Os desafios para a reconstrução do Brasil são gigantescos. Mas, nos últimos dez anos, avançou a captura deste setor estratégico pelo rentismo – em especial por meio de PPPs. Ao tolher o investimento público, “arcabouço fiscal” amplia os riscos
Por: Matheus Dias | Crédito Foto: publicada no site Construliga
A infraestrutura pública é um aspecto tão fundamental para a vida em sociedade quanto para o funcionamento e expansão do capitalismo. Ela nos permite o acesso a setores vitais para a manutenção de nossa existência como educação, saúde, saneamento básico, habitação, etc. No capitalismo, sua importância abrange desde a ampliação das cadeias de produção e das dimensões do mercado consumidor. O papel do Estado foi, e continua a ser, central na construção e manutenção de infraestrutura, assumindo o que não interessa ao capitalista individual, mas essencial à expansão do capitalismo para todos os cantos do mundo.
Adam Smith, pai do liberalismo econômico, já no século XVIII entendia que a construção de obras públicas figurava entre os três únicos deveres do Estado, juntamente com a aplicação da lei civil e da proteção do território nacional. A construção e manutenção de obras públicas seria um dever do Estado já que o financiamento e a manutenção de tal tipo de obra nunca seria do interesse do capital privado. Apesar das considerações de Smith, o capital privado foi capaz de se inserir em alguns setores da infraestrutura, especialmente naqueles em que fosse capaz adquirir o status de monopólio natural, como, inicialmente, na provisão de água, energia ou telecomunicações. No entanto, a propriedade pública destas infraestruturas cedo se revelou essencial e condicional para a sua expansão a toda a população.
Dentro do sistema fiscal keynesiano do pós-segunda guerra, a infraestrutura adquiriu um novo papel ainda no crescimento econômico, dado o efeito do multiplicador fiscal. O investimento público promove o gasto privado, dando-lhe um alcance como instrumento de política econômica na busca da estabilização macroeconômica. Grandes projetos econômicos tinham como base o investimento público em infraestrutura, como por exemplo o New Deal nos EUA ou o Plano de Metas no Brasil. Além disso, toda a construção do Estado Social “welfare state” abrangia uma vasta infraestrutura social de escolas, hospitais, asilos, como uma obrigação do Estado.
Foi apenas a partir do final do século XX que a hegemonia da propriedade pública de infraestrutura foi questionada pelo capital privado. De modo geral, ocorreram dois grandes movimentos que permitiram a inserção massiva do capital privado no setor de infraestrutura.
O primeiro movimento se iniciou a partir da década de 1980 com a cruzada neoliberal em favor da descredibilização da política fiscal e na vilanização da dívida pública. O entendimento da dívida pública como um mal a ser combatido a todo custo fortaleceu a ascensão dos regimes de política fiscal baseados em regras fiscais. Nessa ótica, os orçamentos públicos se tornaram cada vez mais rígidos e supervisionados. Os investimentos públicos se tornaram a melhor opção de corte de gastos em prol da austeridade, já que os gastos correntes são mais suscetíveis a objeções populares. Em outras palavras, é mais fácil acabar com o que ainda não existe do que com o que já está entre nós. A queda nos investimentos públicos, principalmente no setor de infraestrutura, ocasionou uma lacuna entre as necessidades civis e a capacidade pública de investimento, muitas vezes traduzida mesmo numa degradação física das infraestruturas já construídas
Desse modo, surge na Inglaterra um modelo denominado Project Finance Iniciative (PFI), de incentivo ao investimento privado pelo setor público, capitaneado pelo governo Thatcher na década de 1990. O projeto funciona como uma forma de governos distribuírem os custos de investimento em um contrato de longa duração. Além da maior parte do investimento inicial ser feito pelo parceiro privado, as futuras obrigações financeiras do parceiro público no contrato raramente aparecem nas obrigações orçamentais do governo no curto prazo, permitindo com que metas fiscais de redução de déficits fossem cumpridas, ao mesmo tempo em que as necessidades de investimento fossem atendidas. Assim, o PFI tornou-se o principal meio de investimento em infraestrutura na Inglaterra: escolas, hospitais e estradas foram os principais alvos desse programa.
O segundo movimento se deu a partir da crise financeira de 2008. Após a crise, o sistema bancário tradicional foi fortemente regulamentado, favorecendo a entrada de capital na esfera pouco regulamentada do sistema financeiro, como fundos de pensão, private equity e gerenciadoras de ativos, conhecidos como shadow banking. A BlackRock, maior gerenciadora de ativos do mundo, registrou no primeiro trimestre de 2024 um recorde de 10.5 trilhões de dólares de ativos sob gestão, mais de um terço do PIB norte-americano. Por outro lado, a queda das taxas de juros nas economias avançadas pós-crise tornaram o investimento em títulos públicos pouco rentável, favorecendo a migração do investimento em novos tipos de ativos, como os chamados ativos reais, ou seja, infraestrutura, como o geógrafo inglês Brett Christophers descreve na sua obra Our Lives in their Portfolios.
Existem dois benefícios relacionados ao investimento em ativos reais que atrai as gerenciadoras de ativos. Obras de infraestrutura, como linhas de metrô e rodovias, geram um fluxo de receita consistente, previsível e, na maioria das vezes, acima da inflação, essencial para satisfazer os detentores dos ativos, muitas vezes avessos ao risco, e permitir um alinhamento temporal dos seus passivos e ativos de longo prazo . Outro benefício é de que grande parte das obras de infraestrutura ostentam um caráter monopolista no mercado, com um comportamento de demanda inelástico (ou seja, varia pouco em relação a um aumento no preço) e, portanto, resiliente a recessões – por exemplo, o nosso consumo de água é pouco sensível ao preço ou ao ciclo econômico
No início desse ano, a BlackRock adquiriu a Global Infrastructure Partners (GIP), a maior gerenciadora independente de infraestrutura do mundo, que detém mais de U$100 bilhões em ativos sob gestão. Nesse momento, o fundador da BlackRock, Larry Fink, afirmou: “A necessidade global de infraestrutura, combinada com os elevados déficits, que restringem os gastos do governo, cria uma oportunidade sem precedentes para o capital privado investir em infraestruturas”1. Em comunicado para imprensa, a BlackRock valorou o mercado de infraestrutura em 1 trilhão de dólares e previu como um dos segmentos privados de maior potencial de crescimento nos próximos anos.
No Brasil, o Teto de Gastos e o Novo Arcabouço Fiscal foram fundamentais para o processo de privatização da infraestrutura. Em 2016, mesmo ano da aprovação do Teto de Gastos, criou-se o Programa de Parceria de Investimentos, pelo governo federal, que tem por objetivo “ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria e de outras medidas de desestatização”, principalmente nos setores de transporte, energia e infraestrutura urbana.
Devido às proporções continentais do Brasil assim como sua divisão federativa, grande parte da privatização da infraestrutura é promovida pelos governos estaduais e municipais, como é o caso do saneamento público e das linhas de metrô. Esses entes também se defrontam com baixa capacidade orçamentária e lacunas no setor de infraestrutura. Diante disso, o novo marco para parcerias público-privadas (PPPs), anunciado ano passado pelo governo federal, se encaixa nessa dinâmica. No texto, o governo busca assegurar a solvência dos acordos com governos estaduais e municipais aos investidores privados, até agora um dos maiores riscos apontados. De acordo com o secretário do Tesouro Nacional Rogério Ceron, “Grandes investidores estrangeiros, que têm muito apetite por projetos, muitas vezes não entram nestes negócios em razão do alto risco do não cumprimento das obrigações pelos estados e municípios. O próprio fato de ter garantias do Tesouro torna o fluxo de recebíveis muito mais seguro, trazendo maior atratividade”2. Além disso, o marco prevê emissão de debêntures com isenção de imposto de renda para investimentos em projetos nos setores de educação, saúde, segurança pública, sistema prisional, habitação social, requalificação urbana, dentre outros. O objetivo dos avanços feitos na legislação e execução de PPPs é, claro, catalisar investimento em infraestrutura, por meio de parcerias com o setor privado, onde o Estado adquire um caráter indireto de redução de riscos e garantia de retornos para os acionistas.
Enquanto o Brasil continuar a insistir na manutenção de regras fiscais incompatíveis com o nível de investimento público necessário a uma economia subdesenvolvida, a propriedade física do país continuará seu processo de privatização e estará nas mãos de grandes empresas e gerenciadoras de ativos. Saneamento, habitação, infraestrutura urbana, estradas, sistemas prisionais, não terão mais o objetivo de servir às necessidades populares, mas de, acima de tudo, gerar o maior retorno possível a acionistas.
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/o-futuro-ameacado-da-infraestrutura-publica/
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