogan era o seguinte: “os poluidores devem pagar”. Isto hoje foi reduzido à noção de perdas e danos. Isto permitirá que os investimentos privados sejam considerados como geradores de perdas e danos.
Rockefeller, que foi o arquiteto da Revolução Verde, lançou antes da COP26 em Glasgow as “empresas de ativos naturais” [natural asset companies]. O objetivo é transformar a natureza – como um verdadeiro rio que sacia a sede das árvores, da terra e das pessoas! – em um ativo financeiro. Você sabe quanto lucro elas esperam obter com a cotação da natureza em Wall Street? Quatro bilhões de dólares.
Quando falam de “perdas e danos”, na verdade pretendem dar dinheiro aos países endividados em troca das suas florestas ou dos seus oceanos, cujas funções irão confiscar e vender como ativos financeiros. Este tipo de transação já existe. Isto é perigoso porque permite que os verdadeiros poluidores utilizem a dívida para se apropriarem do pouco que resta a determinados países. Devemos estar muito vigilantes.
Durante a COP21 em Paris em 2015, vi o acordo ser sabotado por Bill Gates. Falo sobre isso no meu livro Oneness vs. the 1%: Shattering Illusions, Seeding Freedom (Chelsea Green Publishing Company, 2020). Ao vê-lo fazer isso, disse a mim mesmo que estávamos entrando em um novo mundo depois desta COP. Escrevi outro livro chamado Soil not Oil (North Atlantic Books, 2015) no qual explico que o petróleo é o problema e a terra é a solução. Continuarei a falar sobre esses temas na COP de Dubai. Mas irei apenas um dia para falar sobre meu trabalho sobre as mulheres e o meio ambiente. Não vou mais perder tempo assistindo ao desmantelamento dos tratados que ajudei a criar.
Em última análise, não importa aonde as negociações nos levem: deve haver uma consciência coletiva da nossa capacidade de produzir alimentos saudáveis por nós mesmos e de forma ecológica, sem produtos químicos. Estou convencida de que as pessoas comuns têm as soluções para os grandes problemas. Já debati muitas vezes com pessoas poderosas que dizem que grandes problemas exigem grandes soluções e só eles têm o poder de implementá-las. Eu disse a eles que não: vocês têm o poder de destruição. Este poder destrutivo se opõe ao poder criativo da Terra. Quando milhões de pessoas exercem o seu poder criativo, são mais fortes do que cinco bilionários ou cinco empresas.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/vandana-shiva-fustiga-as-pobres-cops/
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