Um estudo em profundidade sobre as ações do MST, ao longo das décadas. À luta pela terra, somou-se outra: a busca de alternativas aos circuitos de comercialização. Mais e melhores mercados, com cooperativas e políticas públicas de compra de alimentos são fundamentais
Por: André Luiz de Souza | Créditos da foto: Joka Madruga/Brasil de Fato
A formação histórica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) representa as lutas travadas no processo das desigualdades sociais e econômicas no mundo do rural brasileiro. Ela se insere dentro das contradições do que foi chamado de modernização conservadora (STEDILE; FERNANDES, 2012). A modernização conservadora da agricultura aperfeiçoou as tecnologias e reforçou a concentração da propriedade (GRAZIANO, 1982), engendrando um processo de intenso êxodo rural do campo brasileiro. A contradição da modernização conservadora, no que tange à questão agrária brasileira, fez emergir o MST, com o propósito de frear esse projeto de desenvolvimento desigual para o campo. “Somos frutos de muitas reflexões. Somos frutos da teorização de muitas experiências de lutas que nos antecederam, dos movimentos camponeses do Brasil ou de movimentos camponeses da América Latina” (SANTOS, 2004, p. 119).
Estudos de referência sobre a reforma agrária no Brasil (BARONE; FERRANTE; BERGAMASCO, 1994; GRAZIANO, 1996; BERGAMASCO, 1997; FERNANDES, 1998; OLIVEIRA, 2007) mostram quão intensamente, desde os anos 1980, a discussão sobre reforma agrária se fixou na (re)distribuição da terra e no acesso a recursos, mas deixou de lado a questão dos mercados. Como afirma Norder (1997), esses são projetos criados muito mais para resolver situações de conflitos localizados do que situações de pobreza e de exclusão social, ou mesmo para resgatar o potencial produtivo da agricultura familiar.
Não obstante a isso, discutia-se a forma de organização produtiva, tendo certo destaque a questão das cooperativas coletivas (ZANDER,1994; BRENNEISEN, 2004), modalidades que tiveram como base a organização coletiva da produção e do trabalho coletivo. O argumento central era de que, em uma situação em que os camponeses sequer tinham acesso à terra, não fazia sentido falar em mercados. Não havia interesse do Estado em potencializar políticas agrícolas voltadas para o fortalecimento desses agricultores que estavam sendo assentados. Acentuadamente, a viabilização social e econômica dos agricultores familiares foi preterida, e mesmo contrariada por um processo de modernização de grandes propriedades. O Estado apenas respondia às pressões por meio da implementação de assentamentos e da desapropriação de terras improdutivas.
Diante desse paradoxo e de descasos das estruturas governamentais para auxiliar ao desenvolvimento desses territórios, coube ao MST ocupar um lugar de destaque, por meio de estratégias e formas de organizar os agricultores com limitações econômicas, a fim de alicerçar uma agricultura forte e capaz de reverter a miséria. Optou-se, para tanto, por uma base teórico-ideológica coletivista, para estruturar essas famílias que adentravam no processo da reforma agrária.
No decorrer dos 40 anos de sua existência, o MST avançou e regrediu em vários fatores no processo de luta pela democratização da terra. Segundo Fernandes (1994), a principal bandeira de luta que consolidou o movimento, em 1984, na cidade de Cascavel, Oeste do Paraná, teve como elemento central três objetivos: a luta pela terra, a luta pela reforma agrária e a luta por mudanças sociais no país. Com base nessas premissas, o MST surgiu com uma proposta de reforma agrária que não fosse apenas a de distribuição de terras, mas que conquistasse novas formas de organização social para assegurar aos agricultores familiares assentados no campo qualidade de vida e de renda. Para Fernandes (2008), “o avanço da luta pela terra tem mantido a reforma agrária na pauta política do Estado. Todavia, até o momento o Estado não tem sido competente para efetivar uma política de reforma agrária.” (FERNANDES, 2008, p. 27).
Diante da busca de alternativas para a crise de emprego, da problemática da organização e da gestão de assentamentos rurais com base no associativismo e no cooperativismo (LEITE et al., 2004), o 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, realizado em 1984, em Cascavel, no Paraná, consolidou de forma contundente os horizontes da luta pela reforma agrária. O princípio que norteou o MST e que mantém o movimento ativo são as ocupações dos latifúndios. Ao longo de sua trajetória, contudo, o MST demonstrou preocupação com a construção de mercados em várias iniciativas, que vão desde a criação de cooperativas nos assentamentos até a inserção dos produtos da reforma agrária em diferentes canais/redes de comercialização, inclusive, mais recentemente, os mercados digitais.
Esse aspecto ficou mais evidente no 1º Congresso Nacional do MST, realizado em 1985, em Curitiba, Paraná. Com o lema “Terra para quem nela trabalha e Ocupação é a única solução”, os três princípios básicos ressaltados nesse evento seriam a luta pela terra, a luta pela reforma agrária e a luta pelo socialismo. Tais princípios acompanham o MST até hoje e demostram o objetivo contundente do movimento, almejado muito mais do que a reforma agrária, que é a transformação social da sociedade para alcançar o socialismo. Essa perspectiva socialista guia a maioria das estratégias e do planejamento dos canais de comercialização nos assentamentos e nos acampamentos1. Os camponeses definiram políticas de ação que tinham na territorialização um de seus principais objetivos (FERNANDES, 2008).
Entre os anos de 1985 e meados de 1990, começaram as primeiras discussões sobre essa perspectiva. O professor Clodomir Santos de Moraes2, que atuava no Instituto de Apoio Técnico aos Países do Terceiro Mundo (IATTERMUND)3, vinculado à Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a partir de suas reflexões teóricas e metodológicas (de base leninista) acerca da organização camponesa e das questões de comercialização, contribuiu com os Laboratórios Organizacionais no campo e com centros de formação. De acordo com Scopinho (2007), “As experiências de cooperação/cooperativismo desenvolvidas pelo MST têm sido referidas na literatura especializada tanto pelas polêmicas que suscitam quanto pelo pioneirismo na introdução do debate” (SCOPINHO, 2007, p. 85). Iniciou-se, desse modo, o debate para a construção dos canais de comercialização e sobre quais tipos de mercados e maneiras de organizar a produção das famílias de agricultores assentados deveriam ser construídos diante das mazelas relacionadas à questão agrária brasileira.
Diante dessa configuração da luta pela reforma agrária, destaca-se a leitura do Caderno de Formação n° 11 (MST, 1986), pois marca organização e a transformação do agricultor assentado em direção à modernização da agricultura. Segundo a base teórica que alicerçava o Caderno, recomendava-se: i) “[…] a necessidade de fazer uma transição da produção de subsistência para a produção de mercadorias […]”; ii) “[…] estabelecer uma transição do camponês artesão para o operário rural […]” (BERNARDO, 2012). Essas eram duas concepções, na visão de Silva e Thé (2022), “[…] que entendiam que a produção familiar poderia ser organizada em cooperativas produtivistas, com o objetivo de inserir esta produção no circuito mercantil.” (SILVA; THÉ, 2022, p. 190). A partir disso, segundo Scopinho (2007), “[…] foram organizadas mais de 40 CPAs no país, muitas inteiramente coletivistas, verdadeiras ilhas socialistas” (SCOPINHO, 2007, p. 89).
Essas foram as primeiras estratégias para inserir a comercialização no cotidiano das famílias assentadas. Entendia-se o agricultor assentado como um sujeito que necessitava de uma base racional para administrar a sua unidade de produção de modo a não se extinguir. Era preciso racionalizar as práticas agrícolas e, com isso, alcançar-se-ia o socialismo. Passar da produção de subsistência para a produção de mercadorias significava o acúmulo de capital para investimentos em agroindústrias, além de estabelecer uma fase de transição entre o camponês-artesão e o operário, transformando a consciência camponesa em consciência operária (RIBAS, 2002), tornando-se o agricultor um sujeito revolucionário.
O Caderno de Formação nº 11 deixa nas entrelinhas a sua opção pela transformação do campesinato em assalariado rural. A noção política de campesinato foi norteada pelo expoente Prof. Clodomir Moraes:
A estrutura do processo produtivo, em que está envolvido o camponês, determina muito de suas atitudes sociais e traços de seus comportamentos ideológicos no momento em que participa dentro do grupo social. Sua atitude isolacionista, aparentemente reacionária à associação (sindical, cooperativa, etc.) não é consequência apenas do nível de educação, que entre os camponeses quase sempre é muito baixo e sim procede da incompatibilidade de tipo estrutural que distingue tal atitude da organização de caráter e participação sociais. (MST, 1986, p. 13).
A concepção teórica de Clodomir Morais, incluída no Caderno nº 11 (MST, 1986), é influenciada pelas bases leninistas e, sobretudo, por Karl Kaustsky (1968). Observa-se uma contradição dos líderes orgânicos do movimento, na gênese de formação de seus ideais de reforma agrária, em que estavam negligenciando uma dimensão fundamental da racionalidade camponesa notada por Chayanov: o fato de serem sistemas econômicos não capitalistas (CHAYANOV, 1981). Nota-se que o formato de cooperativo guiado pelos ideais de coletivização das práticas agrícolas entrou em decadência, pois estava fora realidade das famílias assentadas.
Scopinho (2007) argumenta que a “[…] crise é atribuída, principalmente, à falta de trabalho e renda decorrentes, internamente, da ausência de planejamento e controle administrativo que considerasse também a lógica dos mercados” (SCOPINHO, 2007, p. 89, grifo nosso). As famílias de agricultores vinculadas aos hábitos e aos costumes do campo tinham uma concepção de coletivo que não extrapolava os limites da família. Scopinho (2007) ressalta que “[…] os assentados não se adaptaram ao formato organizativo da CPA, pois entendiam que a possibilidade de independência, autonomia e liberdade estava no usufruto individual do lote de terra de que foram beneficiários.” (SCOPINHO, 2007, p. 89).
No segundo Congresso do MST, realizado em 1990, o objetivo principal foi alicerçar as diretrizes de resistências nos territórios ocupados, seguindo os passos de sua formação inicial e ampliando as redes de cooperativas e de agroindústrias da reforma agrária para fortalecer os agricultores no campo. Ocupar era uma forma de luta contra os latifúndios. Resistir era um processo de sobrevivência diante da forte repressão policial. E produzir era uma maneira de mostrar para sociedade que a reforma agrária produzia alimentos e cumpria uma função social.
Passados 10 anos da realização do 1º Congresso, o movimento organizou o 3º Congresso Nacional, em 1995, na cidade de Brasília, com a presença de 5.226 trabalhadores de 22 estados. Esse evento serviu para o MST balizar, reorganizar e elaborar seus objetivos de luta pela reforma agrária, entre eles, os equívocos da organicidade da base. Iniciou-se, desse modo, um novo debate sobre o papel do MST para com a sociedade e para com os povos do campo, com as seguintes palavras de ordem: “Reforma Agrária, uma luta de todos”. Segundo Fernandes (1994), esse congresso construiu novos horizontes ao MST, e, dentre os seus objetivos, destacam-se estes: “A terra é um bem de todos; Garantir trabalho a todos, com justa distribuição da terra, da renda e das riquezas; Combater todas as formas de discriminação social e buscar a participação igualitária da mulher.” (FERNANDES, 1994, p. 72). Esse período foi um marco, uma virada histórica para o movimento, pois a Agroecologia começou a ser incorporada nos discursos das direções e das militâncias, o que fez com que novos horizontes emergissem na perspectiva de realocar os anseios das famílias assentadas e ampliar os acessos a diferentes canais de comercialização.
O ideal de cooperativas alicerçadas em bases coletivistas (1984-1995) começou a perder força na medida que o movimento mudou as estratégias, uma vez que esses métodos estavam fora de contexto de uma sociedade capitalista e dos próprios anseios dos agricultores assentados. Borsatto e Carmo (2013) pontuam:
O que se observou, no entanto, foi que os princípios extraídos dos escritos de Marx, Lênin e Kautsky, quando transformados em práxis pelo MST, não se confirmaram, criaram nos assentados um forte sentimento de resistência a este projeto cooperativista coletivizado. (BORSATTO; CARMO, 2013, p. 225).
Nesse sentido, no programa agrário de 1995, observam-se algumas mudanças no plano de reforma agrária do MST: (i) garantir que a produção da agropecuária estivesse voltada para a segurança alimentar, para a eliminação da fome e para o desenvolvimento econômico e social dos trabalhadores; (ii) apoiar a produção familiar e cooperativada com preços compensadores, crédito e seguro agrícola; (iii) levar a agroindústria e a industrialização ao interior do país, buscando o desenvolvimento harmônico das regiões e garantindo a geração de empregos, especialmente para a juventude; (iv) desenvolver tecnologias adequadas à realidade, preservando e recuperando os recursos naturais, com um modelo de desenvolvimento agrícola autossustentável (MST, 1995).
Na fase de 1995 a 1999, foi desenvolvida uma etapa de materialização do Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA). Esse “[…] também foi um período de consolidação das agroindústrias e de concretização dos Cursos Técnicos de Administração Cooperativista (TACs).” (STEDILE; FERNANDES, 2012, p. 80). O Programa de Créditos para a Agricultura Familiar, ainda muito tímido no então governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), fundiu-se bem com uma estratégia produtiva de base familiar (SILVA; THÉ, 2022).
Muitos eram os questionamentos sobre o processo da organicidade e suas táticas para assegurar o desenvolvimento econômico e social das famílias. A chegada do século XXI fez com que o movimento reorganizasse seus métodos e estratégias para a nova fase requerida pela sociedade. Nesse contexto, Engelmann (2023) pondera:
O início dos anos 2000 foi de avanço do capitalismo no campo e de fortalecimento do agronegócio. Esse processo, aliado à diminuição na criação de novos assentamentos pelo Estado brasileiro, reforça a tese de que o projeto de reforma agrária clássica estaria esgotado dentro do sistema capitalista. (ENGELMANN, 2023, p. 158).
Assim, no 4º Congresso Nacional, realizado em Brasília, em 2000 (MST, 2000), foram debatidos e problematizados os novos horizontes para o fortalecimento dos assentamentos e para os futuros passos que o MST daria no intuito de reverter a lógica que estagnava a pobreza e o endividamento da maioria das famílias assentadas. Essa mudança de paradigma rendeu ao MST oxigênio para pleitear novos horizontes para reforma agrária e estabelecer novos princípios para os agricultores acampados e assentados (BORSATTO; CARMO, 2013).
As diretrizes do MST sobre a cooperação agrícola nos assentamentos, desde as primeiras conquistas no início dos anos 1980, passaram por algumas modificações (BERGAMASCO; NORDER, 2003). Isso levou a reformulação práticas agrícolas e a uma reflexão sobre os equívocos dos anseios em transformar os agricultores em sujeitos revolucionários, capazes de reverter a lógica de uma sociedade classes.
O 4º Congresso foi o divisor de águas para as estratégias de produção dos assentamentos, haja vista que o MST abandonou definitivamente as práticas produtivistas baseadas no sistema convencional e incorporou uma nova agenda, sustentada em três pilares: questões ambientais, políticas e culturais. Isso ampliou seu discurso rumo à sustentabilidade, como se observa neste excerto: “Deveremos estimular a prática agrícola sem a utilização de insumos externos ao lote, sem a utilização dos agroquímicos. Deveremos ao longo dos anos ir ajustando esta forma de produzir, evitando gastar dinheiro com adubos e venenos” (MST, 2000, p. 50-51).
A Agroecologia é inserida, portanto, na pauta do MST não apenas como um elemento de novas práticas de produção agrícola, mas também como um importante ingrediente político para contrapor o modelo do agronegócio, que estava suprimindo a maioria das famílias assentadas e levando ao empobrecimento. Nessa perspectiva, a Agroecologia tornou-se a nova estratégia para alavancar a sustentabilidade dos assentamentos e assegurar a soberania alimentar das famílias assentadas. Além disso, configurou-se a bandeira de luta e o princípio a ser seguido pela militância e pelas famílias assentadas, alterando as práticas agrícolas, mas sem promover um debate sobre quais seriam as alternativas para superar o fracasso do modelo anterior.
Nesse cenário, a partir do segundo programa agrário gestado entre 2000 e 2014, o MST ampliou seu programa agrário e inseriu a defesa de um “[…] projeto popular para a agricultura brasileira […]” e a busca por “[…] uma nova sociedade: igualitária, solidária, humanista e ecologicamente sustentável […]” (MST, 2007, p. 17 apud ENGELMANN, 2023, p. 159).
A partir de um certo momento, dos anos 2000 em diante, iniciam-se estudos e a análise da morfologia do MST sobre o assentamento per se, como lócus de vida, de produção e de construção de um novo modelo social. Os problemas enfrentados pelas famílias assentadas desde os primeiros assentamentos até os atuais referem-se ao processo de produção de alimentos nas unidades produtivas familiares, ao acesso às linhas de créditos e infraestrutura adequada e à comercialização desses produtos para geração de renda e de manutenção da vida no campo.
Dados de uma abrangente pesquisa realizada por Leite et al. (2004) em áreas reformadas, intitulada Impactos dos assentamentos: um estudo sobre o meio rural brasileiro, revelam que os agricultores assentados acessavam uma gama variada de canais, como feiras, atravessadores, agroindústrias, venda direta, supermercados, cooperativas, associações, abatedouros e outros. O destaque ficou por conta do canal “atravessadores”. De acordo com os autores, “[…] vemos que em todas as manchas os ‘atravessadores’ têm um peso significativo, indicando a princípio a manutenção dos canais tradicionais de escoamento” (LEITE et al., 2004, p. 173, grifo nosso).
No entanto, essa realidade ainda persiste na configuração dos canais de comercialização em áreas de assentamentos, predominante na produção de commodities para as grandes cooperativas agroindustriais. Apesar disso, têm ganhado força as abordagens que apontam para redes agroalimentares alternativas, seja no campo da produção, da distribuição ou do consumo, muitas das quais se articulam em torno da construção social de novos mercados, rompendo com a lógica predominante dos mercados agroalimentares em grande escala que ainda comandam as cadeias produtivas na maioria dos assentamentos.
A configuração de novas práticas agrícolas e de novas organicidades de produção emergiu em meados dos anos 2000, com novos nichos de mercados, os quais, até momento, as famílias não tinham acesso, resultado da ascensão da comercialização institucional por meio de políticas públicas ou de programas de governo. Trata-se da “[…] emergência de uma nova geografia alimentar” que (re)significa a produção, o consumo e o próprio ato de alimentar a si e aos demais.” (BEZERRA; SCHNEIDER, 2012, p. 38). Os autores ressaltam que isso ocorreu porque a política institucional deu prioridade aos produtos da região onde ocorre o consumo dos alimentos. Com a organização produtiva dos assentamentos, verificou-se uma mudança na dinâmica econômica em escalas locais e até mesmo regionais (NUNES, 2017). Diante disso, a produção de riquezas aumentou e se diversificou (mais leite, mais grãos, mais raízes e tubérculos), assim como o número de agentes de comércio formais e informais (GONÇALVES, 2008).
A circulação, seja na produção ou no consumo de alimentos em âmbito local, também potencializa e/ou oportuniza outras relações sociais, econômicas e alimentares que vão além da “[…] simples resistência ao processo de desconexão do sistema agroalimentar.” (BEZERRA; SCHNEIDER, 2012, p. 44). Nesse sentido, a comercialização foi ganhando destaque e fortalecendo os assentamentos rurais e as entidades presentes no espaço.
Perante os elementos, dois Programas Institucionais – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – têm ganhado notória relevância no fortalecimento dos circuitos locais de produção e de consumo de alimentos. Esses apresentam características inovadoras ao possibilitar, por um lado, a simplificação dos processos de aquisição de “[…] alimentos para programa públicos dispensando licitações que afastam os camponeses e suas organizações do processo e, por outro lado, por estabelecerem reserva de mercado para agricultura familiar.” (NUNES, 2017, p. 29).
Isso significa que, a partir da reorganização e do impulso dos mercados institucionais, retoma-se o espírito coletivo que se enfraqueceu com as experiências fracassadas da coletivização dos espaços destinados à reforma agrária, porém, com outro víeis, a cooperação em pequena escala, resultando na retomada de várias associações e cooperativas (OLIVEIRA, 2014; ROVER; RIEPE, 2016), na criação de mecanismo de resistência, de reciprocidade e de cooperação e, em muitos casos, de oportunismo. Aproveitando a demanda do Estado, as famílias se apropriam do espaço para mudar as práticas agrícolas e assim se adaptar ao ciclo e/ou ao jogo dos mercados.
Para Bezerra e Schneider (2012), “essas mudanças de procedimento no transcorrer dos acontecimentos é que vão definir as escolhas possíveis, oportunidades a realizar ou não, retroalimentando o processo.” (BEZERRA; SCHNEIDER, 2012, p. 45). A segurança na venda gera também mais confiança para o agricultor iniciar a produção e diversificar as práticas agrícolas (CUNHA; FREITAS; SALGADO, 2017; MODENESE; SANT’ANA, 2019). Marques e Ponzilacqua (2022) também explicam que:
Os programas voltados à estruturação de mercados institucionais se encontram no cerne do combate à desigualdade social ao fortalecerem a agricultura familiar, reduzirem a pobreza rural e fornecerem alimentos de qualidade para as populações vulneráveis. (MARQUES; PONZILACQUA, 2022, p. 499).
Políticas públicas são alternativas sustentáveis aos modelos de produção estabelecidos na sociedade de mercados convencionais. De 2000 a 2016, os assentamentos descobriram a importância do acesso aos mercados públicos como instrumentos para atenuar os impactos econômicos e sociais, tendo se consolidado primeira década do século XXI. O PAA e o PNAE tomaram como referência a experiência de comercialização da produção, abrindo novos caminhos e espaços nas estratégias de comercialização. Além de fornecerem uma renda periódica aos agricultores, tais programas garantem alimento de qualidade aos consumidores carentes nos centros urbanos e às crianças em idade escolar.
Conforme destacam Perin et al. (2021), no
[…] contexto econômico e social, associaram-se as categorias: estímulo ao cooperativismo e/ou associativismo; dinamização de redes e/ou agregação social; e melhoria da qualidade dos alimentos produzidos. No âmbito essencialmente social, foram identificados: estímulo ao controle social; participação das mulheres; melhoria da autoestima e autonomia; e estímulo ao autoconsumo. (PERIN et al., 2021, p. 44).
Os mercados institucionais tornaram-se mediadores para a organização das famílias assentadas e aumentaram a oferta e a qualidade dos produtos. O PAA e o PNAE, na ótica de Christoffoli (2015), “contrariamente a programas como o Pronaf, que não só não induzem à cooperação, como ainda promovem o aprofundamento no modelo tecnológico produtivista da revolução verde, […] trazem elementos de indução à cooperação.” (CHRISTOFFOLI, 2015, p. 186). Desse modo, os produtos passaram a ter melhores qualidades e possibilitaram a criação de novos mercados, como as vendas diretas e indiretas, em feiras, em casa em casa e em outros canais de comercialização (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2011; VINHA; SCHIAVINATTO, 2015; SOUZA; LORETO, 2019). Os mercados institucionais cumpriram sua função organizadora, instituindo condições para a participação das famílias em outros espaços econômicos e sociais, abrindo um leque de oportunidades para os assentamentos e rompendo as barreiras dos mercados hegemônicos que apenas expropriam a força de trabalhos dos agricultores.
Os programas institucionais possibilitaram aos territórios da reforma agrária uma construção de práticas sociais e uma aproximação entre fornecedores, poder público, entidades, consumidores e demais atores da sociedade civil, inclusive gerando práticas mais solidárias e redes de reciprocidade (SOUZA-ESQUERDO, BERGAMASCO, 2015; CUNHA; FREITAS; SALGADO, 2017; GREGOLIN et al., 2018; MACEDO et al., 2019; PERINet al., 2021).
De 2016 em diante, verificou-se uma crise nos canais de comercialização para compras públicas, devido aos sucessivos cortes orçamentários e ao desenvolvimento de novos caminhos, entre eles, as feiras, os supermercados, a venda direta e o uso de plataformas digitais. As feiras, os supermercados e a venda direta, nos quais se incluem muitos atravessadores, sempre estiveram presentes, ampliando-se especialmente em virtude do encolhimento dos mercados institucionais. Os mercados digitais, contudo, começaram a existir a partir da popularização do acesso às redes sociais, expandindo-se de maneira significativa durante e após a pandemia da covid-19.
Na contramão da gestão anterior, o atual governo do presidente Lula (PT) sancionou o aumento no orçamento do PAA e do PNAE. O ano de 2023 iniciou com uma de oportunidade para tornar tais programas mais robustos e equitativos, contribuindo de forma incisiva na renda dos agricultores familiares assentados e no combate à insegurança alimentar no país, com a produção de alimentos de qualidade.
A questão dos mercados e do acesso a eles passa a ser mais presente. Esse processo recente faz com que a temática da produção se desloque para a distribuição no interior dos assentamentos, já que os sistemas produtivos, instaurados no âmbito do domínio das técnicas de produção, permitem uma oferta tanto na quantidade quanto na regularidade, fazendo com que a questão das vendas e da comercialização passe a ser central na economia das famílias de agricultores assentados da reforma agrária.
Diante disso, percebe-se o papel crucial dos canais de comercialização para agregar renda e qualidade de vida às famílias assentadas. Nota-se que os mercados são uma construção social, logo, é necessária a participação do agricultor para a concretização de soluções. O MST, em sua gênese, “queria construir” algo fora do escopo, dos anseios e das práticas culturais das famílias, tornando os mercados e os canais de comercialização (cooperativas coletivistas) desconexos da vida cotidiana dos agricultores.
Assim sendo, novos horizontes têm emergido, e a reforma agrária se faz necessária para que cumpra seu papel social diante da sociedade excludente, contribuindo para mudanças no que diz respeito ao consumo de alimentos, o que tende a garantir uma renda digna para as famílias assentadas. Nessa perspectiva, novos e melhores mercados possibilitarão aos agricultores assentados mudanças significativas nos processos produtivos e organizacionais de suas unidades de produção familiar. A construção de novos mercados e de canais de comercialização, com destaque aos institucionais, sobressai-se pelo reconhecimento e pela valorização da agricultura familiar dos assentamentos e da cultura alimentar local, o que se refle no aumento da autoestima e da autonomia das famílias produtoras (PERIN et al., 2021).
Por fim, os assentamentos da reforma agrária necessitam de uma simbiose de políticas públicas efetivas, de estratégias e ações entre Estado, mercados, sociedade civil e meio ambiente, de modo a impulsionar as famílias assentadas da reforma agrária para uma inclusão produtiva, criando, desse modo, desenvolvimento e dinamização da economia familiar e local. Isso aponta para a relevância da observação sistemática das novas relações com os mercados e com muitas outras instituições formais e informais envolvidas na produção, na distribuição e na comercialização dos alimentos produzidos pelas famílias de agricultores assentadas da reforma agrária.
Os assentamentos rurais, portanto, são dinâmicos, flexíveis, fluidos e infinitamente mais ativos que os assentamentos anteriores. Consequentemente, a redefinição das relações sociais e econômicas em torno da unidade de produção familiar pode ser compreendida como ponto de partida para a remodelação de um conjunto de outras práticas sociais que visam à construção da autonomia e da liberdade das famílias perante os grilhões do sistema alimentar corporativo.
Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/da-reforma-agraria-a-um-novo-sistema-alimentar/
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