A armadilha do déficit zero solapa a reconstrução do país, fazendo do Estado um refém do financismo. Momento é de melhorar as condições objetivas de vida da população – e superar a aliança entre o “mercado” e a ultradireita que ameaça a democracia
Por: Carlos Fidelis Ponte |Imagem: MiHai Cauli/Terapia Política
Muitos observadores, ao analisar os traços estruturais da nossa economia, já chamaram a atenção para aquilo que qualificaram como o arranjo fazendão, um modelo econômico que acompanha nossa história desde que o pau-brasil, produto que primeiro alimentou a empresa colonial, passou por cima das tradicionais homenagens religiosas e batizou as nossas terras.
Pindorama foi massacrada e herdamos o nome derivado da primeira exploração extrativista: Brasil. Nome de um empreendimento exitoso, pois atingiu os seus objetivos ao implantar e exercer a exploração que verificamos ao longo da nossa história. Como define o historiador Luiz Antonio Simas, “um projeto colonial, fundado na ideia de exploração da terra, na exploração dos corpos, no genocídio do indígena, na escravização do negro”.
Submetida ao colonialismo, nossa história foi marcada pelo assassinato em massa dos povos originários e pelos quase quatro séculos de vergonhosa e cruel utilização do trabalho escravo. Desde o início da captura do território pela empresa colonial portuguesa nossa trajetória esteve submetida a um arranjo econômico predatório, extrativista, parasitário, exportador e concentrador de renda. Uma maquinação perversa, que sempre se impôs pela extrema violência e pela promoção da intolerância, da ignorância, da mentira e do preconceito. Traços que herdamos e que nos constitui como um dos países mais desiguais do mundo. Uma mancha que conforma parte expressiva da nossa cultura e da nossa formação social.
É fato que a configuração das estruturas fundiárias e urbanas, as relações sociais, o arcabouço institucional e as interações com o ambiente são marcas de uma sociedade extremamente desigual. Uma sociedade sob o domínio de uma elite econômica sem projeto para além da exaustão dos recursos disponíveis, incluindo aí as pessoas reduzidas à categoria de peças de uma grande engrenagem que moe vidas, paisagens, sonhos e afetos.
A brutalidade está profundamente enraizada na nossa formação social. Somos forte e constantemente atravessados por injustiças históricas de longa permanência. Vivemos em um país onde envelhecer é um privilégio fortemente ancorado na posição de classe. Somos testemunhas e vítimas de uma guerra não declarada contra negros, pobres e indígenas. O machismo, o feminicídio, a intolerância, a hipocrisia e a violência são linhas de força presentes nas relações cotidianas. A exclusão da maioria de nossa população dos marcos da cidadania e do acesso a condições que permitam a fruição de uma vida saudável é incontestável. Nesse país, como dizia Darcy Ribeiro, a ignorância não é resultado do acaso, mas de um projeto. Uma condição que facilita a disseminação de mentiras para melhor exercer o domínio sobre a população.
A catástrofe que atingiu o Rio Grande do Sul, os rompimentos criminosos de barragens em Mariana e Brumadinho, as queimadas no pantanal e na Amazônia e o fato de, segundo levantamento do governo federal, pelo menos 1.942 municípios do Brasil estarem localizados em áreas de risco recorrente, revelam a existência hegemônica de uma conjugação política e econômica bastante destrutiva e distante dos interesses nacionais e do bem-estar do povo brasileiro.
Um esquema de exploração que se sofisticou e passou a atuar em outra forma de extrativismo predatório: o rentismo praticado pelo setor financeiro. Um dreno dos recursos públicos que poderiam ser aplicados em áreas de grande relevância social como saúde e educação ou em atividades produtivas como industrialização ou investimentos em infraestrutura.
Em torno da retórica utilizada para justificar a redução do déficit público, foi montada toda uma estratégia para solapar as possibilidades de construção de um Estado que sirva para algo além de balcão de negócios para segmentos econômicos privilegiados. Uma estrutura capaz de estimular a dinâmica econômica e, ao mesmo tempo, frear a voracidade suicida e totalitária do mercado. Além dos argumentos de caráter ético e humanitário, é preciso considerar que nas economias mais ricas do mundo é comum o uso do endividamento do Estado para aquecer o mercado interno e financiar o desenvolvimento. Um investimento que volta aos cofres públicos pela via do crescimento da receita decorrente dos aportes na estrutura produtiva realizados com os recursos do endividamento.
Caímos em uma armadilha que congrega a imposição arbitrária e desnecessária de um teto de gasto com uma das maiores taxas de juros do mundo. A isso se soma uma estrutura tributária regressiva que onera a produção e o consumo, deixando de fora grandes fortunas, dividendos e segmentos como o agronegócio. Complementa o quadro a ação deletéria do Congresso Nacional, com suas pautas bombas e excrecências nada republicanas como orçamento secreto e um volume estratosférico de recursos para emendas impositivas a serviço de interesses de uma oligarquia que parasita os cofres públicos.
Entretanto, nossas mazelas não param por aí. Avanços tímidos são seguidos de retrocessos pesados. Isto porque, além de venais, nossas elites econômicas e parte da nossa classe média são notoriamente golpistas. Defensores de um conservadorismo cruel, corrupto e hipócrita que molda a nossa história e o caráter daqueles que tramam contra a democracia. Gente que idolatra o bandeirante Borba Gato e detesta as Marielles que insistem em brotar combativas e alegres do chão da miséria. Uma canalhice apoiada no pretenso combate à corrupção, na utilização da religião, na defesa da família e em um patriotismo vazio e patético. Um conluio que reúne a Faria Lima, corporações internacionais, a grande mídia, oportunistas, charlatães, inocentes úteis e pessoas com distúrbios afetivos.
Não obstante a vitória das forças democráticas sobre a barbárie bolsonarista e a fracassada tentativa de golpe do 8 de janeiro, os ovos da serpente vêm sendo chocados e as portas do inferno, entreabertas pelo neoliberalismo e pela extrema direita, ainda não se fecharam. Pelo contrário, podem ser repentinamente escancaradas como quase ocorreu recentemente com a Bolívia, legitima e legalmente presidida por Luís Arce.
Diante desse quadro, analistas como Bruno Paes Manso apontam para uma associação espúria e altamente perigosa que ameaça seriamente a nossa pouco enraizada e frágil democracia. Paes Manso se refere ao conluio envolvendo armas, dinheiro, religião e política para controlar territórios e coagir tentativas de organização de movimentos sociais e a circulação do ideário de esquerda, considerado o inimigo a ser combatido.
De fato, a intensificação da exploração e a necessidade de combater a insatisfação e a revolta daí derivada, acabaram por gerar arranjos criminosos. Uma contaminação corrupta envolvendo militares, milicianos, traficantes e exploradores da fé. Uma associação que alcançou representação política de vulto e domínio de parcelas relevantes dos poderes constituídos. Uma autoridade que se exerce sobre os territórios de parte significativa das cidades brasileiras e de áreas de exploração ilegal do garimpo e de extração clandestina de madeiras para citarmos as mais evidentes aos olhos da opinião pública. Um negócio bilionário que veta o exercício legítimo da cidadania e da democracia nas periferias e favelas das cidades brasileiras.
Concomitantemente, as ideias de meritocracia e empreendedorismo são instrumentalizadas para desviar o olhar das formas de exploração. Uma manobra que busca, em última análise, individualizar e responsabilizar os oprimidos pela situação de opressão que conforma as suas vidas. Concepções utilizadas para esconder as barreiras estruturais que mantêm as classes populares distantes dos benefícios gerados pela riqueza socialmente produzida.
Temerosa, parte da sociedade aderiu ao ideário rasteiro da repressão que se pratica há séculos e hoje se vê ameaçada e impotente. Desorientada passou, mais uma vez, a agir contra si e contra a democracia, reivindicando a volta da ditadura militar ou apoiando as ações das milícias. Um verdadeiro tiro no pé.
Ao contrário de enxugar gelo é preciso pensar e agir seriamente para melhorar as condições objetivas de vida da população. É sabido que a adoção de medidas como acesso a moradia, renda mínima, saúde e educação podem fazer a diferença e produzir impactos positivos com maior rapidez e efetividade do que discursos coléricos e eleitoreiros que batem na mesma tecla para satisfazer impulsos nada civilizados: pena de morte, redução da idade penal ou criminalização do consumo de drogas. Bandeiras que deixam entrever a crueldade estupida de uma sociedade doente vítima da ignorância. Medidas muitas vezes apresentadas como soluções inovadoras e eficazes que, no entanto, já são aplicadas sem o consentimento da lei, se mostrando inócuas para alcançar o objetivo alardeado. O resultado é a banalização da morte e da violência. O terror que dispara 80 tiros contra um carro que levava uma família para passear ou que, nos bairros populares, mata crianças em suas casas ou a caminho da escola.
Evidentemente é preciso garantir a segurança de todos, mas não é isso que está sendo feito. Na verdade, estamos alimentando um monstro que cotidianamente nos constrange e nos devora aos poucos. Uma besta que deixada em liberdade irá instalar definitivamente o império do crime organizado.
A conquista do país desejado não pode ficar refém do medo. A continuar nessa trajetória seremos todos prisioneiros e vítimas da arbitrariedade. Palmares ficou de pé por um século ou mais diante de um império que dava as cartas no mundo. Vale lembrar que após 21 anos de ditadura, o Brasil conquistou o direito constitucional à saúde, criando uma das maiores políticas de inclusão que se tem notícia: o maior sistema público de saúde do mundo. Diante de um governo genocida a pandemia de covid-19 mostrou a força da solidariedade de um povo que não se abandona. A eleição de Lula provou que, apesar de toda a grana e recursos colocados a serviço do embuste, a mobilização popular é capaz de derrotar inimigos poderosos e deter o avanço da barbárie.
Sabemos que a luta muda a vida. É preciso sustentar o céu como fazem os Yanomamis. É possível deter o bonde do mal. É possível conquistar uma cidadania e uma democracia de fato. É possível redistribuir renda e fortalecer o mercado interno. É possível e desejável implementar uma economia sustentável, solidária e soberana. Uma economia subordinada ao bem-estar da população e compromissada com o futuro. Uma economia que escape da armadilha da austeridade e da concentração e assim, quem sabe, nos permita resgatar Pindorama e refundá-la em outras bases, como sugerem alguns.
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/como-superar-o-bonde-do-mal/
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