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A pecuária avança… E as águas secam

A cada ano, o consumo global de carne aumenta e o Brasil, maior exportador, precisará de uma governança de suas águas em contexto de secas, estiagens e desmatamentos. Relatório aponta esta urgência: disponibilidade hídrica no país pode diminuir em 40% até 2040

Por: Cecilia Faveri de Oliveira e Ricardo de Sousa Moretti, no Le Monde Diplomatique Brasil

Entre os eventos extremos previstos no novo regime climático, merecem destaque o agravamento das secas e as variações do regime de chuvas, que podem ter impacto significativo na produção de alimentos. Cresce a importância da água e a disputa por seu uso. Neste contexto de aumento da insegurança hídrica vale analisar o impacto que tem a pecuária no uso desse bem comum que deve se tornar cada vez mais escasso.

A Organização das Nações Unidas (ONU) concluiu que 72% da água fresca doce retirada do planeta é destinada à irrigação. Quando se trata de pegada hídrica – um indicador ainda mais detalhado, que inclui a água verde e cinza, além da água azul –, a atividade agropecuária atinge 92% do total mundial. A classificação da água em azul, verde e cinza consiste em determinar se a água doce, vem, respectivamente, de reservatórios naturais, da chuva ou é usada para diluir efluentes de qualquer atividade humana.

Estiagem no Rio Grande do Sul (Divulgação/EBC)

Como também demonstram alguns números, é importante examinar a relação entre uso da água e a produção de alimentos de origem animal. Antes de 2010, já metade da produção mundial de grãos era destinada à alimentação de animais criados na atividade pecuária, sendo que 85% dessa quantidade era destinada à alimentação de gado em países industrializados.

Como bem coloca o pesquisador Arjen Y Hoekstra, a pegada hídrica dos animais (da pecuária) é, majoritariamente, contabilizada como sendo das colheitas da agricultura, já que são esses os produtos que alimentam os animais; quando o uso de água pela agricultura é calculado, não se diferenciam, em geral, as colheitas usadas para alimentar seres humanos e as usadas para alimentar o gado.

O jornal El País publicou uma matéria citando o maior estudo sobre o assunto publicado até 2019. Entre as conclusões do estudo, estavam os seguintes números: 83% das terras cultiváveis, no globo, são usadas para fornecer alimentos para animais da pecuária, embora esses alimentos fornecessem somente 18% das necessidades calóricas e 37% das proteicas, quando usados para alimentação de seres humanos.

Em relação à água, o estudo citava que a FAO (Food and Agriculture Organization), calculava, em 2019, a necessidade média de 15 mil litros de água para produzir cada quilo de carne bovina. A perda de biodiversidade devido à sua substituição por animais da pecuária é outra preocupação.

Assim, deixar de consumir ou diminuir o consumo de produtos de origem animal pode vir a ser uma necessidade no contexto do previsível agravamento das secas e crises hídricas e da dificuldade crescente de obtenção de água para produção de alimentos. Embora não necessariamente por esse motivo, parte da população brasileira já deixou de consumir qualquer tipo de carne, como mostra pesquisa realizada pelo Instituto Ibope: entre 2012 e 2018, o número de brasileiros que se declaram vegetarianos aumentou 75%, passando de 8,0% da população para 14%[1].

Haverá tensões com relação à redução do consumo de produtos de origem animal, considerando os grandes interesses econômicos envolvidos. Em 2023, o agronegócio gerou mais de US$ 153 bilhões para o Brasil, confirmando uma série de resultados em favor do país na balança comercial que vem crescendo, ao menos, desde o início da série histórica registrada pelo Agrostat, a base de dados de exportações do agronegócio brasileiro.

A exportação de carnes foi responsável por 14% desse total; a maior parte foi relativa aos produtos do complexo da soja, que, em parte, pode ter sido exportado como matéria prima de ração para animais da pecuária. A importância econômica não é apenas do grande produtor do agronegócio: em 2020, a pecuária familiar foi responsável por 70% da criação de caprinos, por 51% da criação de suínos e 49% de galinhas, além de 31% de bovinos.

No mundo, como dito acima, a agricultura foi o setor que mais utilizou água retirada (ou seja, água doce fresca oriunda de reservatórios naturais, como rios e aquíferos), totalizando 72%; outros 15% são divididos entre os setores de mineração, pedreiras, manufaturas, eletricidade e gás, suprimento de vapor e ar condicionado, e construção civil.

Contudo, as diferenças entre países podem ser muito relevantes. Características do processo de produção no local de origem das mercadorias são um dos determinantes da pegada hídrica de consumo de cada país[2], junto com quanto os consumidores daquele país consomem. Interfere na pegada hídrica a incidência de consumo de carne na alimentação: por exemplo, nos EUA, o consumo de carne bovina é 4,5 vezes maior do que a média mundial, sendo este o país com maior pegada hídrica de consumo do mundo. O Reino Unido, por outro lado, onde o consumo de carne bovina é menos do que a metade do estadunidense, é o país desenvolvido com menor pegada hídrica de consumo. Além da quantidade de carne consumida, as diferenças nas características de produção da carne bovina, nos dois países, é um dos motivos da diferença da porção da pegada hídrica gerada pelo consumo de produtos de origem animal, já que, nos EUA, a produção de carne bovina é feita com uso muito intensivo de água.

No Brasil, estima-se que cerca de 50% da água para uso setorial (ou seja, de acordo com o uso por setor da economia) é usada na irrigação agrícola[3], e 8,4% é usada diretamente na criação de animais, embora haja dados que apontam que esses valores cheguem a 66,1% e 11,6%, respectivamente.

As indústrias de produtos sucroenergéticos[4] e de papel e celulose são destacadas pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) na utilização de água, no Brasil, junto com o abate de animais e produtos alcoólicos; a soma de consumo de água pela indústria de transformação (categoria a que pertencem as mencionadas) totaliza 9% do total retirado, no Brasil.

Em termos de quantidade de proteínas produzidas no Brasil, 79% do total de proteínas produzidas aqui no país era usado para fabricar ração de animais, em 2018[5].

De acordo com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), o abastecimento animal28[6] (considerado um uso consuntivo da água, pois os recursos hídricos utilizados não retornam à bacia hídrica de origem, diretamente) demanda 171 m3/s de água de mananciais por segundo, no Brasil. Vale comparar com o total de água produzida para consumo humano na Região  Metropolitana de São Paulo, que é de 65 m3/s, nos oito grandes complexos de produção que abastecem mais de 20 milhões de pessoas. Além da dessedentação de animais, essa água também é usada para manejar e limpar o gado e instalações rurais, usos cujo consumo deve crescer 28,7% até 2030 (somando 220 m3/s, ou 6,9 trilhões de litros anuais).

Aqui no país, predomina a pecuária extensiva, totalizando 90% das atividades agropecuárias em território brasileiro, sendo usada, principalmente, para criação de gado de corte. É a “criação de animais em grandes áreas, a pasto, com fins de comercialização”, e é considerada uma atividade de baixo investimento. A pegada hídrica dos produtos de origem animal, no Brasil, é maior do que a média global e grande parte dessa diferença se deve ao elevado consumo de água verde, que tem como origem a chuva.

O estudo no qual se baseou uma matéria sobre o assunto no Nexo Jornal, que apresenta esses dados sobre a pegada hídrica, mostra que há grandes diferenças na pegada hídrica dependendo do país e do produto animal considerado. No caso da criação de aves, por exemplo, o uso de água azul é menor no Brasil do que nos EUA, mas o uso de água cinza é semelhante nos dois países, e maior na China e na Índia. Na criação de porcos, o uso de água azul é semelhante no Brasil, nos EUA e na Índia, mas menor na China. Já o uso de água cinza é menor no Brasil do que em todos esses países. Quando se trata da criação de bovinos, o uso de água azul é menor no Brasil do que nos EUA, e o uso de água cinza é ainda menor. Quando se considera o consumo de água para os diversos tipos de criação animal, constata-se que, no Brasil, a demanda de água para o rebanho bovino ainda é a maior.

Governança da água

No âmbito legal brasileiro, a decisão sobre o uso da água para produtos pecuários depende da emissão da licença ambiental para que o empreendimento possa funcionar, que é emitida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama, uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente) ou pelos respectivos órgãos estaduais; mas a concessão da licença está condicionada à outorga de uso da água:

“A Lei das Águas (Lei nº 9.433/1997) (Brasil, 1997), que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh), tem como um de seus instrumentos a outorga de direito de uso de recursos hídricos, instituindo a necessidade de autorização e cadastro dos usuários pela ANA  (corpos hídricos de domínio da União) ou pelos órgãos gestores de recursos hídricos dos estados e do Distrito Federal (demais corpos hídricos e águas subterrâneas)”.  A Lei de Licenciamento Ambiental exige a apresentação do documento de outorga do direito de recursos hídricos para que o empreendimento seja licenciado. A Resolução 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (de 19/12/1997) lista as atividades agropecuárias em seu Anexo I, de forma que o licenciamento ambiental de empreendimentos desse tipo será sempre de competência estadual, sendo a outorga do uso de água de competência definida conforme o corpo hídrico a ser utilizado.

O órgão do Poder Público responsável pela emissão da outorga do direito do uso de recursos hídricos, para fazê-lo, deve examinar não somente se o balanço hídrico na atividade está correto, mas, também, se o balanço hídrico na bacia hidrográfica permite o desenvolvimento da atividade.

Outro instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos é a cobrança pelo uso desses recursos (inciso IV do artigo 5º da Lei 9.433/1997), utilizada tanto para  captação de recursos hídricos quanto para o lançamento de efluentes nas águas, que já foi implementado em sete Bacias Hidrográficas sob a jurisdição federal, e, de forma total, em sete Estados brasileiros (SP, MG, RJ, PA, GO, RN e SE). No Amapá e no Pará, as Leis que instituíram a cobrança tiveram sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal, e a Corte decidiu que estavam em desconformidade com a Carta brasileira em ambos os casos, embora não por terem instituído a cobrança em si.

Importa lembrar que a pecuária impacta a água não apenas na questão de seu uso, mas, também, possivelmente alterando seu ciclo, conforme estudo publicado na revista Nature, citado em matéria do jornal The Guardian. Estudos em larga escala sobre o tema ainda não haviam sido feitos, e a maioria dos já publicados era de estudos de caso. O artigo da Nature conclui que a derrubada de florestas tropicais afeta o ciclo hidrológico, diminuindo a precipitação – efeito que aumenta, conforme aumenta a derrubada das florestas (a média calculada por eles é de uma diminuição de 0,1 a 0,25 mm por mês a cada 1% de cobertura florestal). Chambers e Artaxo, por exemplo, comentaram artigo sobre o assunto (que analisou os efeitos do desmatamento em Rondônia no regime de chuvas), concluindo que mudanças na superfície do solo (como desmatamento e extração de madeira) afetam o ciclo da umidade na Floresta Amazônica.

Só no Brasil, aproximadamente dois terços do aumento de uso de terras para a agropecuária, entre 1985 e 2022, decorreu do desmatamento de coberturas originais dos biomas para a criação de pastagens, totalizando cerca de 64 milhões de hectares a mais usados para pastagem, conforme noticia o site Um Só Planeta. Só na Amazônia, o uso do solo para pastagens passou de 13,7 milhões de hectares, em 1985, para 57,7 milhões de hectares, em 2022. Portanto, não se trata, somente, de analisar a quantidade de água utilizada, mas, também, como outros aspectos da pecuária – no caso, o uso do solo –, impactam nos processos que possibilitam a reciclagem desse recurso na natureza. Por exemplo, modificações na cobertura original do solo na Amazônia têm efeitos na formação dos popularmente chamados “rios voadores” (a grande quantidade de água evaporada na região em virtude das altas temperaturas que chega à Região Centro-Oeste do país na forma de chuvas), como explica Eduardo Gerarque em matéria para o Jornal da Unesp.

Constatações como a do estudo publicado na revista Nature, e os citados na matéria do Jornal da Unesp, reforçam a importância da preservação da cobertura natural do solo e de um procedimento adequado de licenciamento ambiental. Decerto, muitos fatores determinam o impacto ambiental (inclusive, nos recursos hídricos) de um empreendimento pecuário: “por exemplo, uma fazenda com 1.500 ha no Amazonas está na faixa do porte grande, mas a forma pela qual os animais estão distribuídos por essa área irá determinar um potencial poluidor maior ou menor. Outra diferenciação bem-vinda é a separação em bovinos de corte e de leite. Por exemplo, na bovinocultura leiteira, a lavagem do piso e dos equipamentos da ordenha é realizada diariamente, no entanto esse manejo não ocorre na bovinocultura de corte. Por gerar esse efluente de forma diária, a produção de leite tem maior desafio ambiental, por isso é importante considerar essa diferenciação na classificação dos portes. Cabe destacar que a maioria dos estados considera que o sistema de pasto (também classificado como extensivo) tem impacto ambiental insignificante, razão pela qual só é exigida a declaração ambiental.”[7]

Mesmo considerando que, em 2035, a segurança hídrica será baixa apenas em partes da região Nordeste e partes do extremo Sul do país, a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) ainda calculou o aumento de risco econômico relacionado aos recursos hídricos para os setores. De fato, a ANA estimou um aumento no risco relacionado aos recursos hídricos para o setor agropecuário: calculado em R$29,86 bilhões, em 2017, esse risco deve passar para R$44,57 bilhões em 2035, caso não haja aumento na oferta de água.

Com relação à possibilidade de escassez hídrica, um relatório da ANA publicado em 2024 trouxe que uma das projeções indica a diminuição em até 40% na disponibilidade hídrica nas principais regiões hidrográficas do país, até 2040. Na Região Sul, a única que deve ter aumento de disponibilidade hídrica até aquele ano, crescem as probabilidades de eventos extremos relacionados à água, como secas e inundações, por conta da alteração nos ciclos hidrológicos.

Exportação de água

Outro ponto importante é a questão da exportação da água, por causa da pegada hídrica dos produtos vendidos para fora do país. Toda a água utilizada na produção desses bens, assim como o eventual impacto dessa produção no ciclo da água, são um custo arcado pelo país de origem do produto (no caso, Brasil), de forma que é importante avaliar, pelo menos, se o custo ambiental desses produtos é compensado pela receita gerada por sua venda. O Brasil foi o segundo maior produtor mundial de carne bovina, em 2023, e o maior exportador do produto, no mesmo ano. O país ocupou as mesmas posições quando se trata da carne de frango.

A China foi o principal mercado consumidor da carne bovina produzida no Brasil, em 2023, enquanto os Estados Unidos foram o segundo. Se os óleos vegetais ainda são, mundialmente, os produtos que respondem pela maior parte da exportação de água, a magnitude da produção e da exportação brasileiras de carne bovina e outros produtos de origem animal impõe uma reflexão sobre a exportação de água brasileira na forma de venda desses produtos a outros países.

A FAO e a OCDE prevêem um aumento significativo no consumo mundial de carnes até 2030, sendo um dos fatores determinantes para isso o crescimento da renda média no mundo, ainda conforme as duas entidades. A estimativa do relatório formulado por elas é que o consumo mundial de proteínas advindas de carne tenha um aumento de 14% nos próximos dez anos, sendo que a carne de aves deve responder por 41% desse total de proteínas – carne suína, bovina e ovina responderão por 34%, por 20% e por 5%, respectivamente. Assim, as entidades concluem que a média do consumo mundial de carnes deve ser de 35,4 kg anuais por pessoa, em 2030.

Considerando-se o quadro de agravamento das crises hídricas e o fato de o Brasil estar entre os países que mais exportam carnes, é preocupante o cenário associado ao eventual crescimento da produção e da destruição de biomas originais para a atividade pecuária, na perspectiva de suprir o aumento da já elevada demanda atual. O questionamento do nosso sistema alimentar e a necessidade de reduzir o consumo de alimentos de origem animal é um assunto cada dia mais presente.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-pecuaria-avanca-e-as-aguas-secam/

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