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Retomadas Guarani: “Essa terra pertence a nós”

Força tarefa do governo chega a MS para regularizar territórios, em resposta à escalada de violência dos ruralistas em meio a conciliação improvável. Ameaças não cessam – nem a luta arrefece. E, agora, todo o apoio é necessário

Por: Tatiane Klein, Carolina Fasolo, Mariana Soares e Luiza Barros, no ISA | Crédito Foto: Reprodução. Retomada de povos Guarani e Kaiowá no MS.

“Será que nós não é ser humano? Será que é só o fazendeiro rico?” O questionamento do rezador guarani kaiowá Tito Vilhalva, de 106 anos, sintetiza o sentimento do povo Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Expulso de seu território, como parte de uma violenta política de colonização que exterminou e desagregou comunidades inteiras, Seu Tito pôde retornar a Guyraroká, declarada como Terra Indígena, mas aguarda a homologação da área há mais de 15 anos, o que causa uma constante insegurança a ele e sua família.

Infelizmente, o caso de Guyraroká não é isolado. À espera da demarcação de suas terras, são inúmeras as comunidades que vivem em condições sub-humanas, com a falta de direitos básicos, como alimentação adequada, acesso à água potável e saneamento. Elas também sofrem as mais diversas formas de preconceito e exploração – além dos frequentes ataques e ameaças àqueles que decidem retornar para suas terras de ocupação tradicional.

Na próxima segunda-feira (19/08), o governo federal promete inaugurar um novo capítulo das tentativas de solução desse grave quadro. Atendendo a uma demanda da Aty Guasu, organização representativa dos povos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou, na dia 10, uma força-tarefa para acelerar os processos de demarcação das Terras Indígenas (TIs) desses povos em Mato Grosso do Sul.

Procurado pela reportagem do ISA, o  Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirmou que, em conjunto com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), está qualificando os dados solicitados por Lula e que iniciará os trabalhos na próxima semana, com a discussão da metodologia e detalhes da atuação.

As medidas governamentais acontecem em resposta a uma escalada de violência iniciada há cerca de um mês contra aldeias reocupadas pelos indígenas na TI Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, área delimitada pela Funai em 2011, com 12.196 hectares de extensão (um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol).

Dias antes da promessa do presidente, uma comitiva do governo federal visitou a área. Estiveram presentes a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara; Joenia Wapichana, presidente da Funai; Célia Xakriabá, deputada federal (PSOL-MG); Gleice Jane, deputada estadual (PT-MS); Eloy Terena, secretário-executivo do MPI; Marco Antonio Delfino de Almeida, procurador da República; e Eliana Torelly, coordenadora da 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF).

Segundo a ministra, mais do que prestar solidariedade às vítimas, a visita teria um caráter resolutivo. “Existe aqui uma necessidade urgente da população por uma solução em curto prazo. Estamos aqui enquanto representação desse governo que tem um compromisso de avançar com esse processo de demarcação, porque é uma área que não vai ser afetada pela Lei do Marco Temporal”, afirmou.

Comitiva do governo federal visita retomadas na TI Panambi-Lagoa Rica, em 6/8 📷 Mariana Soares / ISA

Mesmo não sendo aplicável ao caso, em 2015 o processo de demarcação chegou a ser anulado pela Justiça Federal com base na tese ruralista do “marco temporal” (relembre). Em 2012, uma liminar da Justiça Federal já havia suspendido o andamento da demarcação em favor do Sindicato Rural de Itaporã. O processo segue paralisado até hoje. “Nós queremos agora voltar a dar  encaminhamento, a destravar esse processo que se encontra parado por impasse judicial”, afirmou Sonia.

Durante a visita, a presença da Força Nacional e dos representantes do governo não foi capaz de intimidar o acampamento de ruralistas que concentrava dezenas de caminhonetes a apenas 150 metros da aldeia Yvyajere. “Será que precisaremos morrer para ter direito ao que é nosso?”, suplicou uma das lideranças.

No dia anterior à chegada da comitiva, uma ação de reintegração de posse movida por uma das ocupantes não indígenas da TI foi suspensa pelo TRF-3. Desde a visita, não foram registrados outros ataques, mas a situação segue tensa e os indígenas temem uma nova ofensiva. Na manhã desta sexta-feira (16), ruralistas realizaram  um “tratoraço” contra as demarcações em Douradina, aumentando a tensão.

“Desde nova, a gente luta pelas nossas terras, desde muito nova a gente já corria das armas de fogo. Isso acontece há muito tempo, há décadas”, relatou a anciã Nona Mereciana, filha do antigo líder Horácio Aquino. “Hoje, é impressionante como ainda temos que continuar fazendo isso, continuar correndo das armas de fogo. Mesmo eu estando nessa condição, mesmo sendo uma anciã. Isso me entristece muito”, completou.

Nona Mereciana contou à comitiva que foram oferecidas panelas em troca de suas terras. “Eu lembro muito bem, como se fosse ontem, quando chegaram os colonizadores […] Quando a gente se recusou a sair, começaram as agressões que até hoje continuam”, lembra.

Ataques

O primeiro ataque aos indígenas na TI Panambi-Lagoa Rica ocorreu na madrugada entre 13 e 14 de julho, como reação a uma tentativa de ocupação de uma das porções do território demarcado – a antiga aldeia de Jaguay’guague. Segundo relatos dos Guarani Kaiowá, a reocupação foi prontamente repelida por produtores rurais, que cercaram os indígenas com carros e os fizeram fugir a pé, ameaçando retornar e destruir aldeias mais antigas, como Gua’a Roka, Guyra Kambi’y, Ita’y Ka’aguyrusu e Tajasu Ygua.

Logo no domingo à tarde um novo ataque aconteceu, em Guyra Kambi’y, deixando um homem baleado na perna. “Foi muito tenso para cá, muitos tiros”, contou Ava Poty Ju*, que vive na área desde a infância. “O fazendeiro veio aqui perto do vizinho e começou a atirar”, denunciou o jovem, contando que, nos dias seguintes, outras três aldeias foram reocupadas pelos indígenas – Yvyajere, Pikyxiyn e Kurupa’yty – e que o cerco dos ruralistas ampliou-se, levando a novos ataques e a uma tensão.

“Começou a chegar um monte de caminhonete e montaram um acampamento de carros”, relatou a liderança, que conta que os indígenas chegaram a ser impedidos de cantar e rezar na aldeia Yvyajere. “Os carros vêm e acendem aquela luz alta pra cima de nós. Eles estão montando tendas e os indígenas estão resistindo, para retomar a terra”, informou. No mesmo período, a Aty Guasu denunciou também um ataque ao tekoha Kunumi Vera, na TI Dourados Amambaipegua I, em Caarapó (MS). Tekoha designa uma área de ocupação tradicional e significa “ “lugar em que se realiza o modo de ser” em Guarani.

Mulheres guarani kaiowá cantam e rezam a poucos metros de acampamento de caminhonetes de fazendeiros, na retomada Yvyajere da TI Panambi-Lagoa Rica 📷 Mariana Soares / ISA

Daniela Alarcon, coordenadora-geral no Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas no MPI, disse que o órgão só conseguiu agir com celeridade porque já havia instalado, em 2023, um Gabinete de Crise para acompanhar a situação dos Guarani Kaiowá no estado. A instância vem atuando para garantir a segurança dos indígenas nas áreas atacadas. Uma das ações foi a pressão junto ao Ministério da Justiça para que a Força Nacional fosse novamente deslocada para a área, visto que a portaria de atuação havia vencido em 10 de julho, dias antes dos ataques começarem.

A escuta dos indígenas e o acompanhamento in loco permitiu ao departamento identificar o modus operandi dos ataques e alguns de seus principais atores, detalhou Alarcon. “Tem uma dinâmica desses ataques, que se dão com o uso de rojões, armas de fogo, uso de munição menos letal, possivelmente trazida do Paraguai – porque, de acordo com uma análise preliminar da Força Nacional e da PM, é uma munição que não é de uso das forças de segurança do Estado brasileiro. O que acende pra gente o alerta também quanto à formação dessas milícias no campo”, explica.

Mesmo com a presença da Força Nacional e o acompanhamento da situação pelas autoridades, 15 dias depois, na tarde do dia 3 de agosto, houve um ataque ainda mais violento aos indígenas, deixando pelo menos dez pessoas gravemente feridas, tanto por balas de borracha quanto por munições letais. Um jovem foi baleado na cabeça e ficou hospitalizado.

Segundo Teodora Souza, que é coordenadora regional da Funai em Dourados, o órgão tem visitado as comunidades atacadas diariamente e acompanhado a situação das vítimas. “O clima desde o começo está bastante tenso”, afirma. Ela conta que, após esse último ataque, o efetivo da Força Nacional saltou de duas para 20 viaturas, com a presença de 65 agentes.

Um dos principais problemas no momento, segundo ela, é o acesso à alimentação. As cestas básicas distribuídas pela Funai e pelo governo do estado são insuficientes e os indígenas têm enfrentado racismo e hostilidade ao tentar comprar alimentos nos municípios próximos e estão dependendo de doações.

Souza lembra que a área já foi reconhecida como TI há mais de dez anos e que a comunidade teme por uma espera ainda maior para ter a posse efetiva da terra: “Eles não aguentam mais esperar”.

Impactos do “marco temporal”

Para os Guarani Kaiowá, a terra não é apenas um espaço físico; é parte fundamental de seu ñandereko, seu modo de existência. “A terra não é para vender, porque a terra é nosso corpo. A terra é nossa vida, a terra é nossa alimentação, porque é daí que sai arroz, feijão, milho, cria gado, cria tudo”, explicou Tito Vilhalva, relembrando sua luta pelo reconhecimento da TI Guyraroká, um dos maiores símbolos do ataque aos direitos territoriais indígenas no Brasil.

Em 2014, com base no “marco temporal”, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a portaria declaratória da área, ignorando o longo processo de esbulho sofrido pelos indígenas (relembre). No ano passado, o STF considerou inconstitucional a tese ruralista. Pouco depois, o Congresso aprovou uma nova lei (14.701/2023), incluindo-o na legislação.

“Já veio antropólogo, engenheiro, já medimos tudo, eu fiz tudo. O papel, o relatório tá na mão do [ministro do STF] Gilmar Mendes, mas parece que o Gilmar Mendes jogou no lixo”, reclama o rezador centenário. “Sempre eu fico pensando, porque se vai demorar a demarcação de Guyraroká, daqui dez, 15, 20 anos, aí eu já não vou participar mais, porque minha idade está avançando, estou com 106 anos que estou vivendo aqui”, lamenta.

O cone sul de Mato Grosso do Sul concentra uma das maiores populações indígenas no Brasil – cerca de 65 mil pessoas dos povos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva, em 26 TIs com processos de demarcação iniciados, mas que não avançam para as próximas etapas. Entre elas, há 15 áreas cujos estudos de identificação sequer foram publicados.

Foi em 2016 a última vez que a Funai reconheceu terras dos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva: as TIs Dourados Amambaipegua I, em Caarapó, e Ypo’i/Triunfo, em Paranhos. A última área homologada pela Presidência da República foi a TI Arroio Korá, em 2009. Mas mesmo em áreas que chegaram a esse último estágio do processo demarcatório, os indígenas muitas vezes não estão em posse de suas terras, em razão de ações judiciais e despejos.

O rezador Tito Vilhalva na TI Guyraroká 📷 Tatiane Klein / ISA

Esforços pelas demarcações

Os esforços de vários atores e instituições para fazer avançar as demarcações não são recentes: após intensa mobilização dos indígenas, em 2007 foi firmado um Compromisso de Ajustamento de Conduta (CAC) entre o MPF e a Funai, para obrigar o órgão indigenista a realizar os estudos de identificação e delimitação de 12 áreas até o ano de 2010. Até o momento, apenas três relatórios foram publicados.

Esforços pelas demarcações

Os esforços de vários atores e instituições para fazer avançar as demarcações não são recentes: após intensa mobilização dos indígenas, em 2007 foi firmado um Compromisso de Ajustamento de Conduta (CAC) entre o MPF e a Funai, para obrigar o órgão indigenista a realizar os estudos de identificação e delimitação de 12 áreas até o ano de 2010. Até o momento, apenas três relatórios foram publicados.

De acordo com o procurador Marco Antonio Delfino de Almeida, a aplicação da Lei 14.701/2023 às demarcações não é adequada. Para ele, uma vez que os processos foram iniciados e tiveram seus relatórios aprovados, a nova lei não deveria ser razão para paralisá-los. “É uma questão jurídica: a Constituição fala que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, explicou.

É na mesma direção que argumenta uma nota técnica publicada pelo ISA, em outubro de 2023, antes da aprovação da lei. “As fases do processo de demarcação que se encerram sob a legislação vigente são acobertadas pela preclusão administrativa, de modo que Lei nova não tem o condão de retroagir para fases anteriores dos processos administrativos que já se consumaram e se estabilizaram sob leis e decretos vigentes à época de sua realização”, aponta o documento (relembre).

São 263 processos de demarcação em andamento na Funai hoje (saiba mais). O impacto desses artifícios utilizados para travar as demarcações é também um dos alertas trazidos na nota. “Retroagir Lei nova a processos de demarcação que já demoram 10, 20 e até 30 anos para serem finalizados configurará inadmissível mora do Estado brasileiro com os povos indígenas, que estão sob ameaça e em grave vulnerabilidade física e social”, continua o documento.

A advogada do ISA Juliana de Paula Batista lembra que a aplicação do ‘marco temporal’ sem maiores análises pode, inclusive, desconsiderar o histórico de violência e expulsões forçadas dos povos originários. “Em algumas situações, as expulsões foram realizadas pelas próprias forças de segurança do Estado, em conluio arbitrário com ocupantes não indígenas. Essas formas de violência foram proibidas pela Constituição brasileira, que veda a transferência forçada dos indígenas de suas terras e classifica os direitos territoriais como originários e imprescritíveis”, destaca.

“Essa terra pertence a nós”

A região onde ocorreu a escalada de violência é conhecida pelos Guarani Kaiowá como Ka’aguyrusu, que em sua língua significa “mata grande”. Hoje desmatada e dominada por lavouras de cana, soja, milho e outras monoculturas, a área é o que os indígenas chamam de tekoha guasu, um grande território, e guarda inúmeras histórias de expulsões e tentativas de confinamento em diminutas porções de terra. Histórias que estão vivas não só na memória dos anciãos, como na dos jovens.

“Nossos avós foram expulsos do seu território e agora os Kaiowá querem que seja demarcado, que seja homologado, porque pertence aos Guarani Kaiowá”, explica Ava Poty Ju sobre as ações de retomada. “Já faz 20 anos que não demarcam nosso território. As crianças que estavam em 2005 cresceram hoje. Nós mesmos vamos fazer a autodemarcação, porque esse território pertence a nós”, afirmou o jovem, mencionando e traduzindo um canto kotyhu de seu povo, que remete ao retorno dos Guarani Kaiowá a seus tekoha:

Ko yvy ore mba’e [Essa terra é nossa]
Ko yvy nhande mba’e [Essa terra pertence a nós]
Tupã xeru ome’e va’ekue  [Essa terra foi deixada por Tupã]
Ko tekoha re xe avy’a  [Nesse território eu me alegro]
Ambohyapu xe mbaraka [Aqui eu canto e faço meu chocalho soar]

Nos anos 1940, quando o governo de Getúlio Vargas promoveu uma política de incentivo à colonização do Centro-Oeste, a região de Ka’aguyrusu foi impactada pela criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand) – que abriria caminho para a fundação dos municípios de Douradina, Dourados, Rio Brilhante, entre outros. As áreas ocupadas tradicionalmente pelos Guarani Kaiowá e Nhandeva foram transformadas em lotes da colônia e cedidas a não indígenas, o que consolidou o esbulho das terras.

“A partir daí os grandes grupos se dividiram muito. Tinha um grupo que ia pra região de Panambizinho, um grupo que foi para Dourados, um grupo que permanecia por aqui e um grupo que vivia circulando e chegou o momento que não dava mais pra circular”, rememora o pesquisador indígena Kaiowá Puku*, que também é originário de Ka’aguyrusu e estudou a história da região.

“Quando foi criada a Cand, no início da década de 1940, muitos indígenas ainda estavam em suas localidades em várias regiões – inclusive na região de Ivinhema, Vicentina, Fátima do Sul e vivia de caça e pesca. E já existiam fazendeiros naquele tempo, que vinham do estado de São Paulo. Muitas famílias foram levadas para a Reserva Indígena de Dourados, mas o pessoal retornava, ia e voltava”, complementou.

Mesmo não sendo originário de Ka’aguyrusu, o centenário Tito Vilhalva também tem memórias desse processo e da ocupação tradicional dos Guarani Kaiowá na região: “Eu nasci em 1920, já tô com 106 anos, conheço tudo aqui no Mato Grosso. Caarapó não era cidade, Santa Luzia não era cidade, Dourados não era cidade. Não tinha estrada, a condução era só o cavalo, carreta”.

Ao longo do século XX, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e depois a Funai, trabalharam sistematicamente para expulsar, remover e confinar os indígenas das vastas áreas que tradicionalmente ocupavam em pequenas reservas criadas pelo estado. As terras, antes habitadas por eles, foram vendidas e alienadas como propriedades privadas para fazendeiros e colonos, cuja posse foi legitimada por títulos de propriedade emitidos pelo próprio Estado.

Ainda em 1946, lideranças das aldeias do Panambi procuraram o SPI para mediar situações de conflito que ocorriam a partir da ocupação de suas terras pelos colonos. Nos anos 1950, a administração da Colônia Agrícola prometeu uma área de 2.037 hectares para as comunidades Guarani Kaiowá da região. A transação nunca chegou a ser oficializada em cartório.

O procurador da República Marco Antônio Delfino Almeida 📷 Mariana Soares / ISA

Entre os documentos que comprovam esse histórico está um relatório enviado pela antropóloga Joana Fernandes à Funai nos anos 1980, dando conta de que, embora tenham sido reservados aos indígenas e demarcados fisicamente pela Funai em 1971, os 2.037 hectares não estavam em posse dos indígenas e eles viviam então confinados em uma pequena área da Colônia Agrícola.

Um documento de 1984 da 9ª Delegacia Regional da Funai comprova que o órgão tinha conhecimento da situação. Nele, servidores da Funai e do Incra informam que os indígenas estavam vivendo em apenas 400 hectares, ainda não demarcados, e que a área então reivindicada coincidia com 46 lotes da Colônia, “totalmente desmatada e sendo cultivada mecanicamente todos os anos”. Na época, os servidores já pediam urgência para a regularização da área.

Almeida ressalta que, no caso dos Guarani Kaiowá em Panambi-Lagoa Rica, mesmo com as expulsões e o processo de confinamento, a comunidade nunca se afastou de seu território. “A comunidade nunca saiu, há uma vasta documentação sobre isso. O processo de demarcação que ocorreu em 1971, a tentativa de demarcação, ela sepulta qualquer alegação de que haveria possibilidade do ‘marco temporal’ ali. Eles nunca deixaram a Terra Indígena constitucionalmente prevista”, detalha.

Na avaliação do procurador, nesse caso e de outras TIs, foram agentes do Estado os principais responsáveis pelas remoções dos indígenas e pela titulação de suas terras a particulares, o que ele classifica como um “erro histórico”. “Cabe ao governo federal dentro do próprio conceito de Justiça de Transição, a devolução do território, mas igualmente a correção desse erro histórico, que foi a titulação dessas pessoas”, defende.

Em busca de memória, verdade, justiça e reparação pelas violências sofridas pelos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva é que Almeida, a pedido das comunidades indígenas, tem atuado junto à Comissão de Anistia, do Ministério de Direitos Humanos (MDHC), e demandado seu reconhecimento como anistiados políticos coletivos. A primeira comunidade anistiada pela Comissão foi a de Guyraroká, em abril, e a segunda foi a da TI Sucuriy, em julho.

Falando em língua Guarani, a liderança da área Jety Jagua Guasu lembrou que as violações que sofreram não só foram documentadas à época, mas testemunhadas pessoalmente pelos indígenas. “Fomos levados de caminhão, como lixo, como gado, como nunca um ser humano deve ser tratado e nem mesmo animal. Se eu ia mostrar vocês nossas casas queimando, nossas roças sendo queimadas pelos fazendeiros e que a gente só testemunhou a olho nu. Hoje eles estão matando nossos irmãos nas retomadas, sem dó, sem piedade”, criticou.

A cerimônia em que o Estado brasileiro voltou a pedir desculpas aos Guarani Kaiowá em Sucuriy por despejos, remoção forçada, violência psicológica, entre os anos de 1984 e 1987, acontecia no mesmo dia em que a Justiça Federal decidiu favoravelmente a uma ação de reintegração de posse contra uma das retomadas na TI Panambi-Lagoa Rica. No início da audiência, a relatora do caso de Sucuriy, Maíra Pankararu, lembrou que, assim como Panambi-Lagoa Rica, essa terra também faz parte do amplo território tradicional de Ka’aguyrusu.

Em seu discurso, o procurador Marco Antônio também conectou as situações das duas terras, lembrando que os indígenas nunca saíram daquele local e que tiveram sistematicamente seu direito de permanência negado pelo próprio Estado. “Temos ido sistematicamente a Douradina e ouvido pessoas que estão lá. Por ocasião do processo de implantação da Cand, casas foram queimadas porque elas estavam exatamente nos locais onde haveria a delimitação dos lotes. E essa história deverá ser contada, para que essa reparação seja feita, para que essa reparação possa ser feita não apenas a essa comunidade, mas a também outras comunidades que sofreram e sofrem essa mesma violência”.

Para Genito Gomes, liderança da retomada Guaiviry, em Aral Moreira, que está fazendo um filme sobre a história da Aty Guasu, é uma injustiça que os indígenas que lutam para retornar a seus territórios sejam tratados como invasores, quando suas terras é que foram invadidas e expropriadas no passado.

“Todo mundo fala de retomada, mas, na verdade, quando o governo vendeu pros fazendeiros, o indígena não sabia português, tinha medo dos brancos, tinha medo do cavalo, tinha medo do revólver e saiu pelo seu território. Saiu na marra mesmo, expulso mesmo, que expulsaram. Assim o indígena correu tudo. Não é que a gente retomou das pessoas, porque nós, povo indígena não vendeu a terra, não negociou o nosso território. Nós fomos expulsos”, conta.

Genito Gomes, acadêmico indígena e liderança de Guaiviry 📷 Tatiane Klein/ISA

O retorno de Genito e seus parentes à retomada de Guaiviry aconteceu em 2011, sob a liderança de seu pai Nísio Gomes, assassinado a tiros, em uma tentativa de expulsão naquele ano.

As investigações levaram à prisão preventiva de pessoas envolvidas no ataque e à denúncia de 19 delas pela morte do cacique.

Numa espiral de injustiças, mais de dez anos depois do ataque, os estudos para a delimitação do território pela Funai ainda não avançaram – e o corpo do rezador Nísio Gomes, morto na luta pela demarcação de sua terra, segue, ainda hoje, desaparecido e insepulto.

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